15 Junho 2020
Em seu novo ensaio, o filósofo francês descreve as sete fases que transformam um estado em ditadura e os perigos do Big Brother. "Nunca antes houve uma servidão voluntária tão forte".
Teoria della dittatura:
preceduto da Orwell e l'impero di Maastricht
Michel Onfray
Michel Onfray é um filósofo que eu leio exatamente como ouço Thelonious Monk, Chilly Gonzales ou Martha Argerich, quando me sinto em mar aberto, sem direção, eles me dão o horizonte. Onfray é um filósofo libertário, ele é um mensurador da toxicidade do poder; um método anárquico governa seu modo de pensar.
A entrevista é de Roberto Saviano, publicada por La Repubblica, 12-06-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Está sendo publicado na Itália seu livro Teoria della dittatura, um texto que mergulha na complexa descrição de como os governos se transformam em tiranias e como as democracias também se tornam esclerosadas em dinâmicas autoritárias. Onfray identifica sete fases principais que transformam um estado em uma ditadura: destruir a liberdade, empobrecer a língua, abolir a verdade, suprimir a história, negar a natureza, propagar o ódio, aspirar ao Império. O desejo que você sente, quando termina um de seus livros, é ligar para Onfray para esclarecer a constelação de dúvidas que ele desencadeou. Então, desta vez, decidi fazê-lo.
Para destruir a liberdade, você diz, Michel, que é preciso garantir a vigilância contínua, destruir a vida pessoal, eliminar a solidão, se divertir com festas ordenadas, uniformizar a opinião, denunciar os crimes de pensamento. A felicidade, sua busca, pode ser uma ferramenta para combater o autoritarismo ou, pelo contrário, a armadilha inerente à propaganda autoritária, ou seja, você perde a liberdade, mas, em troca, tem mais felicidade?
A felicidade não pode ser a última palavra em um mundo onde existem aqueles que acreditam que não haja nada de errado em obter a própria felicidade às custas dos outros. A luta contra o autoritarismo é uma questão para caráteres moderados, que tenham o senso de interesse geral e a capacidade de colocar de lado a própria felicidade em nome do ideal superior da virtude cívica, como fez Cato, o Velho.
Onfray escreve que, para empobrecer a língua, é preciso: usar uma linguagem de dupla valência, destruir palavras, dobrar a língua à oralidade, eliminar os clássicos. Para abolir a verdade, é preciso: impor a ideologia, manipular a imprensa, divulgar notícias falsas, recriar a realidade.
Todas as ditaduras – pergunto – têm sua neolíngua que reduz todo conceito a slogan: é o que está acontecendo com a web. Existe uma solução?
A escola republicana que ensinava aos meninos e meninas a ler, escrever, calcular e pensar sem olhar para suas origens sociais morreu em maio de 1968. Foi substituída por um dispositivo lúdico no qual a aprendizagem de conteúdos foi abandonada em favor da solicitação de um hipotético gênio infantil. A escola, que antigamente produzia cidadãos, agora produz ovelhas de Panurgo numa linha de montagem. A moralização da rede, que entre outras coisas implicaria também fazer respeitar as leis de um país também nas mídias sociais, é uma ilusão: na rede, de forma anônima, é possível ser negacionistas, revisionistas, antissemitas, misóginos, falocratas e assim por diante. Temos que nos adaptar à realidade: tudo isso é um sinal da decadência de nossa civilização e do advento de outro mundo que terá mais a ver com Orwell e Huxley do que com Dante e Descartes.
Em seu livro, você descreve Amazon, Facebook, Netflix, Google, Apple como a mais articulada forma totalitária que existe. Como combater seu poder hoje, depois de terem sido, durante a pandemia, as plataformas livres para as relações humanas, trabalho, escola e entretenimento?
Essa é de fato a questão política por excelência. No passado, o fascismo, de direita ou esquerda, era vistoso: apresentava-se armado, com botas e capacete, usava a polícia, o exército, os serviços secretos, as prisões, os campos cercados de arame farpado e as torres de vigia. Hoje, porém, o fascismo não é visto, mas ocasionalmente vemos seus efeitos. O Big Brother orwelliano é o mais esperto de todos os serviços policiais e de inteligência de todos os tempos, porque nós mesmos somos ao mesmo tempo vítimas e carnífices desse dispositivo de vigilância e controle. Nunca houve tanta servidão voluntária em nosso planeta como existe hoje. Boécio já nos deu a receita para escapar: " Estejam determinados a não servir mais, e vocês estarão livres”. Para fazê-lo, no entanto, é preciso primeiro perceber que somos escravizados, porque não há pior escravo do que aquele que se considera patrão.
E a esquerda europeia em tudo isso?
A esquerda morreu em março de 1983 com François Mitterrand, que apresentou a Europa liberal como um progresso histórico que traria a plena ocupação, a amizade entre os povos, o fim do racismo e das guerras, a prosperidade econômica. A propaganda era tão insistente que conseguiu aprovar o Tratado de Maastricht em 1992, mesmo que por pouco. Depois disso, ano após ano, o povo percebeu que haviam lhe vendido um produto adulterado, que produzia o contrário do que prometia.
Em "Teoria della dittatura", você fala de uma esquerda que foi de Jean Jaurès e Léon Blum, que depois se transforma em aliança com o capitalismo mais forte. Vocês traz o exemplo de Mitterand: foi má fé ou uma esperança de democratizar o capital?
Uma vez no poder, Mitterrand permaneceu de esquerda por 22 meses: após a chamada ‘virada da austeridade’ em 1983, ele abandonou o socialismo e, até o final de seu segundo mandato de sete anos, em 1995, ele fez políticas de direita, continuando a se apresentar como um homem de esquerda. A "esquerda" no governo fez políticas de direita, enquanto em palavras ele continuava dizendo que era esquerdista e sua esquizofrenia foi apoiada pela maioria do povo francês, que parecia quase que encantado. Essa ‘esquerda’ viveu cinco anos lamentáveis com a presidência de François Hollande e agora está morta, culpada de nunca ter denunciado esse engodo de dimensões históricas.
Fiquei surpreso com sua descrição de De Gaulle como um político autônomo que tentou não transformar a França em uma colônia estadunidense e que, por isso, foi obstaculizado por todos.
De Gaulle era um homem de esquerda apoiado pela direita e Mitterrand era de direita apoiado pela esquerda. Esse é o grande mal-entendido do século XX. De Gaulle é o homem que inventou a Resistência. Ele é o homem que criou o França Livre, arma de guerra que contribuiu para a libertação da Europa. Como chefe de Estado, ele restaurou as liberdades civis e rejeitou com um único gesto o risco do imperialismo estadunidense e, ao mesmo tempo, o projeto stalinista apoiado pelos comunistas armados. Deu direito de voto para as mulheres, descolonizou muitos países da África negra e pôs fim à guerra na Argélia. Ele é o homem da previdência social e da pílula anticoncepcional. É o homem que não mandou atirar contra a multidão em maio de 1968 e que responde ao movimento de 1968 com a participação, com um projeto que provoca tanto medo na direita que, no final, se convence a eliminá-la de cena com a desculpa do referendo de 1969. Finalmente e acima de tudo, é o homem da retidão e da linearidade, da moralidade. Um contemporâneo de Cato, o Velho.
Que mundo nos deixará a pandemia?
O mesmo, porém pior. Mudará trabalho, ensino, viagens, deslocamentos, relações intersubjetivas, equilíbrio entre cidade e campo: o teletrabalho, a substituição da "presença" pela "distância" aumentará os poderes da sociedade de controle que angariou o sinal da antiga sociedade totalitária. O virtual substituirá o real sempre que possível, e o Big Brother governará o virtual. Aliás, não poderia ser de outro modo já que foi ele que o inventou.
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Michel Onfray: “A liberdade morre com os nossos cliques” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU