27 Outubro 2020
“Os perigos existenciais para a humanidade em seu conjunto, associados à digitalização e a mudança climática, assim como a concorrência sistêmica amplamente percebida entre os Estados Unidos, a União Europeia e a China, afetam todas as pessoas que vivem hoje e as gerações futuras. Qualquer tomada de posição estratégica sobre estas problemáticas que não leve em conta sua dimensão cosmopolita fracassará porque passa por cima dos fatos morais. E esta deficiência, por sua vez, se tornará visível sob a lupa da atual crise do coronavírus”, escreve Markus Gabriel, filósofo alemão, diretor do Centro Internacional de Filosofia de Bonn, Alemanha, em fragmento extraído da conferência [online] “Vírus e sociedade”, promovida em inícios de outubro pelo jornal Clarín, publicada por Clarín-Revista Ñ, 23-10-2020. A tradução é do Cepat.
A ordem simbólica se viu balançada desde que a Organização Mundial da Saúde declarou uma pandemia viral, em março de 2020. Os subsistemas formativos da sociedade moderna se descarrilharam e hoje buscam frear o seu rumo deslizante sob a lupa de uma atenção globalmente coordenada sem precedentes. A ordem simbólica é o lugar onde a sociedade representa a si mesma. A sociedade é o sistema máximo de transações sociais, nunca fechado e por princípio inapreensível.
Em razão da sociedade não ser apreensível e nem sequer seja possível se aproximar e controlar como um todo, sempre há concepções da sociedade que estão mais ou menos distorcidas. Portanto, a ordem simbólica é sempre suscetível a enganos e autoenganos, ideologias, manipulações, propaganda, etc., ou seja, a toda gama de fenômenos gerados em condições de incerteza, falibilidade, pressões do tempo e complexidades que nunca poderão ser eliminadas com êxito.
O processo taxonômico no início da crise do coronavírus foi controvertido porque o uso do termo SARS-CoV-2, como agora é chamado, contribui ao fato de que, como todos vimos, “as pessoas entram em pânico ao pensar em um ressurgimento do SARS”, contra o qual alertou um grupo de virologistas chineses, na reconhecida revista The Lancet, em inícios de março de 2020: “O nome SARS-CoV-2 poderia ter efeitos adversos sobre a estabilidade social e o desenvolvimento econômico em países onde o vírus está causando uma epidemia, talvez até mesmo em todo o mundo”.
Nesta foto instantânea de um complexo debate sobre o vírus, demonstra-se rapidamente que o novo coronavírus não é de modo algum exclusivamente uma entidade natural. Desde que nós, como anfitriões, notamos que a doença, mais tarde conhecida como Covid-19, é causada pelo vírus, este foi se entrelaçando em processos socioeconômicos e, portanto, se tornou uma entidade parcialmente social.
A reação social em sua totalidade, especialmente a reação política ao vírus, incluídas as classificações do vírus por atores politicamente envolvidos como o Instituto Robert Koch, assim como a declaração de pandemia da OMS, modifica a interação dos subsistemas da sociedade, o que se reflete no termo “relevância sistêmica”. Os grandes sistemas geopolíticos encenam seus valores em todos os canais disponíveis, há meses, e os mobilizam mediante sua gestão da crise normativa.
Atualmente, embora sejamos regidos por leis de proteção contra infecções e estados de emergência, como resultado, surgiu um desequilíbrio axiológico na Europa, a partir de março de 2020, revestido por uma pseudorracionalidade. Este desequilíbrio consiste em que o imperativo viral, que nos pede para fazer tudo o que for possível individual e coletivamente, a quase qualquer preço, para enfrentar a pandemia, elimina em grande medida os outros pontos de vista. Há meses, a única alternativa pensável na autodeterminação humana tem sido a economia, o que faz com que as discussões sobre o relaxamento das medidas se concentrem na questão de como é caro conter a pandemia.
A pseudorracionalidade do imperativo viral consiste em que são formulados riscos potenciais do novo coronavírus com base em dados incertos, de tal modo que até mesmo se sugere que deveria ter sido imposto um confinamento mais precoce, mais rigoroso e por mais tempo na Europa. Se o objetivo principal das atividades na sociedade em seu conjunto fosse conter o vírus, tal interpretação de risco teórico poderia ser aplicada segundo os dados fáticos e os estudos médicos.
Mas a premissa unilateral da teoria do risco (que não destaca uma saída à crise do coronavírus) é completamente absurda, já que passa por cima do fato de que, em primeiro lugar, há muitos outros riscos para a vida (incluídos os virais, como a pandemia interminável do HIV) que não se convertem na “máxima máxima” da ação estatal, e, em segundo lugar, que as medidas tomadas para combater o vírus são em si perigosas, e que em alguns casos já produziram e estão produzindo grandes danos colaterais.
É aqui que entra um formato de observação de análise crítica sobre a crise do coronavírus, que gostaria de utilizar como modelo para uma visão positiva do futuro. A crise revela nesta ótica as fragilidades sistêmicas da ordem global, que surgiu no curso de uma globalização interpretada em sua maioria de forma neoliberal, porque, com efeito, esta crise tem lugar majoritariamente na ordem simbólica: uma representação da pandemia viral absorveu toda a operação dos meios de comunicação.
No caso da Alemanha, em particular, é possível afirmar que, felizmente, o disparo inicial para enfrentar a pandemia foi impulsionado por uma visão moral. Em vista dos perigos médicos, tornou-se evidente um consenso social sob a forma de uma onda gigantesca de solidariedade, interpretada no sentido de que é nossa obrigação incondicional fazer tudo o que for possível, a quase qualquer preço econômico, para proteger as pessoas ameaçadas e para proteger nosso sistema de saúde de sua saturação. Chamo esta visão moral de “imperativo viral”.
Graças à dinâmica moral da primeira fase de gestão da pandemia, que tratava da proteção da vida, ficou demonstrado frente ao público que é uma mera desculpa política afirmar que, por necessidades do mercado, não sejamos capazes de criar uma ordem mundial moral, cujo alvo seja colocar no cume de nossos objetivos a sustentabilidade, a justiça distributiva e outros imperativos urgentes para melhorar as condições sociais, independente das fronteiras nacionais.
Em resumo: devemos e podemos nos permitir reconstruir a ordem global em termos de objetivos moralmente justificáveis, inclusive eticamente desejáveis. O que é possível para conter uma pandemia viral não pode ser impossível para prevenir a crise climática – muito mais grave – e os diversos males que assolam milhões de pessoas em pobreza extrema e escassez de suprimentos.
Minha visão positiva se refere a que reconhecemos que somos capazes de progredir moralmente. Portanto, não é uma coincidência que, em meio à pandemia viral, estejamos lidando com problemáticas de carga moral – palavras-chave: discussão sobre racismo, mudança climática, renda básica incondicional, exploração de humanos e animais na indústria da carne, notícias falsas e populismo de direita –, com um enfoque inesperado. Em geral, o progresso moral consiste em tornar visíveis os fatos morais parcialmente encobertos também para aqueles que se beneficiaram em mantê-los em segredo.
O homem é capaz de uma moralidade superior, ou seja, de realizar mudanças sistemáticas no comportamento que resultam do reconhecimento de que existem coisas que devemos fazer e outras das quais devemos nos abster. Na tradição filosófica, o que devemos fazer se chama o bem, e o que devemos nos abster se chama o mal. Nossas situações cotidianas de ação nas condições da divisão moderna do trabalho são, é claro, consideravelmente mais complexas que os cenários éticos disponíveis, durante milhares de anos. Isto se traduz em novos tipos de situações de ação que nos confrontam com problemas éticos que ainda não foram esclarecidos. Portanto, como mostra a crise de coronavírus, não é fácil saber o que devemos fazer por motivos morais.
A ética em tempo real, em sistemas dinâmicos interconectados globalmente, se move de maneira diferente do que Platão, Aristóteles ou Kant poderiam imaginar. Os desafios morais mais urgentes do século XXI só podem ser superados, se eliminarmos os freios da ética local tradicional em favor de uma perspectiva genuinamente cosmopolita e, portanto, universalista.
Os perigos existenciais para a humanidade em seu conjunto, associados à digitalização e a mudança climática, assim como a concorrência sistêmica amplamente percebida entre os Estados Unidos, a União Europeia e a China, afetam todas as pessoas que vivem hoje e as gerações futuras. Qualquer tomada de posição estratégica sobre estas problemáticas que não leve em conta sua dimensão cosmopolita fracassará porque passa por cima dos fatos morais. E esta deficiência, por sua vez, se tornará visível sob a lupa da atual crise do coronavírus.
Uma crise é uma situação complexa de tomada de decisões cujo resultado está em aberto. Nossa liberdade se revela nas crises porque o resultado depende em grande medida das decisões que tomamos como indivíduos e comunidades, e de como se mapeiam institucionalmente nossos padrões de autodeterminação, o que por sua vez modifica a autodeterminação individual. Há diferentes padrões, ou seja, pontos de referência que podemos utilizar para medir e avaliar a gestão das crises e, portanto, um potencial ainda inexistente no “mundo depois do coronavírus”.
Algumas normas são de natureza local. Isto inclui, em particular, a maioria das normas legais que são fundamentais para a crise do coronavírus (especialmente as leis de proteção contra infecções), mas também requisitos e objetivos econômicos que estão vinculados a expectativas em uma economia social de mercado, diferentes daquelas da República Popular da China, por exemplo. As normas morais, os valores que afetam a todos os seres humanos como tais, devem ser distinguidas, pois concebem nossa ação individual e coletiva em termos de uma normatividade universal e são, portanto, o vínculo racional da humanidade, o teto sob o qual todos nós estamos.
Em vez de um “mundo depois do coronavírus”, gostaria de falar de uma ordem “pós-coronial”, que supõe que o novo coronavírus provavelmente não desaparecerá, mas se infiltrará nas estruturas sociais (como o HIV). É muito pouco provável que este vírus, como a varíola, possa ser erradicado em grande parte ou por completo mediante uma vacina. E mesmo que este golpe de sorte ocorresse, estaria a vários anos de distância no futuro, razão pela qual definitivamente haverá uma ordem “pós-coronial”, mas não necessariamente um mundo sem coronavírus.
Minha visão positiva em relação à ordem “pós-coronial” é que agora deveríamos aplicar aos grandes desafios do século XXI a bússola moral universal que usamos no início da pandemia para o imperativo viral. Estrategicamente, isto significa que temos que romper com a ideia de que os valores universais de liberdade, igualdade e solidariedade são específicos da Europa, e de que a União Europeia deveria agir agora contra os Estados Unidos ou contra a China com seu formato de valor correspondente.
Os valores morais não podem ser encontrados em uma concorrência sistêmica, eles a transcendem assim como os desafios que a humanidade enfrenta hoje. Existe uma possibilidade real de que no curso da crise do coronavírus criemos uma ordem moral que aponte para a cooperação e o encontro de uma imagem própria global da humanidade. Isto pressupõe que é necessário superar o pensamento contido dentro das fronteiras nacionais, que durante a pandemia viral também nos colocou em um perigoso desequilíbrio na Europa, porque os estados nacionais entraram em uma concorrência de higiene que só diminui gradualmente.
Os grandes desafios do século XXI que reconhecemos até agora estão em nível global. Em primeiro lugar, trata-se de uma concorrência do sistema geopolítico na qual os Estados Unidos, União Europeia e China, em particular, estão lutando pela soberania interpretativa de nossas ações. Trata-se particularmente da relação entre instituições (agrupadas no conceito de Estado), empresas, ciência, tecnologia e a autodeterminação individual.
Neste contexto, deve-se agradecer que o disparo inicial para enfrentar a pandemia na Europa tenha conduzido a uma compreensão moral das fragilidades das cadeias de produção globais e locais em nosso comportamento de consumo, porque os cidadãos e as cidadãs, com restrições à sua liberdade, não se submetem às leis de proteção contra infecções só por medo ou obediência à autoridade, mas também pela ideia de que é moralmente imperativo proteger a saúde dos grupos de risco especialmente ameaçados.
Em segundo lugar, a atual crise do coronavírus é apenas um presságio de uma situação de crise incomparavelmente mais perigosa. Existe um consenso científico que se desenvolveu por décadas, com muito bons dados e estudos, de que a crise ecológica (palavra-chave: mudança climática, extinção de espécies, etc.) representa uma ameaça existencial real para os humanos. Já nem sequer está claro se este perigo ainda pode ser evitado, razão pela qual alguns especialistas em ética ambiental preferem discutir possíveis cenários de extinção controlada, em vez de sua prevenção.
A circunstância de que os atores políticos até agora nem sequer haviam implementado rudimentarmente medidas em temas ambientais que o conhecimento científico claramente sugere, ao passo que parecem agir bem durante a crise do coronavírus, se inscreverá na concorrência pela soberania da gestão da crise, razão pela qual não é por acaso que os comentários políticos sobre as medidas do coronavírus caminhem de mãos dadas com questões de proteção ambiental, inclusive com a declaração de um “New Green Deal” europeu.
Em terceiro lugar, as tecnologias da informação socialmente disruptivas (inteligência artificial, redes sociais, telefones inteligentes, robôs, etc.) há muito tempo penetram em nosso ambiente vital. O mundo da vida está tecnologizado de uma maneira que inclusive supera algumas das distopias históricas do ser (seinsgeschichtliche) de Heidegger referentes ao domínio da imposição da técnica moderna (Herrschaft des Gestells).
Em termos concretos, isto significa que os gigantescos oligopólios tecnológicos, quase exclusivamente estadunidenses e chineses, fazem com que seus usuários produzam enormes quantidades de dados, pelos quais são compensados bem abaixo do valor econômico de um salário mínimo aceitável. Ao mesmo tempo, mediante sistemas de autoengano (publicidade, fake news, bolhas de filtro, ciberataques para a formação de opiniões políticas, etc.), estes oligopólios penetram profundamente na capacidade de encontrar uma imagem própria das pessoas, e, portanto, na ordem simbólica. Desta maneira, a maioria dos usuários digitais se torna uma espécie de proletariado digital, situação que nem sequer é compensada com o pagamento de impostos adequados aos estados nacionais, que não se defendem realmente até agora.
Estes três grupos de problemas estão estreitamente vinculados às assimetrias de distribuição global, que certamente podem ser descritas como sistemas de exploração que conduzem a formas de desigualdade moralmente (e, portanto, socialmente) inaceitáveis, que não podem ser superadas pelos estados-nação sozinhos. As cadeias produtivas são e continuarão sendo globais, mas até agora se baseiam puramente na ideia de valor agregado, o que explica as cadeias produtivas às vezes absurdas e ecologicamente insustentáveis por completo do ponto de vista do consumidor e que, atualmente, estão parcialmente interrompidas pela pandemia viral e assim se tornam visíveis.
Concluo com um pedido ousado: para o futuro que com sorte será uma “ordem pós-coronial” moralmente progressista, tudo dependerá de conseguirmos fazer com que os déficits morais sejam superados de maneira moralmente adequada, ou seja, fruto de uma reflexão ética e filosófica. Para conseguir isto, primeiro devemos trabalhar para evitar qualquer unilateralidade a nível nacional. Porque estas andanças nacionais solitárias não se baseiam em uma moral superior e perdem ipso facto o objetivo de uma gestão de crise eficaz e sustentável, pois não se dirigem aos atores em sua autodeterminação moral (sua autonomia), que conecta todas as pessoas entre si.
É por isso que defendo uma nova Ilustração, em cujo centro esteja uma atualização urgentemente necessária de nossa capacidade de encontrar uma imagem própria no espaço humano da autonomia moralmente guiada. É claro, concretamente isto requer que esbocemos formatos de digitalização desejável e eticamente justificáveis, dos quais estamos muito distantes, como testemunham os chamados sem sentido por mais digitalização, em tempos de e-meetings intermináveis.
Enquanto não controlarmos eticamente a penetração das tecnologias da informação socialmente disruptivas no ambiente da vida e, portanto, revertermos parcialmente seus efeitos através da regulação e do comportamento ilustrado do consumidor, só poderemos observar com impotência como se desmantela o conceito moral que associamos ao título de democracia liberal. Quanto mais descontrolada é a digitalização por parte dos gigantes tecnológicos, reflete-se de maneira menos ética a autodeterminação do público formatada pelos novos sistemas digitais. Então, necessitamos de uma teoria transdisciplinar da digitalização desejável, da qual podem surgir as pautas para uma ética da era digital.
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Markus Gabriel traça o futuro de nossa era “pós-coronial” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU