24 Julho 2020
Nascido em Roma em 1928, Morricone recebeu logo cedo lições musicais de parte de seu pai, trompetista, tendo composto sua primeira peça aos seis anos de idade. Ele seguiu os passos do pai e estudou trompete, ao lado de composição clássica e arranjo. Antes de trabalhar no cinema, fazia arranjos musicais para rádio e televisão e para artistas de jazz e pop.
O comentário é de Antonio D. Sison, publicado por National Catholic Reporter, 18-07-2020. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
O Irmão Antonio D. Sison, da congregação Missionários do Preciosíssimo Sangue, leciona teologia sistemática na Catholic Theological Union, em Chicago. Escreveu o livro “The Sacred Foodways of Film” (Pickwick, 2016).
Estamos no século XVIII, em algum lugar da floresta tropical entre o nordeste da Argentina e o leste do Paraguai. Um missionário jesuíta solitário, chamado Padre Gabriel (Jeremy Irons), como uma formiguinha diante do cenário majestoso e assustador das Cataratas do Iguaçu, move-se lentamente para o alto, contra corredeiras furiosas, pedregulhos irregulares e contra uma selva indomável. A trilha musical, uma peça orquestral crescente, flui literalmente para a sequência. A música se apresenta de forma tão orgânica às imagens que cria uma experiência visceral verdadeiramente audiovisual.
Em seguida, vemos o missionário sentado em uma rocha, em meio a uma clareira isolada na selva. Em contraste com a cena anterior, aqui há quietude, silêncio. Ele pega um instrumento de sopro, um oboé, e começa a tocar uma melodia. É sublime, mostrando sem palavras o paradoxo de uma humanidade frágil e, ao mesmo tempo, ferida e bela.
Na sequência, guerreiros indígenas guarani, atraídos pela música, surgem da exuberante floresta. A princípio, a cena é hesitante e agourenta; não sabemos o que esperar. Então, um dos guerreiros pega a mão do missionário e, em gesto de paz, leva-o pela selva, enquanto os demais os seguem. A melodia desvanece-se novamente, ganhando vida própria à medida que se espalha pelos ares da floresta.
Essa sequência é do aclamado filme “A Missão” (Roland Joffé, 1986), e a trilha sonora é obra do estimado compositor italiano Ennio Morricone, falecido em 06-07-2020, aos 91 anos. Provavelmente os círculos cristãos considerariam o seu trabalho neste filme épico, histórico e religioso, como o mais memorável do compositor. Mas Morricone foi um autor prolífero ao longo de décadas, com aproximadamente quinhentas obras escritas, perpassando uma variedade de gêneros.
A sua incursão no mundo do cinema começou na década de 1960 com o compatriota e amigo de longa data Sergio Leone, que dirigia filmes populares de bang-bang. A peça de destaque de Morricone, em “O Bom, o Mau e o Vilão”, [1] com Clint Eastwood (1966), é uma polifonia sônica estranha que evoca o uivo de um coiote. O tema do filme se tornou um clássico mundial e continua sendo considerado um hino de Hollywood para o velho oeste.
Nesse estágio inicial de sua carreira no cinema, Morricone criou trilhas que se recusaram a ficar em segundo plano, muitas vezes dividindo as atenções com os atores principais. Os filmes de faroeste de Leone, marcados por pausas prolongadas, convidavam a trilhas sonoras expressivas, buscando adicionar texturas e levar a narrativa adiante. Mas seria incorreto, se não mesmo injusto, dizer que a música de Morricone supera os atores.
O drama político de Gillo Pontecorvo, “A Batalha de Argel” (1966), é um exemplo claro de como a música de Morricone liga-se estreitamente com a história visual a se desenrolar. Para este filme altamente influente de Pontecorvo, obra que representa a luta argelina pela independência do domínio francês, Morricone compõe motivos musicais contrastantes [2] para capturar a atmosfera tensa do arco da história. A fusão de imagem e música é uma bomba-relógio pronta a detonar em momentos cruciais.
No cativante drama italiano “Cinema Paradiso” (1988), carta de amor do cineasta Guiseppe Tornatore ao cinema, a música de Morricone abraça emoções e nostalgia de forma direta. No entanto, não se trata de um sentimentalismo pelo sentimentalismo: o compositor calibra a trilha sonora ao barômetro emocional do filme. De forma constante, as imagens produzem música e vice-versa.
Nascido em Roma em 1928, Morricone recebeu logo cedo lições musicais de parte de seu pai, trompetista, tendo composto sua primeira peça aos seis anos de idade. Ele seguiu os passos do pai e estudou trompete, ao lado de composição clássica e arranjo. Antes de trabalhar no cinema, fazia arranjos musicais para rádio e televisão e para artistas de jazz e pop.
Em entrevista em 2015 ao Channel 4 News, da Inglaterra, Morricone disse que Johann Sebastian Bach era a sua inspiração musical, descrevendo a grande obra do mestre alemão como uma base: “um tijolo” na construção da dignidade de suas partituras.
Em 2009, Morricone recebeu o prêmio de Oscar honorário por sua carreira, tendo sido indicado cinco vezes em quatro décadas. Sua primeira conquista veio em 2016 com “Os Oito Odiados”, de Quentin Tarantino, certamente uma peça merecedora, embora não seja o seu melhor trabalho. A amplamente considerada obra-prima, opinião que o próprio Morricone compartilhava, é sua trilha sonora para “A Missão”, que, ironicamente, não lhe rendeu o Oscar de Melhor Trilha Sonora Original em 1987. Em “A Missão”, Morricone entrelaça as harmonias estabelecidas dos filmes de faroeste com os ritmos indígenas atemporais dos guarani, celebrando ambos em uma tensão criativa.
Eu acrescentaria que o que diferencia esse trabalho em particular é sua capacidade surpreendente de retratar, na música, o transcendente e invisível.
Uma cena central merece ser mencionada. O Capitão Rodrigo Mendoza (Robert de Niro), comerciante de escravos e assassino que busca clemência divina e humana, concorda com a penitência prescrita do Padre Gabriel: carregar o peso de suas próprias armas pelas Cataratas do Iguaçu e entregar seu destino às vítimas – o povo guarani. A subida é uma via crucis a desafiar a morte; a música agourenta ecoa isso.
Depois do que parece ser uma eternidade, ele chega ao destino, onde um grupo de guerreiros guarani, perplexos com sua presença, o encontra. Imediatamente, um jovem guerreiro põe uma faca na garganta de Mendoza, porém, em um gesto imprevisto, o chefe ordena que ele não apenas desista, mas que liberte o antigo opressor do fardo que ele carrega. O ato de extrema humanidade, imerecido e dado livremente, faz Mendoza chorar como criança. Os guarani se põem a seu redor, enquanto o Padre Gabriel lhe dá um abraço fraterno. Nesta delicada mudança, todos os sons ambientes são silenciados; apenas ouvimos uma reprise da melodia assombrosa do “Oboé de Gabriel” [3] contando a história de um milagre que aconteceu onde ele realmente acontece: nas profundezas ocultas e sem palavras do coração humano.
Em memória de Ennio Morricone, maestro italiano cuja genialidade põe em música o visível e o invisível, datilografei um modesto poema-tributo em uma máquina de escrever manual, de 1968, ano em que ele se afastou dos seus outros compromissos musicais para dedicar a vida ao cinema:
Morricone
Music [Música]
from an oboe solo [De um solo de oboé]
lifted by the orchestral waters [Suspenso pelas águas orquestrais]
of the great Iguazu. [Da grande Catarata do Iguaçu]
You are calling [Você chama]
Pied Piper, Cross Bearer, [Flautista malhado, portador da cruz]
to humanity ancient [A antiga humanidade]
only one day old. [De só um dia de vida]
It is here [É aqui]
it is not here [Não lá]
sacred symphony [Sinfonia sagrada]
cathedral in time. [Catedral em tempo]
Cross and culture [Cruz e cultura]
kiss one another [Beijam-se]
the music is mission [A música é a missão]
the spirit, Guarani. [O espírito, os guarani]
Rise, oboe solo [Emerge o solo de oboé]
to the great Iguazu [Às Cataratas do Iguaçu]
beyond clouds and sky. [Para além das nuvens e do céu]
I hear you, Ennio. [Ouço-o, Ennio]
We hear you. [Nós o ouvimos]
[1] Confira aqui o vídeo “O bom, o Mau e o Vilão (Ennio Moricone)”.
[2] Confira aqui o vídeo “A Batalha de Argel - Ennio Morricone”.
[3] Confira aqui o vídeo “Henrik Chaim Goldschmidt plays ‘Gabriel’s Oboe’”.
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A música transcendente de Ennio Morricone - Instituto Humanitas Unisinos - IHU