21 Setembro 2020
"O Hino não pede, agradece. Quem louva e canta a própria gratidão sabe que não pode pedir um dom maior do que o de ter sido criado, superando toda pequena alegria ou dor, consequências necessárias de fazer parte deste mundo, mas que estamos dispostos a aceitar sem nos perguntar o porquê", escrevem Ennio e Valentina Morricone, em artigo publicado por La Lettura, 20-09-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Sou convidado a falar sobre os Salmos, embora às vezes possa ser limitador falar, quando só se pode observar. Observo a extraordinária beleza poética e realista daquilo que me parece possa ser definido como um poema oculto. Defino-o oculto porque, em casos como este, um escrito que temos diante de nós, que podemos ver e ouvir, tem uma origem impossível de rastrear. Podemos admirar seu resultado em forma de palavras, mas esse sentimento por trás disso pertence a um Outro Lugar muito acima de nós. É um Outro Lugar que meus pensamentos costumam visitar, mas que dificilmente posso expressar com a prosa. As palavras são uma chave para estabelecer um encontro entre nós e Deus, representam a veste que dá a um sentimento imaterial uma forma humana: a forma da linguagem. A linguagem é o único meio de expressão de um sentimento como a fé, caso contrário inexprimível.
Deus nunca teve um contato conosco, exceto por meio de Jesus Cristo que, ao se tornar homem, criou uma ponte entre nós e aquele Outro Lugar. As palavras escritas podem ser os tijolos para reconstruir essa ponte com os nossos meios, que são limitados, mas representam a única maneira de nos elevar para aquele lugar. Quando digo que as palavras são um meio, não pretendo diminuir o seu valor, mas sim revisitar o sentido que, na escrita sagrada, é atribuído à invenção.
Talvez seja redutivo, no contexto da obra do salmista, dizer que ele inventa como se estivesse criando algo do nada, talento mais fácil a ser atribuído aos poetas. Talvez seja mais correto pensar que este intercepte aquela ideia e se sirva das palavras para comunicá-la da maneira mais eficaz. O poeta é mediador entre ele mesmo e os homens, o salmista é mediador entre os homens e Deus. Esse discurso da intercepção remete-me para o meu trabalho, pois a música também assume o papel de um intermediário entre um sentimento inexprimível e uma forma de comunicação universal. Tanto a música quanto as palavras são portadoras de uma mensagem que deve estimular não tanto uma compreensão racional, um aspecto mais terreno do ser humano, mas um sentimento mais elevado, pois a consciência pode chegar a lugares onde a lógica não chega.
É interessante, desse ponto de vista, como os Hinos são uma mistura desses dois aspectos, quase uma dualidade inseparável. O canto humano, que é um instrumento profano, junta-se ao caráter transcendental da oração e eis que a música não é mais um prazer terreno, mas uma alegria religiosa, não mais um mergulho em si mesmo, mas uma elevação para a divindade.
O uso do canto como ponte entre essas dimensões permite que nessa dualidade não haja uma negação nem de uma nem da outra, mas uma harmonia que se cria entre corpo e espírito. Sentido e sentimento não estão em contraposição, mas em síntese. Os Salmos têm um papel fundamental na história da música, porque sancionaram o primeiro testemunho escrito. Os temas compostos para acompanhar essas orações deviam interpretar da melhor forma possível o sentimento de que as palavras do Salmo se tornavam mensageiras, como se existisse um vínculo mútuo entre a palavra e seu gêmeo abstrato: o som. O próprio rei Davi, que escreveu muitos desses Salmos, foi mutas vezes descrito como um apaixonado tocador de cítara. Há outra coisa que me emociona nos Salmos e que me faz pensar sobre como uma forma de arte tão antiga tenha princípios tão atuais. Um elemento que sempre considerei muito importante no meu trabalho é o silêncio, porque é através dele que a música se manifesta. O silêncio é, com efeito, música, é pela alternância e oposição que o Salmo dá voz à sua dupla manifestação: o hino e a oração. Nos testemunhos musicais escritos dos Salmos era frequentemente utilizado um sinal de pausa, denominado selah, que convidava à meditação. O silêncio que serve de pausa entre um canto e outro é também uma ponte entre duas dimensões: a do recolhimento, da oração consigo mesmo, e a unificação, pelo canto, da comunidade na forma do hino.
Esse aspecto espiritual está presente no meu trabalho, pois é parte de mim e muitas vezes me pego colocando isso na minha música, sem nem mesmo perceber. Não é intencional, é a forma como um artista de qualquer tipo se trai por meio de sua arte. A música pode ser considerada, de forma oculta e não intencional, um autorretrato do compositor.
Mas no meu trabalho essa espiritualidade, que pode ser apreendida ou não, deve estar sempre submetida à técnica. A música para o cinema é escrita para servir ao filme e isso implica que deve ser entendida. Existe um evidente condicionamento nessa forma de compor, pois não posso escrever nada que não siga a ideia do diretor e que não tenha o único objetivo o de se ligar profundamente ao filme e, ao mesmo tempo, realçar seu significado. Também nesse caso a música é uma ponte, que atua como mediadora entre o público e um significado que está para além da imagem, mas de um pensamento não meu. O sentimento transmitido pelo filme também é veiculado pela música e, nesse sentido, o compositor é um intérprete técnico, embora no final ainda seja possível reconhecê-lo em sua obra.
Com a música absoluta o discurso é diferente: quando a escrevo estou comunicando um pensamento que é meu e não estou condicionado a nenhum tipo de limitação para expressá-lo, o que muitas vezes acontece no cinema com o sistema tonal. Nesse tipo de composição posso determinar por mim mesmo a técnica com que escrever e é mais fácil ter um encontro íntimo com uma dimensão mais espiritual.
O Hino não pede, agradece. Quem louva e canta a própria gratidão sabe que não pode pedir um dom maior do que o de ter sido criado, superando toda pequena alegria ou dor, consequências necessárias de fazer parte deste mundo, mas que estamos dispostos a aceitar sem nos perguntar o porquê.
A ausência de um pedido e a gratidão incondicional adquirem mais valor num momento de sofrimento tão grande como o que estamos vivendo.
Ao mesmo tempo, parece-me que a pandemia expresse melhor aquela coletividade reunida na presença de um único sentimento comum. A dor que nos une em todo o mundo e o medo que nos une ao nos manter separados se reporta àquela ideia expressa no Salmo de nos encontrarmos todos no mesmo plano, em um grande navio lutando para se equilibrar na tempestade. Qual é o sentido, alguns poderiam se perguntar, de agradecer em um momento como este? E pelo que deveria agradecer quando até a coisa mais efêmera foi tirada de mim, que mais tarde descobri ser tão indispensável?
Pois bem, acredito que a segunda questão contém uma resposta em si.
O Pai Nosso também se abre com um hino que, com a fórmula assim no Céu como na Terra, convoca também todas as criaturas mortais e divinas para louvar a Vontade do Senhor. Eis que, naquelas palavras, leio esse sentido de abandono na passagem de criaturas ativas a seres passivos e naquela passividade consciente e corajosa reside o significado profundo da fé. É estender os braços e acolher tudo o que o Senhor nos reserva, para o bem ou para o mal, e deixar-nos seguir por aquele caminho do qual só Ele conhece os segredos. E se o questionarmos, como a Lua de Leopardi, não ouviremos sua resposta. Mas se soubermos que ele está ali conosco, então não precisaremos questioná-lo.
Ao mesmo tempo, essa aceitação assume uma implicação fortemente ativa, quando a oração recita: perdoai-nos as nossas ofensas assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido. Nesse ponto, aquela confiança quase unívoca na relação entre nós e Deus se transforma em compromisso.
De repente, não oramos mais para louvar ou obter, mas para compartilhar. E essa partilha se manifesta também no Salmo do Bom Pastor, quando o Senhor nos conduz à sua tenda e nos convida à sua mesa. A refeição oferecida em sinal de hospitalidade coloca a nós e ao Senhor no mesmo plano, em uma atmosfera não mais de dependência de sua orientação, mas de comunhão com Ele.
Não somos totalmente passivos em nossa relação com Deus, pois amar é ao mesmo tempo um verbo ativo, que representa uma troca, e um verbo transitivo que representa a passagem de um dom das mãos do Senhor para as nossas. E acolhendo os dons da sua mesa, aceitamos a comunhão com Ele e entramos ativamente no caminho que ele escolheu para nós. Percebo o quanto o pensamento vai além das palavras e como a fidelidade ao texto cai vítima da falácia das nossas emoções. Lemos o que desejamos entender e nos relacionamos com a poesia e o canto com o filtro de nosso pensamento. E aquelas ideias contidas nos Salmos que descem do céu e nos ensinam nossas esperanças, são escritas para cada um de nós, que as cantamos como coletividade, mas, como indivíduos, cada um de nós os interpreta de acordo com sua sensibilidade. De minha parte, a dificuldade não é de quem lê e reflete, mas, como o Salmista, de quem está com a cabeça nas nuvens e aguarda a inspiração. Eu aguardo.
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A poesia dos salmos é a música que faz a mediação entre a humanidade e Deus. Artigo de Ennio e Valentina Morricone - Instituto Humanitas Unisinos - IHU