29 Outubro 2020
Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) realizada entre 2017 e 2018 mostra que 37% dos domicílios do Brasil apresentam algum grau de insegurança alimentar; ferramenta permite o estabelecimento de políticas públicas contra a fome.
A reportagem é de Roberto Lameirinhas, publicada por De Olho Nos Ruralistas, 28-10-2020.
Com algum atraso, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) entregou em outubro sua 6.ª Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), com dados tomados em campo entre 2017 e 2018. De acordo com o próprio instituto, a POF “avalia as estruturas de consumo, de gastos, de rendimentos e parte da variação patrimonial das famílias, oferecendo um perfil das condições de vida da população a partir da análise dos orçamentos domésticos”.
O IBGE estima o grau de intensidade da insegurança alimentar tendo por base a quantidade e a qualidade das refeições diárias que os entrevistados declaram que moradores de seu domicílio fazem ou deixam de fazer ao longo do dia.
“Número de domicílios não significa número de famílias, uma vez que é comum que, sobretudo nas classes mais humildes, mais de um núcleo familiar ocupe o mesmo domicílio”, pondera José Graziano, agrônomo, professor e ex-diretor-geral da agência da ONU para Alimentação e Agricultura, a FAO, por dois mandatos (2012-2019). Ele falou durante evento virtual promovido pelo Instituto Ibirapitanga e pelo Instituto Clima e Sociedade (ICS) para analisar os dados da POF 2017-2018. Graziano ressaltou que, apesar de eventuais lacunas, o estudo tem a virtude de evitar que a falta de dados limite o estabelecimento de políticas públicas para combater a insegurança alimentar.
Outro participante do seminário online, o professor Walter Belik — especialista em segurança alimentar, agroindústria e política agrícola do Instituto de Economia da Universidade de Campinas — destaca que a importância da pesquisa do IBGE está principalmente na sua característica de estudo “de hábito de consumo e não apenas de hábito de compra” de alimentos por parte dos brasileiros.
“Há um ganho qualitativo em termos de coleta de dados quando a análise se aprofunda para o interior das casas do entrevistado e se detalha o que as pessoas comem, com que frequência comem, quando elas comem”, diz Belik em entrevista ao De Olho nos Ruralistas. “A POF é uma pesquisa cara e bastante detalhada porque leva os pesquisados a responder perguntas como: ‘Você saltou alguma refeição nesta semana? Na sua casa, quem come primeiro? Crianças, idosos? Que tipo de alimentos você consome na sua casa, quais seus filhos comem na escola e como você almoça em meio a sua jornada de trabalho?'”.
Belik, assim como Graziano, vê como um dos resultados da pesquisa a constatação de que superestruturas do sistema agrário e agro industrial acabam traçando o padrão dos hábitos de alimentação do brasileiro. “Há uma lógica de mercado que influencia costumes alimentares que acabam favorecendo o consumo de ultraprocessados, por exemplo, em detrimento do consumo de alimentos in natura”, afirma.
Com base nos resultados da POF — a última e as anteriores — e em informações consolidadas de outras fontes nacionais e internacionais, Belik listou as dez conclusões mais importantes em seu Estudo sobre a Cadeia de Alimentos (veja quadro), que lançou com apoio do Ibirapitanga e do ICS. Estas conclusões formam uma radiografia dos hábitos de consumo de alimentos que pode ser útil na formulação de políticas públicas para melhorar os índices de segurança alimentar e nutricional dos brasileiros.
Imagem: Walter Belik | Estudo sobre a Cadeira de Alimentos
No primeiro desses pontos, segundo a análise de Belik, a pesquisa confirma que a concentração de renda que marca a geografia econômica e social se reflita proporcionalmente em relação aos hábitos de alimentação. “Apenas 29% das famílias consomem 46% dos alimentos produzidos no país”, afirma Belik. “A partir destes dados, não é difícil imaginar qual é a parcela da população que mais atrai a atenção das grandes cadeias de produção de alimentos”. Esse perfil dos grandes consumidores leva a indústria a optar pela produção de itens mais sofisticados e caros.
A POF revela ainda que, em geral, as famílias brasileiras costumam empenhar seus maiores gastos com comida em um grupo de apenas dez tipos de alimentos. Essa dieta básica do brasileiro é composta por itens como refrigerantes e produtos que contêm pouco valor nutricional.
Outro dado relevante é sobre a relação entre a ocupação de setores específicos do agronegócio. A pecuária e é o maior segmento da indústria de alimentos, com a ocupação de 200 milhões de hectares de pastagens — que abrigam 230 milhões de cabeças de gado, praticamente uma por habitante no Brasil. A lavoura plantada ocupa pouco mais de um terço disso, 72 milhões de hectares. O professor Belik pondera que há experiências bem-sucedidas de produção de gado em áreas conservadas, que dispensariam o desmatamento para instalação de pastagens abertas. “Mas há, nesse aspecto, a questão fundiária, motivada pela expansão de fazendas e a pura especulação imobiliária. Acaba prevalecendo a pecuária do desmatamento — do fogo e do correntão”, explica.
A pesquisa constata também que 45% das terras utilizadas para lavoura no Brasil são ocupadas por soja, o que representa um retorno da agricultura do país à tendência histórica para a monocultura.
Em outro ponto de suas conclusões com base em dados do POF, a eficiência na logística de distribuição transformou o autosserviço, representado pelos supermercados, no principal equipamento de venda de alimentos no país, superando o varejo tradicional das feiras e centros varejistas como os Ceasas.
Em 2018 os supermercados faturaram R$ 330 bilhões, sendo que 80% desse total se deve ao comércio de alimentos. Essa mudança se verifica na lógica de venda: supermercados colocam hoje alimentos na linha de frente de suas lojas. Ao mesmo tempo, os centros de varejo tradicionais, que deveriam baratear custos para o consumidor final, mostram-se cada vez menos eficientes.
E há a questão das perdas e desperdícios. A FAO estima em 30% as perdas gerais de alimentos no mundo e o Brasil não escapa a esse número. A redução dessa proporção é um dos principais pontos das Metas do Milênio, uma vez que diminuiria a pressão sobre o meio ambiente e os recursos hídricos do planeta. O Brasil, no entanto, não tem nenhuma política efetiva para alcançar essa meta e nem sabe exatamente qual é a nossa linha base para aferir os seus resultados.
As conclusões listadas por Belik mostram como o padrão de consumo varia em relação à renda. “Na medida em que há aumento de renda, cresce também o consumo de produtos ultraprocessados e carne”, afirma o professor. “Ao mesmo tempo, o consumo de produtos considerados ‘simples’, como arroz e feijão, cai. Por outro lado, o dado positivo é que o consumo de frutas e verduras sobe com a elevação da renda, mesmo considerando as classes de renda mais baixas”.
O estudo mostra que, entre as classes mais altas, 60% dos gastos com alimentação correspondem ao consumo de refeições em restaurantes ou lanchonetes. Na média, os brasileiros gastam 33% de seu orçamento comendo fora de casa. No caso dos mais pobres, porém, “comer fora” significa consumir alimentos de merenda escolar, restaurantes de baixíssimo custo ou pagos com vale-refeição e refeitórios nas empresas. “O problema é que não há muito controle sobre o que se come fora de casa e a falta de orientação nutricional está contribuindo para o crescimento da obesidade”, afirma Belik.
Em comparação com as três últimas pesquisas, os dados confirmam a redução do consumo de alimentos in natura (7%). O consumo de ultraprocessados, em contrapartida, cresceu 46%.
A POF traz também dados importantes sobre os aspectos econômicos do hábito alimentar dos brasileiros. Em um desses pontos, Belik observa que — excetuando-se dois grupos de produtos, suco de laranja e soja — apenas 10% da produção agrícola é destinada à exportação. “Essa relação contraria a justificativa de que preços de produtos como o arroz, por exemplo, sobem em razão da sua cotação no mercado internacional ou em razão de variações na taxa de câmbio”, diz o professor.
Como as entrevistas da POF se encerraram em 2018, os resultados da pesquisa não abrangem os efeitos da pandemia de Covid-19 sobre os hábitos alimentares. Há um consenso entre os especialistas da área de que o confinamento causado pelo novo coronavírus reduziu o consumo de alimentos frescos, além de ter causado impacto significativo na renda das famílias – o que projeta uma situação de segurança alimentar e nutricional ainda pior do que a retratada na POF 2017-2018.
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Estudo do IBGE aponta para redução da segurança alimentar no Brasil - Instituto Humanitas Unisinos - IHU