"Esta crise pode tornar mais profunda a nossa comunidade em muitos níveis". É o próprio Timothy Radcliffe, ex-mestre geral dos dominicanos, orador incansável e tão apreciado em todo lugar, que oferece, no encerramento, a síntese da conversa realizada em 4 de junho passado, em conexão digital do convento de Oxford, no último dos quatro encontros organizados pela Ação Católica de Carpi sobre o tema “’Não temeis!’. O dom da comunidade, entre precariedade e repartidas”.
Através do isolamento social, argumentou Radcliffe, confrontamo-nos com nós mesmos e com os outros. “As máscaras caem. Isso poderia levar a uma comunhão mais profunda. Só podemos ter empatia com os outros se tivermos a coragem de enfrentar a nós mesmos e entrar na cela do conhecimento de si. A dor da exclusão da Eucaristia poderia nos levar a um desejo mais profundo pelo Reino, onde todos seremos um só. Também podemos ter a coragem de olhar de frente a morte e negar a ela sua pretensão de reinar". Mas o momento mais poderoso de sua intervenção é aquele final, quando ele afirma que "enquanto enfrentamos todas essas questões novas e complicadas, podemos escapar do isolamento social da Igreja e buscar a comunhão com todos os que buscam a verdade".
O texto é publicado por il Regno - documentos - n. 13, 01-07-2020. A tradução de Luisa Rabolini.
Agradeço imensamente por me convidar para dialogar aqui com vocês. Essa pandemia é de fato um tempo de isolamento, mas também um tempo para criar novos laços de amizade. Precisamente por esse motivo, esse primeiro contato com a Ação Católica é para mim fonte de alegria. Vocês contribuíram de maneira extraordinária para a vitalidade da Igreja na Itália e agora mais do que nunca precisamos da vossa criatividade e imaginação.
Durante a Semana Santa, assisti ao funeral de meu amigo mais caro dentro da ordem dominicana. Entramos na ordem no mesmo dia, 55 anos atrás. A causa de sua morte foi o coronavírus. Ele tinha uma família maravilhosa e centenas de amigos, mas naquela ocasião apenas eu estava presente, junto com um jovem frade e assistentes das exéquias fúnebres. Isso me parece um símbolo do isolamento que esta pandemia está causando. É por isso que a questão que vocês me pediram para abordar hoje à noite é de fundamental importância: como redescobrir o dom da comunidade em tempos de isolamento social?
O que estamos vivendo é uma crise, mas as crises também podem se revelar dons maravilhosos. Cada Eucaristia é a reapresentação dramática da crise que deu início ao cristianismo. Lembramos como, na noite anterior à sua morte, Jesus celebrou uma última ceia com seus discípulos. Ainda assim, a comunidade já estava começando a se desintegrar. Judas já havia traído Jesus; Pedro, por outro lado, estava prestes a renegá-lo. A maioria dos outros discípulos iria fugir. Jesus estava prestes a entrar no isolamento mais profundo.
No Getsêmani, ele enfrentaria a morte sozinho enquanto os discípulos dormiam, discípulos que depois em sua maioria o abandonariam. Por fim, ele teria suportado a maior solidão, pregado na cruz no centro de uma multidão que zombava dele e, aparentemente, também abandonado por Deus. Mas então aconteceu a Última Ceia: Jesus assumiu para si esse colapso da comunidade e a transformou. Tornou-se uma comunidade de uma intimidade inimaginável. Pensem nisso. Cada Eucaristia é a celebração de uma nova comunidade nascida do completo isolamento dos últimos dias de Jesus.
Fomos atingidos por três formas de isolamento. A maioria de nós foi separada da própria família e amigos durante esse isolamento social. Depois, há o doloroso isolamento da exclusão da presença física durante a Eucaristia. A terceira forma de isolamento que muitos de nós experimentamos nestes dias foi a morte de amigos e familiares. Cada uma dessas formas de isolamento representa uma dor e uma perda, mas cada uma delas oferece novas formas de pertencimento mútuo. Cada uma pode ser uma crise que traz frutos. Concluirei falando sobre como essa pandemia poderia ajudar a Igreja a superar seu isolamento do resto da sociedade.
Então, vamos começar com o isolamento social. Entre nós, muitos se viram obrigados a permanecer fechados em suas casas sozinhos ou com apenas alguns membros de sua comunidade. Tive o privilégio de viver em uma comunidade de vinte frades, a maioria jovens. Mesmo para mim, no entanto, foi doloroso não poder encontrar minha família ou os amigos.
Fomos privados do contato. Não nos foi permitido abraçar e beijar as pessoas que amamos. Foi negado aos avós o contato com seus netos. Até um inglês como eu sabe que é o contato que alimenta nossa humanidade! Na Capela Sistina, Michelangelo nos mostra como Deus dá vida a Adão com o contato. Precisamos de contato para não definhar. Segundo Tomás de Aquino, o tato é o mais fundamental dos sentidos humanos.
Precisamos dos rostos das pessoas que amamos. Precisamos encontrar sossego em seus olhares. De volta à Inglaterra, no início da crise, a primeira coisa que fiz foi baixar o Skype e o Zoom para ver os rostos das pessoas queridas. Não é o ideal. Olhar para uma tela não é o mesmo que relaxar na presença de outras pessoas. Se essa perda da presença foi difícil para mim que sou inglês, não ouso pensar em como tenha sido para vocês, italianos!
Para muitos, o pior aspecto do isolamento social é encontrar-se confinado sozinho ou com nossa família. Pascal dizia que "todos os problemas da humanidade derivam da incapacidade do ser humano ficar sentado em uma sala sozinho e em silêncio". Harold Bloom, um crítico literário estadunidense, escreveu: "Ao longo dos anos, desenvolvi um horror crescente da solidão, ter que enfrentar noites de insônia e dias atordoados em que o eu deixava de saber como falar comigo mesmo".
Não podemos escapar de nós mesmos! Isso, no entanto, pode nos tornar capazes de uma comunhão mais profunda. Você descobre quem você é. Dia após dia, você se confronta com seus parentes mais próximos. Caem as máscaras. Existem duas opções: ou você se afasta mais ainda ou se aproxima em uma nova modalidade.
Em 1364, com apenas 17 anos, Catarina de Siena iniciou um período de autoisolamento de três anos. Ela não fez isso para fugir da peste bubônica, mas para dedicar sua vida à oração. Dessa maneira, ela se descobriu, disse que havia entrado na "cela do conhecimento de si mesma". Ela se viu diante da terrível clareza de quem ela era: todas as ilusões e fantasias haviam sido removidas. Não foi um olhar narcisista para o próprio umbigo. Ela também descobriu que era justamente aquela Catarina que era totalmente amada por Deus. Esse é o fundamento de sua vida espiritual: você conhece a si mesmo somente quando percebe que é totalmente amado.
Catarina escreveu para Raimundo da Capua, seu amigo dominicano: "Tente se conhecer". Nós devemos entrar na "noite do conhecimento de nós mesmos". Descobrimos nossa própria sombra. Catarina escreveu: "Minha sombra me assustou". Só então descobriremos Deus, o único cujo amor, em todo momento, nos dá o dom de existir. Depois disso, poderemos ficar tranquilos em ser nós mesmos, porque estaremos em Deus.
Catarina descreve Deus como uma cama sobre a qual alguém pode descansar. "Atravesse a cela e deite em sua cama, aquela cama em que se encontra a terna bondade de Deus, que você encontra dentro desta cela, você mesma". Neste tempo de isolamento, tivemos que nos confrontar conosco mesmo. A maioria de nós fez um filme sobre quem é. É difícil manter essas fantasias quando você está sozinho ou fechado em casa com sua família. Mas essa é a pessoa real amada por Deus. Essa é a pessoa real, e não aquela imagem criada com cuidado no Facebook que nos rendeu mil amigos ou o avatar em algum mundo de fantasia.
O isolamento pode ser destrutivo: crianças e pais começam a se considerar insuportáveis uns para os outros, enquanto os casais passam a experimentar períodos de horríveis silêncios. Em Wuhan, China, o número de divórcios aumentou consideravelmente após o término do período de quarentena. No entanto, também pode ser um momento em que a outra pessoa se revela em sua fragilidade, vulnerabilidade e beleza. Catarina escrevia que "nada neste mundo sensível ao nosso redor pode ter uma beleza comparável à alma humana".
Eu amo os irmãos da minha comunidade, mas passo muito tempo longe, em outros países, pregando e ensinando. Assim que voltava para casa, eu já estava ocupado em planejar a minha próxima viagem ao exterior. Eu ficaria chocado se eles me dissessem que eu passaria dois ou três meses com meus irmãos, sem a possibilidade de sair do prédio ou ver outras pessoas. Eu teria pensado: certamente isso vai acabar em morte! Na realidade, porém, foi um presente. Entendi, com uma profundidade que nunca tinha conhecido antes, que eles são meus irmãos. Eu descobri a imensa alegria da fraternidade. Espero que, uma vez de volta a viajar, nunca esqueça essa inédita revelação de como pertencemos uns aos outros como irmãos e irmãs dominicanos.
Se as pessoas são obrigadas a ficar juntas, precisam aprender a ler o rosto dos outros. Pergunte a si mesmo: sou capaz de ler em seus rostos os sinais do medo e da esperança, da ternura e da ansiedade? Se eu for capaz, poderei dar uma olhada rápida em sua beleza e dignidade como filhos de Deus. Falo frequentemente de um episódio que aconteceu comigo na Argélia, que me ensinou a beleza e a complexidade do rosto humano. Eu estava no carro com um bispo dominicano que estava me levando para o Saara quando nos deparamos com um conflito entre o exército e a população local. A certa altura, nosso carro estava cercado por uma multidão com pedras nas mãos: naquele momento, pensei que o fim havia chegado. Jamais esquecerei o rosto daquele jovem que estava do outro lado do para-brisa segurando uma pedra do tamanho de uma bola de futebol na mão. Sua expressão era de raiva, mas além da raiva eu podia ver ondas de medo, e além do medo eu podia ver o rosto de uma pessoa que podia ser querida, a pessoa amada por sua mãe. Todas essas emoções estavam presentes naquele rosto, toda a complexidade do ser humano. Em vez disso, eu tinha que aprender a ver.
Uma mulher cristã em Amsterdã administrava um albergue para pessoas carentes. Uma prostituta disse a ela: "Você deve ser cristã". "Como você sabe?" a mulher perguntou. A resposta da prostituta foi: "Porque você me olha nos olhos!" Se conseguimos realmente ver o rosto de outra pessoa, como podemos não a amar?
Durante esse período de isolamento social, podemos, portanto, entrar na cela do conhecimento de si mesmos, como disse Santa Catarina. Em Deus nos confrontamos com nós mesmos. Vemos toda a nossa fraqueza e fragilidade, mas ao mesmo tempo vemos que somos amados infinitamente. Podemos nos abrir para o dom do outro. Esse é o fundamento para uma comunhão mais profunda, na qual podemos nos dará nós mesmos e receber o outro exatamente como somos.
A segunda experiência de isolamento ou exclusão é a da Eucaristia. Algumas pessoas provavelmente ficaram felizes por não terem mais que ir à missa aos domingos, principalmente os adolescentes! Outros, por outro lado, experimentam essa situação como uma profunda privação. Recebemos uma comunhão espiritual e Santo Tomás de Aquino afirma que esta é a verdadeira união com Cristo e com a Igreja em caridade e na fé (STh III, q. 80, a. 1). Mesmo assim, as pessoas continuam sentido falta de se reunir juntas e receber fisicamente o corpo e o sangue de Cristo. A comunhão espiritual não parece suficiente. Tive a possibilidade de participar todos os dias da missa com a minha comunidade. Todos os dias transmitimos em streaming, e o número de pessoas que participam on-line é 10 vezes maior do que o número de pessoas que jamais participaram fisicamente. No entanto, uma querida amiga teóloga me confessou como era doloroso para ela ver reunidos ao redor do altar um grupo composto apenas de homens.
O que acontecerá quando as igrejas reabrirem? As pessoas voltarão a frequentá-la? Ou terão superado os velhos hábitos, decidindo que não sentem falta de ir à igreja? As pessoas continuarão participando da missa on-line? Afinal, é muito mais confortável ... E pode-se inclusive escolher ouvir as melhores homilias ou diminuir o volume quando o padre começa a ficar entediante!
Não temos nenhuma ideia do que acontecerá, mas talvez essa comunhão espiritual tenha trazido à luz uma dimensão da Eucaristia que esquecemos facilmente. Durante a nossa missa diária em Oxford, temos irmãos e irmãs dominicanos que nos seguem do Vietnã, temos participantes da Malásia, Indonésia, Nigéria, Cingapura e até da Itália. Essas pessoas agora fazem parte da nossa comunidade, nossa assembleia se tornou global.
Desde o Concílio Vaticano II, a Eucaristia tem sido considerada principalmente como a reunião da comunidade local. As pessoas são identificadas com sua paróquia, se não mesmo com sua missa, a das 8h30 ou a das 9h30. Sentimos que somos irmãos e irmãs dessa assembleia que conhecemos e com quem trocamos o gesto da paz, quando nos será novamente permitido fazê-lo! Desse modo, podemos facilmente esquecer que a Eucaristia é o sacramento da nossa comunhão com todos aqueles que não estão fisicamente presentes ali: a comunhão dos santos, dos vivos e dos mortos. Estamos em comunhão com aqueles que sofrem no Oriente Médio, com os migrantes e os sem-teto. Esse é o sacramento do Reino, quando todos nos encontraremos reunidos em Cristo. Portanto, é certo que as pessoas queiram voltar à Eucaristia, mas talvez essa crise tenha nos revelado uma dimensão mais profunda da Eucaristia, nosso desejo pelo reino de Deus, quando todos serão um só.
Eu gostaria muito de falar sobre a exclusão do sacramento da reconciliação, mas o tempo é tirano e agora devo passar para o terceiro terrível isolamento desta crise, a morte. Essa pandemia trouxe a sombra da morte (cf. Lc 1,79) sobre a humanidade. Somos confrontados não apenas com a morte de indivíduos, mas também com a pretensão da morte de reinar. E, como lemos no livro do Apocalipse: “E olhei, e eis um cavalo amarelo, e o que estava assentado sobre ele tinha por nome Morte; e o inferno o seguia" (Ap 6,8).
No entanto, nós cristãos devemos olhar nos olhos a morte, percebendo a dor e o luto que ela traz, mas recusando nos curvar à sua vontade. Quando estava morrendo, um de nossos confrades em Oxford chamou a comunidade para sua cela, renovou suas promessas batismais e depois ofereceu a todos um copo de uísque. Um verdadeiro dominicano! Quando meu querido amigo dominicano David Sanders percebeu que a morte estava se aproximando, ele disse: "Por todos esses anos eu preguei a ressurreição. Agora será o caso que demonstre que realmente acredito nisso”. Davi desafiou a pretensão de soberania da morte.
Portanto a morte é solidão, e muitos morreram sozinhos no hospital sem a presença de entes queridos. Porém, nosso testemunho neste tempo é que basicamente não é possível nos separar dos outros e de Cristo: a Igreja é a comunhão dos vivos e dos mortos.
Finalmente, na minha experiência pessoal, a Igreja frequentemente sofre de isolamento cultural. A nossa fé pode parecer completamente isolada da experiência cotidiana. Por exemplo: toca a imaginário de muitos jovens? Talvez essa crise possa nos ajudar a reencontrar o contato. Para ver como, é necessário observar uma característica da sociedade contemporânea que também envolve a Igreja. A sociedade europeia se estruturou a partir daquilo que o filósofo canadense Charles Taylor chama de "cultura de controle". Taylor argumenta que, desde o século XVI, consideramos o mundo como um material a ser usado para nossos propósitos pessoais. O mundo é medido, manipulado, pilhado e dobrado de acordo com a nossa vontade. É o que o Papa Francisco chama de "paradigma tecnológico". O mundo se tornou não a nossa casa para amar, mas algo para consumir. Ou seja, foi transformado em commodity. Tudo está à venda: água, terra e até humanos com o início da escravidão. Tudo existe para ser usado. Segundo a Laudato Si ', foi essa mentalidade que trouxe à atual crise ecológica que está literalmente asfixiando o nosso planeta. O planeta é privado de oxigênio.
Estamos vendo a ascensão do poder estatal, da autoridade central, da expansão da lei, dos exércitos permanentes e da força de polícia. Muitos deles eram necessários: a sociedade não poderia sobreviver sem a polícia. No entanto, o predomínio desse modelo está nos sufocando. A Igreja também se tornou estruturada e ligada ao controle. O poder foi centralizado no Vaticano, todo desvio foi punido.
Toda essa cultura de controle, no entanto, foi desafiada por um minúsculo pedacinho de gelatina, invisível a olho nu. Confrontados com esse vírus microscópico, descobrimos que somos quase impotentes. Nossas reivindicações de dominar o mundo demonstram ser uma farsa. Nós, que privamos o planeta do ar, agora nos encontramos ofegando em busca de oxigênio. Se não amadurecermos uma relação amorosa e respeitosa com o nosso planeta, todos nos encontraremos perecendo por envenenamento e falta de oxigênio.
E a Igreja? O Papa Francisco está tentando purificar a Igreja dessa mesma cultura de controle, ele quer descentralizar o poder dentro dela. A vida da Igreja não deve se basear em ditames vindos do alto e que todos devam obedecer. Vivemos no Espírito Santo através do diálogo mútuo e, como diz São João, "o vento sopra onde quer. Você o escuta, mas não pode dizer de onde vem nem para onde vai" (Jo 3, 8). Francisco afirma na Evangelii gaudium que "não há maior liberdade do que deixar-se levar pelo Espírito, renunciando a calcular e controlar tudo, e permitir que ele nos ilumine, nos guie, nos orientes e nos conduza para onde ele quiser" (n 280).
O Espírito Santo é a comunicação do Pai e do Filho. Compartilhamos a vida de Deus por estarmos envolvidos nessa (eterna) conversa criativa e dinâmica que é a vida de Deus. A palavra de Deus se fez carne em um homem capaz de diálogo, que passou tempo conversando com pessoas. que, aos olhos dos outros, não mereciam o tempo dedicado a elas: a mulher samaritana no poço, o homem nascido cego. Jesus falava com todos. Sua morte fez com que o silêncio baixasse sobre a conversa, mas na manhã do domingo de Páscoa ela começou novamente no jardim quando ele encontrou Maria Madalena: "Maria!", "Rabuni!". Para a Igreja, o desafio é tornar-se uma comunidade de diálogo mútuo e com Deus. Eis porque o Papa Francisco está tentando colocar os sínodos no centro da vida da Igreja: porque são as conversas da Igreja, onde ouvimos uns aos outros, sem ter certeza de onde nos levará o Espírito imprevisível. Então, vamos começar, sem demora, a aprender a doce arte de conversar entre nós.
Essa foi a arte fundamental de Catarina de Siena: ela falava com Deus, razão pela qual seu livro mais importante se chama Diálogo. Ela adorava conversar com as pessoas. Segundo seu amigo mais próximo, Raimundo de Cápua, ela "continuaria falando de Deus, sem comer nada por cem dias e cem noites, se tivesse ouvintes que pudessem acompanhar o que ela dizia e participar da conversa".
O desafio para todos nós é, portanto, aprender a falar uns com os outros, obedientes ao Espírito Santo que se encontra entre nós: esta é a mais humana de todas as artes. O poeta israelense Amos Oz dizia isso sobre seu avô: “Ele tinha uma qualidade que raramente é encontrada entre os homens, uma qualidade maravilhosa que, para muitas mulheres, é a mais sexy em um homem: ele sabia escutar. Ele não fingia apenas educadamente ouvir, enquanto esperava ansiosamente que sua parceira terminasse o que estava dizendo e fechasse a boca. Ele não interrompia a frase da mulher para terminá-la em seu lugar. Ele não a interrompia resumindo o que estava dizendo a fim de passar para outro assunto. Não deixava sua interlocutora falar à toa enquanto ele preparava sua resposta em sua cabeça quando ela finalmente tivesse terminado. Ele não fingia estar interessado ou entretido, realmente estava”.
Essa pandemia nos confronta com perguntas que não sabemos como responder. Colocou à prova muitas de nossas suposições sobre como vivemos juntos e qual é o significado de nossas vidas. Só encontraremos as respostas se buscarmos a verdade juntos. A Igreja deveria ser uma comunidade de pessoas que estão em busca.
Isso não é relativismo. A verdade de nossa fé foi revelada e confessada no Credo, porém sua plenitude está sempre diante de nós. Nunca está em nossas mãos. Jesus diz: " Mas, quando vier aquele Espírito de verdade, ele vos guiará em toda a verdade" (Jo 16, 13). Os fundamentalistas acreditam que temos toda a verdade em mãos, enquanto os relativistas acreditam que não temos nada. Em vez disso, nós vivemos graças ao Espírito, em um caminho em que a plenitude da verdade nos chama a percorrer juntos.
É por isso que devemos superar o isolamento cultural da Igreja. Todos os que buscam a verdade são nossos aliados, não importa a que fé pertençam ou se não têm nenhuma. Santo Tomás de Aquino afirmava que toda verdade, não importa quem a fale, vem do Espírito Santo: ele era um discípulo do pagão Aristóteles. Quando foi perguntado ao Beato Pierre Claverie, bispo dominicano, porque dialogasse com os muçulmanos, ele respondeu: "J'ai besoin de la vérité des autres", preciso da verdade dos outros. Essa abertura levou-o ao martírio.
Estamos enraizados em nossa tradição cristã, mas esta está viva pois está aberta e disposta a aprender com outros que estão em busca. Artistas, filósofos, diretores, músicos, poetas e escritores nos fornecem pão para nossa jornada. Se os ouvirmos, eles poderão por sua vez nos ouvir quando pregaremos a boa notícia.
Podemos, portanto, dizer que essa crise poderia tornar mais profunda a nossa comunidade em muitos níveis. Através do isolamento social, confrontamo-nos com nós mesmos e com os outros. Caem as máscaras. Isso poderia levar a uma comunhão mais profunda. Só podemos ter empatia pelos outros se tivermos a coragem de enfrentar a nós mesmos e entrar na cela do conhecimento de si.
A dor da exclusão da Eucaristia poderia nos levar a um desejo mais profundo do Reino, onde todos seremos um só. Também podemos ter a coragem de olhar de frente a morte e negar a ela a sua pretensão de reinar. A nossa é a comunidade dos vivos e dos mortos. E, finalmente, enquanto enfrentamos todas essas questões novas e complicadas, podemos escapar do isolamento social da Igreja e buscar a comunhão com todos os que buscam a verdade.