29 Setembro 2016
“Depois de 16 anos consecutivos de um mesmo jeito de governar, havia-se conseguido concretizar uma utopia em relação ao problema do lixo na capital de todos os gaúchos. Os sujeitos ativos dessa nossa vitória haviam sido exatamente aqueles que a opinião pública do passado designara sempre como os párias da civilização urbana. Agora estavam transfigurados em profetas da ecologia, garimpeiros de pequenos valores e médicos sanitaristas do planeta, em tudo dentro da linha de pensamento do atual papa Francisco que, desde os tempos em que era arcebispo de Buenos Aires, privilegiava a categoria dos mais pobres, os catadores (cartoneros, em língua espanhola)”, escreve Antonio Cecchin, irmão marista e militante dos movimentos sociais,.
Ele exclama: ““Ai de ti Porto Alegre que matas os Profetas da Ecologia!
Eis o artigo.
No ano de 1962, quando houve a guerra da lagosta entre o Brasil e a França, o general de Gaulle, então presidente da França, teria dito que o Brasil não é um país sério. Há controvérsias sobre a tal autoria. Há quem diga que a exclamação teria sido mais do embaixador brasileiro em Paris, do que propriamente do General presidente. Mas o fato é que a frase – le Brésil n’est pas um pays sérieux – e a autoria da mesma como atribuída a De Gaulle, entraram como tais para a história.
Para uma controvérsia do tipo que acabamos de citar, a língua italiana nos brinda com o dito: se não for verdade, não deixa de ser um brilhante achado! (si non è vero, è bene trovato).
Brincadeiras à parte, se De Gaulle estivesse vivo hoje, olhando para o Brasil-ano 2016, com os poderes nacionais que temos, pós-impedimento da presidenta Dilma – executivo, legislativo e judiciário – o mínimo que poderia fazer em nosso favor, seria repetir sua frase do ano de 1962 que marcou a guerrinha da lagosta. Concordaríamos com de Gaulle, em gênero, número e grau.
Estamos a apenas alguns dias de um dos momentos mais sérios que todo país democrático vive de quando em quando: o momento das eleições que, para nós brasileiros, ocorrerão domingo próximo.
E agora José?... Estamos preparados para votar? Temos acompanhado as propagandas dos candidatos? Demo-nos à pena de procurar saber um pouco dos currículos de cada um dos que nos solicitam o voto? A que grupo ou partido ele pertence? Qual a ideologia do partido a que pertence? É de esquerda, de direita ou de centro? Dentro da realidade social de nossa cidade, qual a dimensão das maiores carências das categorias mais baixas de nossa sociedade? Melhor ainda, dentro da realidade de nosso povo pobre em sua grande maioria, qual é o ângulo, o viés pelo qual divisamos as maiores necessidades de políticas públicas a serem implantadas, confrontando-as com as pregações repetidas de sobejo por candidatos a prefeito ou vereador: “porque eu, uma vez no governo, vou fazer isso e mais aquilo!” Houve até candidato se esforçando ao máximo, de maneira mais do que artificial, para mostrar que tem um pé na cozinha.
Os tempos de propaganda sempre foram de corrida desabalada rumo ao pote do poder. Há mesmo quem prometa tornar a inventar a roda. De antemão, uma coisa podemos garantir: se ganhar um partido de oposição ao que termina sua administração da cidade, não é nada raro que aconteça às obras iniciadas por quem sai, que não serão continuadas por quem entra.
Afinal de contas, será que existe algum critério realmente válido a nos guiar em nossas escolhas de candidatos?
Como cristãos consideramos como absoluto e definitivo o critério que nos ensinou nosso único Mestre, o Homem-Deus Jesus de Nazaré, quando proclamou: “Pelos seus frutos os conhecereis” Não é pelas belas palavras que um candidato deve ser escolhido, mas pelas suas obras, atividades, ações, trabalhos, lutas, ou comportamento de todo um passado.
Face às belas palavras dos doutores da lei e dos fariseus, Jesus esclarecia o povo dizendo: “Fazei o que eles dizem e não o que eles fazem.”
Vamos exemplificar com apenas um único fato que conhecemos bem, até por fazer parte de nossa área de trabalho e que merece ser refletido antes de depositar na urna a preciosidade do nosso voto consagrador do nome de algum candidato que o mereça, ou então para banir algum candidato que deva ser barrado do poder, antes que possa prejudicar as pessoas que mais necessitam . Mas vamos direto fato-modelo:
Há duas semanas, precisamente no dia 14/09/2016, nos dois jornais da RBS – Diário Gaúcho e Zero Hora – uma única e mesma reportagem – por sinal extensíssima no primeiro jornal e resumida na Zero Hora. Escandalosa na riqueza dos detalhes sobre um assunto que só aos catadores interessa e às pessoas de boa vontade que amam os pobres. Trata-se de uma autêntica varrição de denúncias realizada em cada um dos 17 Galpões de Catação de Lixo, da capital de todos os gaúchos.
Logo de cara, na primeira página do Diário Gaúcho, que, por ser mais barato e pelo teor das notícias é mais povão, a maiúscula manchete “A crise chegou ao lixo" e logo por baixo, como sub-manchete “Reciclagem cai 25% nas unidades de Porto Alegre".
"Do lado direito dessas enormes chamadas de atenção, uma grande fotografia da unidade de triagem Rubem Berta, no bairro do mesmo nome, em plena atividade de catação, comprimidas as catadoras entre a grande gaiola de resíduos sólidos trazidos por caminhões da coleta seletiva e as dezenas de bambonas que recebem os objetos triados por mulheres e que serão prensados para serem depois enfardados. Por baixo dessa foto das mulheres em ação, os seguintes dizeres:
ü “Recicladores trabalham só meio turno na UT Rubem Berta” e mais em baixo e bem caracterizado:
ü Vagas: redução de 18%
ü Salários: queda de até 50 %
Tudo isso no frontispício do jornal, ocupando os 5/6 de toda a primeira página. “Bota manchete nisso!” exclamou uma catadora quando mostrei o jornal.
No interior do jornal, a página 3 inteirinha, galpão por galpão – 17 unidades – com seus dados particulares, e sob a manchete, no alto da página, de novo a grande manchete do frontispício: Nem lixo escapa da crise.
É simplório demais atribuir tudo à crise econômica. Isso significa esquecer que no dia 28 de dezembro de 2004, três dias depois do Natal dos catadores que celebramos embaixo do viaduto da Conceição, tivemos o cuidado de convidar o prefeito recém-eleito e a esposa.
Faltavam apenas três dias para o 1º de janeiro de 2005, dia da tomada de posse da recém eleita administração municipal. Por mãos do principal assessor, entregamos ao novo mandante do município uma carta elaborada pela Pastoral da Ecologia do Regional Sul-3 da CNBB. Nela sintetizamos nossas preocupações relativamente ao futuro dos coletivos de trabalho com catadores.
Depois de 16 anos consecutivos de um mesmo jeito de governar, havia-se conseguido concretizar uma utopia em relação ao problema do lixo na capital de todos os gaúchos. Os sujeitos ativos dessa nossa vitória haviam sido exatamente aqueles que a opinião pública do passado designara sempre como os párias da civilização urbana. Agora estavam transfigurados em profetas da ecologia, garimpeiros de pequenos valores e médicos sanitaristas do planeta, em tudo dentro da linha de pensamento do atual Papa Francisco que, desde os tempos em que era arcebispo de Buenos Aires, privilegiava a categoria dos mais pobres, os catadores (cartoneros, em língua espanhola).
Eis a carta:
- Pastoral da Ecologia -
Ilmo. Sr. Prefeito:
Resolvemos vir à sua presença, para lhe reforçar a importância de assunto já tratado pessoalmente com sua assessoria: a manutenção de um de nossos mais belos patrimônios eco-sociais, que nossa população concretiza em seu cotidiano. A destinação verdadeiramente qualificada e ambientalmente correta, que temos dado às matérias-primas que o mundo moderno insiste em chamar de lixo.
Apresentação
Ressaltamos este aspecto porque a chamada coleta seletiva existente em nossa cidade, vem sendo construída, por várias instituições de nossa sociedade civil, desde a década de setenta.
Foi nesta época que, pela primeira vez, ONG's ambientalistas foram buscar, no setor de limpeza urbana, parceria para se implementar o processo diferenciado, de coleta e destinação do lixo doméstico. Lastimavelmente não era ainda o tempo adequado, nem para o cidadão comum, nem para a municipalidade. A tentativa frustrou-se. No entanto, o sistema permanece latente. Em meados dos anos oitenta é retomado de forma inversa e daí radicalmente social. Passa a ser com a população dos excluídos que, para sobreviver, precisa catar os descartes daquelas pessoas que são compulsoriamente obrigadas a gerar lixo, face aos moldes em que se constitui hoje, a sociedade de consumo.
Utopia
Esta radicalidade social deveu-se, num primeiro momento, a pessoas ligadas à Igreja Católica, em sua opção pelos pobres. As CEB's - Comunidades Eclesiais de Base - geraram as novas CEB's - Comunidades Ecológicas de Base.
Foram os catadores, exemplo-símbolo dos excluídos por excelência, os considerados párias da civilização urbana pela sociedade envolvente, foram eles os primeiros a olhar com outros olhos para os rejeitos. Viram aí valores. Viram matéria prima acumulada e não simplesmente lixo.
Eles são os verdadeiros profetas da ecologia porque denunciam e anunciam ao mesmo tempo. Denunciam o consumismo desenfreado e anunciam a nova era da conscientização ecológica. À semelhança do Deus bíblico que, do caos inicial, fez surgir a maravilha da criação, os papeleiros, de dentro dos infernos do lixo, resgatam uma nova natureza. Como rejeitados pela sociedade, eles se encontram muito bem com os pedaços de natureza ou rejeitos dessa mesma sociedade.
O esforço de organizar em coletivos, essa mão de obra pra lá de barata, foi e continua sendo a meta dos utopistas ecológicos do novo milênio.
A partir das CEB's, (Comunidades Eclesiais de Base) a coleta seletiva foi primeiro por entrepostos e não de rua. Organizado um grupo de catadores, partia-se para a conscientização dos produtores de lixo em paróquias, movimentos populares, repartições públicas, edifícios, etc. A rica prática comunitária das CEB's derramou-se em relações interpessoais ricas com o entorno dos Centros de Triagem.
Sonhou-se, nos coletivos, com uma caminhada educativa, desde a alfabetização pura e simples, até a formação técnico-profissional, através da agregação de mais valia aos materiais separados. Sonhou-se com bens industriais acabados e muito artesanato.
Víamos no horizonte de nossas consciências a caminhada ascensional dos últimos. Em síntese o tão sonhado Reino de Deus pregado pelo Nazareno, já aqui e agora e como penhor do Reino definitivo.
Inúmeros percalços se atravancaram na concretização dessa utopia, porém ela continua latente e muito viva. Carradas de razão tinha nosso ícone ecológico José Lutzenberger quando profetizava: "Um só catador faz mais, pelo meio ambiente, no Brasil, do que o próprio ministro do meio-ambiente".
Retrospectiva
Desde esse tempo, tem-se privilegiado a integração das duas parcelas da sociedade, envolvidas nesta situação aparentemente irreversível de gerar, descartar e sobreviver daquilo que a sociedade consumista moderna chama de rejeitos, resíduos, lixos urbanos. Demonstra que estes lixos nada mais são do que matérias primas de fácil e necessária recolocação no ciclo de consumo.
Esse sistema, nossa cidade constituiu eficazmente. A população, na contramão deste consumismo desenfreado, que se expandiu, insidiosamente, nas últimas cinco décadas, pratica a certeza da sustentabilidade eco-social com estes seus lixos.
Assim, no início dos anos noventa, os administradores municipais de então, intuíram a qualidade eco-solidária do cidadão porto-alegrense e implantaram, dentro de sua gestão, este processo que vinha sendo gerido informalmente pela população, há mais de uma década.
Lamentavelmente, da forma como foi feita esta institucionalização do processo, o morador de Porto Alegre deixa de ser o agente direto em suas relações eco-sociais, entre a catação e a geração do lixo. Assim, o gerador compulsório de lixo passa a separar em seu domicílio, o chamado lixo seco daquele denominado orgânico. Perde-se o contato direto que existia entre essas parcelas da sociedade. O lixo seco é constituído, primordialmente, de embalagens e recipientes de vidro, plásticos, papel, papelão, metais e outros materiais que tenham possibilidades de ser re-fabricados pela indústria de reciclagem. Já o chamado orgânico é aquele que não tem mercado assegurado e/ou é de fácil deterioração e por isso, deve ser encaminhado prontamente aos aterros sanitários.
Situação atual
Passam a existir, desde então, duas formas de coletar o lixo urbano. O seco, uma vez por semana, em cada bairro, com caminhões pequenos, sem compactação. É um sistema que não tem a eficácia convencional da compactação e mistura dos materiais. Os geradores compulsórios de lixo passam a armazenar em suas casas os materiais que serão coletados semanalmente. No dia convencionado, é disposto na calçada e levado a locais especiais no perímetro urbano, nos galpões de triagem. Aí está um grupo de catadores que, de forma organizada e associativa, faz a separação dos vários tipos de materiais. Após, o material é prensado e daí, adquirido por intermediários e/ou compradores das indústrias recicladoras. Permite-se que os catadores se beneficiem direta e comunitariamente destas vendas, diferentemente de tempos anteriores, onde individualmente eram explorados por intermediários. Esses espaços construídos junto às vilas dos catadores, normalmente pertencem a organizações da sociedade civil.
As pessoas que antes catavam em sacos e latões de lixo nas vias urbanas, desagregada e isoladamente, fazem agora a triagem conjunta e solidariamente. Estão num ambiente organizado e sem a presença de materiais orgânicos que podem gerar cheiros e atrair insetos e roedores. O lixo orgânico é coletado, em dias alternados, com caminhões convencionais, compactadores, e transportado, misturado e prensado, para os aterros sanitários da cidade.
Perspectivas
Percebe-se que este sistema, caso não haja uma correta percepção de sua importância eco-social pela municipalidade, poderá ser facilmente destruído. Ele apresenta características de alta fragilidade, tanto pelo tipo de população que dele sobrevive como pelo desestímulo que o gerador compulsório de lixo pode sofrer, caso o sistema seja levado de forma relapsa e desordenada.
Hoje o sistema vive uma profunda crise. Não tem havido, nos últimos tempos, uma perfeita capacidade de entendimento da desconstituição gradativa que vem sofrendo esta qualidade eco-social dos porto-alegrenses. O individualismo está solapando o processo de integração destas duas parcelas da sociedade. A coleta seletiva, da forma como está, desmorona progressivamente.
Cientes de que sua administração quer reconhecer e fortalecer as qualidades cidadãs da população de nossa cidade, vimos nos colocar à sua disposição, para realizarmos trocas de experiências nesta área. Queremos, conjuntamente, corrigir os desvios, os equívocos e as incompreensões que temos vivido nos últimos tempos, bem como reforçar, consolidar e valorizar os aspectos positivos que temos vivenciado nesta área, em nossa cidade.
Porto Alegre, 28 de dezembro de 2004.
Pela Equipe de Pastoral da Ecologia, assinam: Irmão Antônio Cecchin, Jacques Saldanha, Matilde Cecchin, Carlos Azevedo de Azambuja Alves.
Concluindo:
Face às reportagens dos jornais da RBS – Diário Gaúcho e Zero Hora do dia 14 deste mês de setembro, deste ano de 2016, face às eleições municipais do próximo domingo, a pergunta que nos atormenta desde o dia 28 de dezembro de 2004, quando entregamos nossa carta à atual administração de Porto Alegre, e aos novos candidatos que, vitoriosos a 2/10/de 2016, vão governar a cidade é:
Quais são as razões deste desmoronar da utopia concretizada pelos Profetas da Ecologia, ou Catadores das Comunidades Eclesiais de Base que criaram as novas CEBS, as Comunidades Ecológicas de Base?...Tenhamos presente que, a administração atual, entrou com uma violência inaudita através da famigerada Lei das Carroças, acabando com o que chamaram de tração animal e tração humana.
Tanto quanto entende nosso entendimento, Porto Alegre é a única cidade do Brasil com esse tipo de legislação proibitiva.
O Homem Jesus de Nazaré, o Deus das Comunidades Eclesiais de Base da Igreja Católica da Libertação que amaldiçoava os ricos e bendizia os pobres, extravazou suas angústias contra o estado das coisas em sua cidade quando disse: “Ai de ti Jerusalém, cidade que matas os profetas!”
Parafraseando o nosso único Mestre, as CEBs da Igreja Católica – Igreja que é entendida em Humanidade – gritam hoje: “Ai de ti Porto Alegre que matas os Profetas da Ecologia!”
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