02 Outubro 2020
Conselho Nacional de Educação determinou em 2012 a implementação da Educação Escolar Quilombola, mas modalidade ainda está distante de muitas comunidades; com a pandemia, estudantes têm dificuldade de acessar o conteúdo pedagógico.
A reportagem é de Márcia Maria Cruz, publicada por De Olho nos Ruralistas, 01-10-2020.
Forma mais eficaz de barrar o avanço do novo coronavírus, o isolamento social impôs a transição, às pressas, do ensino presencial para o remoto em escolas públicas e privadas de todo o Brasil. A introdução súbita do ensino à distância trouxe desafios para pais e alunos, como a atenção às aulas, a dificuldade no acesso às plataformas digitais e a falta de um espaço físico adequado. Nos territórios quilombolas, no entanto, boa parte dos estudantes sequer passará por essa adaptação.
Em grande parte das comunidades, o ensino remoto não é cogitado em decorrência de problemas estruturais, potencializados com a pandemia, como a falta de internet ou sinal instável, a inexistência de computadores nos lares e até mesmo a falta de um aparelho celular, alternativa disponível, por exemplo, para estudantes das periferias no Brasil que não têm acesso a computadores.
Mesmo depois da aprovação, em 2012, pelo Conselho Nacional de Educação da resolução que estabelece as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola na Educação Básica, ainda há entraves para que o ensino seja feito em consonância com os conhecimentos tradicionais. Quase uma década depois de sua promulgação, em boa parte dos territórios as diretrizes sequer foram efetivadas.
No quilombo Acre Santa Maria, localizado na divisa entre os municípios de Cururupu e Serrano, no Maranhão, os alunos de três comunidades estão sem aulas e ainda não sabem quando as aulas retornarão. Segundo a educadora Célia Cristina da Silva Pinto, não foram oferecidas condições mínimas para as escolas operarem.
“O maior problema na pandemia é mesmo o acesso”, avalia. “As aulas presenciais foram suspensas. As aulas virtuais foram muito ruins. A maior parte das comunidades não tem acesso à internet e, quando tem, costuma ser paga por apenas uma família e o sinal não é lá essas coisas. Não dá nem para mandar mensagem, que dirá abrir vídeo para assistir aula”.
Célia reforça que a educação escolar quilombola não foi implementada de fato e, com o ensino remoto, esse propósito fica ainda mais distante. “No modelo formal, a educação escolar quilombola vem sendo discutida desde 2012, mas a gente não consegue implantar por várias questões”, pondera. “É uma modalidade de ensino diferenciada”.
O Censo Escolar de 2017 registrou, ao todo, 2.458 escolas que atendem territórios quilombolas. Em Macapá (AP), no entanto, quilombos ficam distantes dos centros urbanos, obrigando os alunos a se locomover por horas de barco até chegar a escola. Muitos deles também não têm internet.
Ildmar Ramos, mestre em educação que atua na Secretaria de Estado da Educação na implementação de currículo baseado no Estatuto de Igualdade Racial, considera que ainda é necessário avançar para que o ensino chegue de modo adequado às comunidades quilombolas.
— Na pandemia, o ensino se torna mais difícil. A comunidade não tem internet de qualidade, não tem computador, notebook. Nem a escola é de boa qualidade. Será que os alunos estão recebendo as informações passadas pelos professores? A escola manda as atividades, mas se os pais são analfabetos, como vão ajudar? Tenho dúvidas se o ensino remoto está funcionando dentro das comunidades quilombolas.
Para Givânia da Silva, da direção nacional da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), o prejuízo para os alunos quilombolas serão enormes. “Os desafios são muitos para a educação”, afirma. “Desde as comunidades que terão que se adaptar a fazer estudos remotos sem acessar à internet ou sem ter internet de qualidade, sem ter aparelho celular capaz de receber e enviar, das famílias terem condições e conhecimento para ajudarem nas atividades escolares. É um conjunto de problemas”.
Segundo Givânia, cuja dissertação de mestrado foi sobre a educação escolar quilombola, a pandemia encontrou nos quilombos um ambiente de vulnerabilidade que, em grande parte, deriva do racismo.
– É uma questão do racismo estrutural no nosso país. Negros e índios acessam muito menos direitos, muito menos políticas públicas. A pandemia evidencia como o estrago do racismo estrutural, secularmente vivenciado por esses povos, tem os deixado fragilizados.
No Vale da Ribeira, em São Paulo, o professor Luiz Marcos de França Dias, de 33 anos, conhece bem a realidade dos alunos de comunidades quilombolas. Mestre em educação, ele é da linhagem de Bernardo Furquim, a quinta geração do fundador de um dos quilombos mais antigos da região, o São Pedro.
Luiz nasceu e cresceu ali e leciona na Escola Estadual Maria Antônia Chules Princesa, localizada no Quilombo André Lopes. A escola atende estudantes dos anos finais do ensino fundamental e do ensino médio de sete comunidades quilombolas do entorno.
“É um diferencial trabalhar numa escola quilombola, sendo quilombola”, destaca. “Conheço todos os alunos, conheço a realidade de onde estão. Se acaba a energia elétrica para um, eu também moro na comunidade onde acabou a energia elétrica. A mesma realidade que os alunos têm vivido no cotidiano, os mesmos enfrentamentos, o mesmo processo de resistência é o meu processo”.
A deficiência no acesso à educação pelos quilombolas vai muito além do contexto de pandemia. Em sua pesquisa acadêmica, a mestre em educação Hildima Ramos identificou entre os alunos um problema crônico relacionado ao vínculo dos professores designados para escolas nos quilombos.
Isso porque o tempo de permanência deles na comunidade é limitado, uma vez que os conteúdos são divididos em módulos com duração média de 50 dias. Além disso, em muitos quilombos, os professores não têm formação continuada, uma das exigências estabelecidas nas diretrizes curriculares de 2012. Segundo Hildima, somados, esses fatores mostram que é necessário melhorar a capacitação dos docentes:
– É importante rever a cultura da comunidade, respeitar o saber da comunidade, o falar. Numa comunidade que faz farinha, por exemplo, o tema é ensinado em arte e história, mas e nas outras disciplinas? Por que o professor não se apropria desse conhecimento na matemática, na química? Os professores podem trabalhar como é a transformação da mandioca em tapioca, tucupi e farinha.
Na mesma direção da especialista, a educadora popular Núbia Quilombola lembra que a educação quilombola no Amapá começou a ser implementada há cinco anos e apenas há três anos foi efetivada nas comunidades. “É uma perda muito grande não ter aula presencial”, resume.
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Sem acesso ao ensino remoto, estudantes podem perder ano escolar nos quilombos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU