02 Julho 2020
Com a renda básica concedida após o acordo de paz, os ex-guerrilheiros puderam se unir e criar seus projetos produtivos, ademais de equipar seus antigos Espaços Territoriais de Capacitação e Reincorporação (ECTR). Dizem que sem esse dinheiro não poderiam ter se reincorporado com êxito. Analistas consideram que o debate sobre o auxílio será inevitável nas próximas eleições.
A reportagem é de Laura Dulce Romero, publicada por El Espectador, 30-06-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
A pandemia deixou exposta as debilidades da economia colombiana. No país em que cerca de 48% da população vive da informalidade, uma emergência sanitária como a que se vive pode aumentar a taxa de pobreza acima de 32%, segundo os cálculos da Cepal. Isso significaria retroceder a quase 20 anos atrás. Enquanto persiste o fechamento de vários setores econômicos, será cada vez maior o número de cidadãos que dependerão do Estado para sobreviver.
Em meio a esse panorama, a discussão para que se aprove a renda básica ganhou ainda mais relevância. Pode parecer um debate novo, mas há exemplos que podem dar luzes de como funcionaria. Um deles está relacionado com o acordo de paz e os ex-combatentes das Farc.
Quando se assinou o acordo entre a extinta guerrilha das Farc e o governo nacional, ficou estipulado que os ex-guerrilheiros, para seu processo de reincorporação à sociedade, receberiam uma renda básica mensal que corresponde a 90% do salário mínimo vigente, o que equivale aproximadamente a 790.021 pesos colombianos (211 dólares estadunidenses). Ademais, receberiam um benefício inicial de dois milhões de pesos (534 dólares estadunidenses) e, uma vez que consolidassem um projeto produtivo, receberiam mais oito milhões (2.139 dólares). O processo que projeto a ex-guerrilha, baseado no modelo cooperativista, previa que o Estado investiria esse último recurso em cooperativas organizadas cujo projeto fosse aprovado por uma instância onde estivessem ambas partes, o Conselho Nacional de Reincorporação (CNR).
Quando foi conhecida a decisão do governo, houve uma forte oposição porque se considerava que poderia ser um fracasso entregar tantos recursos para os projetos produtivos. Porém a realidade é outra. O processo de aprovação desses empreendimentos foi muito lento e apenas 27% dos 13 mil ex-combatentes receberam esses 8 milhões de pesos para seus projetos coletivos ou individuais, apesar de que já cumpram 3 anos que largaram as armas. De fato, a Agência Nacional de Reincorporação (ARN) teve que estender o prazo do benefício mensal. Se não fosse por isso, insistem os ex-guerrilheiros, não teriam conseguido ser reincorporados com êxito.
Quando 162 guerrilheiros chegaram à zona veredal de Água Bonita, em Caquetá, em fevereiro de 2017, tinham somente seus fuzis e equipamentos, que deveriam entregar meses depois. Para então, contarem com uma terra emprestada, vontade de trabalhar e muitas ideias dispersas. “Depois chegou a renda básica e decidimos criar um fundo comum, onde cada um se comprometeu a dar um milhão de pesos e assim organizar iniciativas que nos permitissem criar expectativas de melhores condições de vida”, conta Federico Montes, ex-guerrilheiro e que hoje vive na vereda.
Durante três meses, tiravam parte de sua renda mensal para dois negócios que, acreditavam, seria um êxito. Em Caquetá são famosos os abacaxis, assim que decidiram investir os 162 milhões em um cultivo e também em um projeto de piscicultura. Mão de obra e conhecimento havia de sobra, pois a grande maioria dos ex-combatentes vem de famílias campesinas e queriam trabalhar com a terra.
Graças a essa renda puderam dar vida a suas iniciativas e conformar uma cooperativa. “A renda básica também permite que exista outro tipo de associações e trabalhos, como as cooperativas. Esse tipo de organização é diferente, porque desde sua conformação pensa-se que não é justo que no interior existam aqueles que têm mais que os outros. O cooperativismo baseia-se em relações de cooperação e ajuda mútua, e espera que todos seus integrantes tenham seus direitos garantidos”, acrescentou Montes.
As vendas cresceram e com os lucros criaram uma papelaria, uma carpintaria, uma loja, um armazém e uma padaria. O Espaço Territorial começou a se tornar um povoado: “Hoje todas essas iniciativas onde há mais de 300 pessoas, nos ajudaram a conformar o povoado Édgar Ramírez, na vereda de Agua Bonita”.
Com mais orçamento em suas mãos, os ex-combatentes pensaram em um novo desafio: adquirir a terra que o Governo havia lhes alugado. Novamente, reuniram-se todos os membros da cooperativa e se comprometeram a tirar uma parte da renda para comprar uma terra. “Chegamos a um acordo de compra e venda do prédio para o antigo proprietário. Ele nos deu uma tarifa cômoda e nos deu uma facilidade de pagamento em sete anos. Estamos nesse processo. Com os excedentes que temos dos projetos, vamos abonando, de acordo com nossas condições”.
Uma história similar se viveu no Espaço Territorial de Tierra Grata, no município de La Paz (departamento de Cesar). Abelardo Caicedo, conhecido nas filas da guerrilha como Solís Almeida, relata que se não tivesse sido pela renda básica não teriam comprado o terreno de 130 milhões de pesos onde vivem.
“Conseguimos dinheiro emprestado com um banco, que nos cobrou juros baixos. Cada um devia pagar um milhão de pesos mais os juros, que não foram altos. Fazendo as contas, cada um teve que pagar 100 mil pesos a mais. Graças a isso hoje temos terra, onde construiremos nossas casas. Entre outras coisas, já temos a casa modelo”, disse Caicedo.
Também conseguiram criar a Associação de Pequenos Fazendeiros (Asopegan), que hoje é a grande fonte de sustento e lhes dá reconhecimento na região. “Compramos 30 novilhas e um touro, e com isso começamos. Ademais, outros companheiros investiram em galinhas e cultivos. Desse dinheiro fizemos um caldo”.
Uma vez que os projetos partiram em bom ritmo, os 182 ex-guerrilheiros de Tierra Grata investiram em melhorias das instalações do território. A partir da renda básica, assegura Caicedo, instalaram a água e a luz 24 horas. “Cada um deu um pouco para comprar mangueira e nós mesmos trouxemos a água. Colocamos a mão de obra: 1.800 jornaleiros. Um jornaleiro é o que equivale a um dia de trabalho. Esse projeto conseguiu impactar a comunidade do Mirador, um bairro de San José de Viento, no município de La Paz. Esse projeto realizamos graças às duas cooperativas que criamos. Foram ambas que deram o dinheiro”.
Caicedo ressalta que esses trabalhos funcionaram como um processo de reconciliação. Os ex-combatentes trabalharam com a comunidade e o Poder Público. O exército lhes forneceu um enfermeiro para apoiar os trabalhadores machucados e, ainda, enviou dois soldados para trabalhos braçais. Porém esse não foi o único apoio. Em 90% desses projetos de ex-combatentes, foi recebido o apoio de diferentes fundos que foram criados com recursos da comunidade internacional e com apoios de governos de maneira unilateral.
Com o equipamento pronto, nasceram novas ideias. Agora contam com oficinas de decoração, carpintaria e confecção. A venda de uniformes ia bem, mas com a pandemia se dedicaram à produção de máscaras, que doaram a vários hospitais da região. Também destacam a criação da feira criada junto com o Programa Mundial de Alimentos. Para evitar os contágios, conformaram um comitê que se encarrega de abastecer a comunidade e atribuir preços justos.
Por tudo isso, Caicedo afirma que “a renda básica é a cota inicial para poder viver melhor”. Crê que é um impulso para que as pessoas empreendam projetos de vida dignos e desenvolvam sua criatividade. E nisso concorda Montes, desde Caquetá, para quem este auxílio é uma maneira de erradicar a violência. Está certo de que se esta ferramenta não existisse, muitos teriam voltado às armas ou alguns teriam se deixado tentar pelas economias ilícitas ao não contar com outras alternativas, pois para esse momento não tinham experiência e laboralmente não eram competitivos. Com essa ferramenta puderam se profissionalizar.
Para ambos, em meio à pandemia, o Governo Nacional deveria aplicar a renda básica de emergência para aqueles que ficaram desempregados ou têm trabalhos informais. “Com este vírus nos demos conta de que é necessária, porque garante que o povo tenha o que comer. Em Cesar, por exemplo, muita gente vive de vender empanadas, água, sucos nas ruas. Essas pessoas que não têm emprego informal ficaram na miséria”, acrescenta Caicedo.
A renda básica, manifesta Montes, pode ser uma maneira de saldar a dívida histórica estatal de acabar com a desigualdade e a pobreza. Inclusive, a vê como oportunidade para aqueles que preferem investir, como eles, em um empreendimento. “Pode ser vista como uma solução que permite sair desta crise, e também uma alternativa para nos planejarmos como sociedade, porque não podemos seguir sendo um país onde mais de 50% da força produtiva dependa de coletas. É incrível que em uma sociedade que se chama de civilizada existam seres humanos que tenham como viver dignamente”.
David Cassasas, pesquisador de teoria social e política da Universidade de Barcelona e membro da Basic Income Earth Network (BIEN), diz que solucionar um problema tão profundo de violência implica processos massivos de inserção social do povo. Isso significa pensar a qual sociedade se convida, não somente aos ex-guerrilheiros das Farcs, mas também de outros grupos, como paramilitares, que inclusive optam por negócios ilícitos.
“A que sociedade os convidamos: a uma onde há oportunidades ou outra onde o que te espera é um trabalho de merda, informal e com baixa remuneração? Entendo que projetos que passam pela garantia de recursos para todos e todas possam permitir planejar uma convivência social e econômica mais frutífera. Quando tens a possibilidade de se vincular a um projeto de vida no coletivo, ajuda muito a deixar para trás o que te levou a essa violência e se inserir e gerar o tecido social com capacidade de absorver pessoas que querem começar uma vida nova”, destaca o pesquisado.
Nas últimas semanas, os partidos da oposição, entre eles o da ex-guerrilha Farc, lideraram um projeto de lei para que durante os meses de confinamento as pessoas mais pobres possam ter acesso a essa ferramenta. Embora os defensores da renda básica a vejam como um direito universal e ilimitado, as bancadas na Colômbia a colocam como uma alternativa para evitar que mais famílias caiam na pobreza durante a emergência sanitária.
“É um programa de emergência pelo tempo da pandemia, para dar resposta à situação do confinamento. Essas circunstâncias não permitem às famílias subsistir e é um dever do Estado apoiá-las e lhes dar dinheiro. Se uma pessoa vai presa, o Estado garante na prisão a alimentação, a saúde e a moradia. Pois esperamos que faça o mesmo com aqueles que devem se fechar em suas casas para se proteger de um vírus. Isso não é impossível, porque para isso está o fato de o Estado pertencer a todos por igual. Por isso pagamos impostos”, explica Iván Marulanda, senador do Partido Aliança Verde e que lidera o projeto.
No entanto, Marulanda reconhece que sua proposta abre as portas para uma discussão mais ampla sobre essa ferramenta que é cada vez mais popular no mundo. Ele considera que nas próximas eleições será um tema obrigatório, embora, por enquanto, ele o veja como uma salva-vidas para as nove milhões de famílias afetadas. Até o momento, houve um debate no terceiro comitê e há reuniões informais para receber mais apoio de outras partes.
Carlos Sepúlveda, decano de economia da Universidad del Rosario, expressa que até agora a Colômbia não havia enfrentado essa discussão, apesar do fato de existirem exemplos com bons resultados, como o de ex-combatentes. Ele acredita que a renda básica servirá para avançar em uma melhor redistribuição de recursos, uma necessidade que ficou evidente com a pandemia: “A Colômbia tem um sistema tributário desigual, deficiente e pouco redistributivo. Quando você vê a distribuição de renda antes e depois dos impostos, é exatamente a mesma. Em outras palavras, o papel do regime tributário, que busca repassar dinheiro de ricos para pobres, é praticamente nulo”.
A nova tarefa, segundo Sepúlveda, será projetar a ferramenta de acordo com o princípio do cuidado mútuo e com o mandato de que seja sustentável e tenha um impacto real na vida de quem recebe um pagamento mensal do Estado. Mas, para isso, outros mecanismos também devem ser considerados nos locais onde os mais ricos paguem mais impostos e não recaia apenas sobre as empresas. Assim, ele insiste, mais se arrecada, e, acima de tudo, há um incentivo maior para que mais empresas sejam criadas no país e sejam tão bem-sucedidas quanto as dos ex-guerrilheiros.
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Colômbia. Renda básica a ex-guerrilheiros das Farc, o motor que permitiu que deixassem as armas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU