07 Julho 2020
“Se vocês continuarem a cometer injustiças, Deus os deixará sem música.” Nessa frase de Cassiodoro, Ennio Morricone, o grande compositor romano que faleceu nessa segunda-feira, 6, aos 91 anos de idade, via a síntese da visão espiritual que envolvia toda a sua obra musical.
A reportagem é de Salvatore Cernuzio, publicada por Vatican Insider, 06-07-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
“Para ele, a música era expressão não apenas estética, mas também ética”, explica o cardeal Gianfranco Ravasi, presidente do Pontifício Conselho da Cultura. Foi ele quem apresentou ao lendário mestre essa máxima do senador romano, que depois se tornou monge e fundador da primeira universidade cristã da Calábria, na Itália.
Com Morricone, Ravasi estabelecera ao longo do tempo uma relação de amizade e de respeito mútuo. Uma relação feita de encontros, na casa em frente ao Capitólio, em Roma, onde o compositor, há quase 85 anos e antes da feia queda que o levou à morte, “continuava fazendo ginástica”, ou durante os concertos, como o evento de Natal em Assis ou na Feira de Kielce, na Polônia, onde ele dirigia orquestras “com grande energia”.
Uma relação feita acima de tudo de diálogos, perguntas, confidências. Sobre a música, é claro, da qual Ravasi – amigo de inúmeros artistas e maestros – é especialista, mas também sobre os temas da fé: “A sua humanidade era imediata. Ele gostava muito de escutar e também um pouco de provocar. Nos últimos tempos, ele estava interessado nos temas da escatologia, talvez sentisse que eram os últimos anos”, conta o cardeal.
Foi precisamente o purpurado quem entregou a Morricone, no dia 15 de abril de 2019, durante a Semana Santa, a Medalha de Ouro do Pontificado “pelo seu testemunho não apenas de cultura, mas também de fé” em nome do Papa Francisco. Um papa por quem o compositor se sentia “atraído”, a ponto de ter composto para ele uma Missa Papae Francisci.
Encomendada pelos jesuítas para celebrar o bicentenário da reconstituição da Companhia de Jesus, ele a executou em 2015 na Igreja do Gesù, em Roma. “Mas o seu desejo era que ela fosse executada dentro da Basílica de São Pedro”, explica Ravasi. “Infelizmente, ele não conseguiu: além de ser uma missa muito longa, exigia um contexto particular, não da liturgia em sentido estrito. Ele ficou um pouco mal por causa disso.”
No entanto, Ennio Morricone teve a oportunidade de se encontrar com o papa argentino e de lhe mostrar a partitura. Nessa ocasião, ele também contou que havia chorado junto com o pontífice.
A missa dedicada a Jorge Mario Bergoglio foi a única composta por esse gênio poliédrico, prêmio Oscar e autor de mais de 400 trilhas sonoras para filmes de diversos gêneros – desde “Era uma vez no Ocidente”, de Leone, até “Cinema Paradiso” e “Malena”, de Tornatore, até o último “Os oito odiados”, de Tarantino –, algumas das quais são tão icônicas a ponto de terem superado a fama dos próprios filmes.
O fio do “sagrado” acompanhou toda a carreira de Morricone, emanação daquela “dimensão espiritual” que permeou a sua vida e a sua arte. Uma espiritualidade “sempre presente” nos seus escritos, conforme ele mesmo dizia, independentemente da sua vontade.
“A obra mais significativa do ponto de vista religioso” foi sem dúvida a trilha sonora de “A missão”, a obra-prima de Roland Joffé de 1986, cujas notas inconfundíveis ressoam aos ouvidos de multidões de pessoas, de todas as latitudes e energias. “Ele sentia muito aquele filme”, diz Ravasi, lembrando a paixão que animava Morricone em qualquer coisa que fizesse.
Também na Feira de Kielce, na Polônia, onde ele recebeu um prêmio dado pela Santa Sé a homens de cultura, ele “dirigiu no auditório um oratório para João Paulo II, outro pontífice ao qual ele se sentia muito ligado, com tanta energia que eu fiquei impressionado”.
“A seu modo, Morricone foi uma pessoa de fé. Um fiel, mas criativo”, afirma o cardeal. “Ele havia recebido uma formação religiosa tradicional, não tradicionalista, tinha uma sensibilidade particular pela fidelidade à liturgia e era muito afeiçoado por alguns padres. Apesar disso, ele tinha as suas dúvidas e gostava de provocar. Acima de tudo, queria abordar certos temas durante diálogos privados. Nos últimos tempos, discutíamos sobre a concepção do além no cristianismo. Ele viveu estes últimos anos com uma referência a Deus, junto com sua esposa Maria, muito religiosa.”
O cardeal Ravasi convidou Morricone para falar durante uma plenária do Dicastério de Cultura: “Estavam presentes diversas figuras de todo o mundo. Todos o conheciam, até mesmo bispos e consultores que não tinham interesses musicais diretos. Por outro lado, ele era capaz de fazer música de qualidade, mas não tão sofisticada a ponto de exigir uma gramática interpretativa particular”.
“Lembro-me – continua o cardeal – da sua intervenção tão brilhante, intensa, participativa. Ele falou do vínculo entre ver e escutar. A música era para ele o entrelaçamento da visão e da escuta. Nesse sentido, a sua ora musical foi uma grande expressão de espiritualidade interior.”
No Vaticano, o prêmio Oscar havia dirigido em 2016 o “Concerto com os pobres e para os pobres”, com a Orquestra Roma Sinfonietta e o Coro da Academia Nacional de Santa Cecília, fazendo ressoar na Sala Paulo VI as suas músicas mais célebres.
Em 2020, ele deveria retornar ao mesmo local para um evento especial. Ele mesmo o havia anunciado no ano passado, surpreendendo os admiradores que o acompanharam na despedida dos palcos em Lucca. “No próximo ano, haverá um concerto na Aula Nervi, no Vaticano. Não foi o papa quem me pediu, mas mesmo assim eu não podia dizer não”, disse o compositor.
O último concerto não será realizado. Talvez, como escreveu Ravasi em um tuíte, será Deus agora quem lhe atribuirá “o encargo para alguma partitura a ser executada pelos coros angelicais”.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Ennio Morricone segundo o cardeal Ravasi: “Fiel e criativo. Para ele, a música era escuta e visão” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU