08 Julho 2020
Farida Fadoul Nasser tem quinze anos, é da República Centro-Africana e, desde 2014, vive como refugiada urbana no Chade. A chegada do coronavírus a colocou em alerta. Tinha medo de se contagiar, evidentemente, mas também que a pandemia acentuasse o avanço de outra pandemia muito mais silenciosa que assola milhões de meninas e adolescentes em todo o mundo: a da mutilação genital feminina (MGF) e os casamentos infantis forçados. “Aqui, muitas meninas sofrem mutilação e gravidez indesejada. A educação nos protege disso. Agora, ficamos sem escola e nossos direitos estão em perigo”, disse ao Serviço Jesuíta aos Refugiados (JRS).
A reportagem é de Laura Sanz-Cruzado, publicada por Público, 06-07-2020. A tradução é do Cepat.
Testemunhos como o seu alertaram as organizações que trabalham em defesa dos direitos das meninas e adolescentes de que o fechamento de escolas, por causa da Covid-19, juntamente com a suspensão de programas de prevenção para esse tipo de prática, os meses de confinamento e a crise econômica provoquem um aumento da violência e dos abusos contra meninas e jovens.
De fato, de acordo com estimativas do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), o organismo da ONU responsável pela saúde sexual e reprodutiva, esse coquetel de fatores pode gerar, nos próximos dez anos, 2 milhões de mutilações genitais femininas, 13 milhões de casamentos forçados, 7 milhões de gravidezes indesejadas e 31 milhões de casos de violência de gênero, que em outras circunstâncias poderiam ser evitados.
“O fechamento das escolas, a insegurança econômica e alimentar e a falta de medidas de proteção social estão associadas a um maior risco de abuso e exploração infantil, negligência e violência de gênero contra as meninas, casamento infantil precoce e forçado e práticas prejudiciais como a mutilação genital”, explica em um comunicado a aliança No Quiero (Não quero), formada pelas organizações Anistia Internacional, Entreculturas, Mundo Cooperante e Save the Children. Por isso, exigem que os governos protejam as meninas, garantam sua educação e reativem urgentemente os programas de prevenção da mutilação genital feminina e do casamento infantil forçado, que as medidas de confinamento e distanciamento físico impediram de continuar nestes meses.
O coronavírus, além de interromper essas iniciativas, fez desaparecer dos espaços públicos as meninas e adolescentes, e isso é justamente um dos fatores que faz com que toda essa violência de gênero entre em descontrole, como aponta a diretora de Comunicação e Relações Institucionais de Entreculturas, Raquel Martín. “As violências contra as mulheres ocorrem em casa, no privado, no oculto. Os programas de prevenção e escolarização, juntamente com os esforços da sociedade civil e das próprias meninas e mulheres, dão resultados, ajudam a dissipar mitos e conscientizam sobre as consequências terríveis de práticas como a mutilação genital. Isso é algo que se deixou de fazer por conta da pandemia e esse é o risco que se corre”, ressalta.
E o risco não é apenas que esses avanços parem, mas que os fundos e recursos que até agora eram destinados a combater essas práticas sejam usados para controlar a pandemia e acabem retrocedendo em todo o avanço, alertam pela organização No Quiero.
O Fundo de População das Nações Unidas calcula que mais de 200 milhões de meninas e mulheres foram submetidas a algum tipo de mutilação genital por razões psicossexuais, culturais, estéticas, religiosas e socioeconômicas. “A mutilação genital feminina constitui uma forma de tortura, discriminação e violência de gênero que viola o direito à saúde, a autonomia e a decisão das meninas sobre sua sexualidade e reprodução. Embora o mundo venha somando avanços na erradicação dessa prática e a cada ano a proíbem em mais países, a crise atual pode causar um aumento”, denuncia o diretor da Anistia Internacional, Esteban Beltrán.
Mas a irrupção do coronavírus também aumentará uma prática tremendamente ligada à própria mutilação genital feminina: os casamentos infantis. E em tempos de dificuldades econômicas, é mais provável que haja famílias que decidam casar suas filhas para economizar nos gastos que implica cuidá-las, o que significa, em muitos casos, a mutilação genital das meninas para casa-las mais facilmente. Como explica Raquel Martín, “o casamento forçado aparece como uma renda extra para as famílias, quando a renda desaparece e, com ela, também vem a mutilação genital como prova de que essa menina pode se casar”.
Os casamentos forçados não apenas levam a mais mutilações genitais, mas também a mais gestações indesejadas e a mais casos de violência de gênero. É um círculo vicioso que está intimamente relacionado ao acesso à educação de meninas e adolescentes, porque a escola funciona como um alerta social e proteção.
O problema é que, para muitas dessas meninas, a Covid-19 fez desaparecer essa proteção. Do total de estudantes que ficaram sem aulas presenciais, devido à pandemia, quase 743 milhões são meninas e, destas, mais de 111 milhões vivem nos países menos desenvolvidos do mundo, segundo a UNESCO. E isto é o que mais preocupa: a desconexão prolongada de meninas e adolescentes com a escola que as mantém a salvo.
Por isso, “é fundamental que os governos invistam na garantia de que quando as escolas reabrirem, meninas e jovens não sejam deixadas para trás”, pede o vice-presidente executivo de Entreculturas, Daniel Villanueva. Porque deixa-las para trás apenas desencadearia ainda mais a violência que essas meninas e adolescentes sofrem por causa da desigualdade de gênero e da pobreza que as cercam.
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As consequências do coronavírus: mutilações genitais femininas e casamentos infantis - Instituto Humanitas Unisinos - IHU