31 Agosto 2020
"A experiência histórica ensina que os seres humanos, por meio de instituições e políticas, ajudam a moldar os efeitos redistributivos das pandemias. Portanto, se não interviermos de maneira oportuna, os danos socioeconômicos causados pela Covid-19 serão (também) culpa nossa", escreve Guido Alfani, em artigo publicado por La Lettura, 30-08-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
As principais pandemias da história tiveram uma profunda influência nas sociedades humanas, e muitos estão se perguntando se a crise causada pela Covid-19 terá efeitos comparáveis. Em especial, existe uma preocupação sobre como a pandemia afetará as desigualdades. Nesse sentido, a experiência histórica oferece evidências gerais que são bastante úteis para compreender os desafios que enfrentamos.
A grande niveladora: a Peste Negra. A Peste Negra que assolou a Europa entre 1347 e 1352 permanece, pelo percentual da população morta (entre 35 e 60%, até 50 milhões de vítimas), a pandemia mais terrível do continente. Seus efeitos econômicos e sociais foram duradouros. Particularmente importantes foram as consequências sobre a distribuição de riqueza e renda: a Peste Negra parece ter desencadeado uma das duas fases de significativa contração das desigualdades encontradas nos últimos 7 séculos (a outra fase está associada às guerras mundiais).
Se os 10% mais ricos da população detinham cerca de 65% da riqueza às vésperas da pandemia, o percentual já havia se reduzido consideravelmente nos anos seguintes. A tendência de redução da desigualdade continuou por algumas décadas e, em meados do século XV, os 10% mais ricos detinham pouco menos da metade da riqueza – um mínimo histórico jamais viso posteriormente na Europa de novo.
A redução da desigualdade após a Peste Negra teve duas causas principais. Em primeiro lugar, o colapso demográfico permitiu que os trabalhadores obtivessem melhores salários e tivessem acesso, em muitos casos pela primeira vez, à propriedade. Depois, na presença de sistemas hereditários substancialmente igualitários (a herança era transmitida em proporções iguais aos filhos homens, enquanto as mulheres recebiam uma parte não muito diferente na forma de dote), os grandes patrimônios se fragmentaram. Esses efeitos, entretanto, não podem ser considerados a consequência "natural" de uma pandemia, pois foram mediados por uma estrutura socioinstitucional específica.
As pragas do século XVII e cólera do século XIX. As últimas grandes pragas europeias tiveram, pelo menos na Europa meridional, consequências demográficas não muito diferentes da Peste Negra.
Na Itália, as duas pragas de 1629-30 e 1656-57 eliminaram cerca de um terço da população. No entanto, não deixaram vestígios visíveis nas tendências da desigualdade, que continuou a crescer ao longo da era moderna. As razões devem ser buscadas na adaptação institucional após a Peste Negra. Quando, depois de 1348, percebeu-se que a peste havia se tornado uma calamidade recorrente, as famílias de proprietários de terras começaram a proteger seus patrimônios da fragmentação indesejada. Isso exigiu o recurso a instituições, como o fideicomisso, que seguia o princípio geral da herança igualitária.
Além disso, no contexto internacional modificado do século XVII, quando as principais economias italianas já estavam sofrendo com a feroz competição dos países emergentes do norte da Europa, o colapso demográfico não foi seguido por um aumento significativo dos salários. Nos raros casos, como o da República de Veneza, em que encontramos alguns indícios de pelo menos uma desaceleração no crescimento das desigualdades, parece devido não tanto à redistribuição aos pobres quanto ao extermínio dos pobres que, desde o final do século XV, eram as vítimas privilegiadas da peste.
Dinâmicas semelhantes são encontradas durante as pandemias de cólera do século XIX. A cólera, uma infecção que tende a se espalhar em ambientes e contextos socioeconômicos pobres, é o melhor exemplo de uma "pandemia dos pobres". Estudos recentes em alguns países ocidentais, como a França, sugerem que a cólera teve algum limitado efeito nivelador – mas apenas por causa da sobremortalidade entre os mais pobres.
A gripe espanhola e a Covid-19. Os casos de peste do século XVII e cólera do século XIX sugerem cautela na avaliação dos efeitos distributivos das pandemias, especialmente considerando que exemplos históricos de nivelamento estão ligados a taxas de mortalidade muito altas. Além disso, no caso da Gripe Espanhola de 1918-19, que fez muitas vítimas, mas matou um percentual relativamente pequeno da população total (na Itália cerca de 1%, ou seja, 300-400.000 pessoas), estudos em andamento sugerem que a desigualdade de renda tenha aumentado após a pandemia.
Entre as consideradas até agora, a Gripe Espanhola é a pandemia mais próxima da Covid-19, sendo caracterizada pela alta propagação, mas pela letalidade (ou seja, a probabilidade de morte dos infectados) relativamente baixa. Felizmente a Covid-19, como a gripe espanhola, não causará uma contração em grande escala da força de trabalho. Mas, pelo mesmo motivo, é de se esperar que não levará a nenhuma redução da desigualdade. Pelo contrário, ao favorecer o aumento do desemprego, irá agravar as desigualdades, alimentando uma tendência que já se arrasta há vários anos.
No entanto, a experiência histórica ensina que os seres humanos, por meio de instituições e políticas, ajudam a moldar os efeitos redistributivos das pandemias. Portanto, se não interviermos de maneira oportuna, os danos socioeconômicos causados pela Covid-19 serão (também) culpa nossa.
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Os vírus afetam principalmente os pobres - Instituto Humanitas Unisinos - IHU