27 Mai 2020
Há poucos teóricos dos movimentos sociais capazes de influenciar nos eventos que analisam. Este é o caso de Frances Fox Piven, professora de Ciência Política e Sociologia na Universidade da Cidade de Nova York, que desde os anos 1960 estuda e agita os movimentos sociais estadunidenses.
Em 1966, Piven e Richard Cloward publicaram “O peso dos pobres” na revista The Nation. Esse ensaio desenvolvia o que, a partir de então, passou a ser conhecido como a “estratégia Cloward-Piven”: uma inscrição em massa de pobres nos programas de assistência social. Se todos os que tivessem direito a auxílios públicos fizessem a solicitação, dizia o seu argumento, o sistema cederia e se evidenciaria o tamanho da pobreza nos Estados Unidos e a insuficiência de sua rede de proteção social.
A subsequente crise política ofereceria uma oportunidade para introduzir políticas amplas e duradouras com o objetivo de combater a pobreza. Cloward e Piven publicaram o artigo em meio a um intenso período de ações populares por parte dos beneficiários de auxílios. Naquele mesmo ano, os grupos antipobreza de todo o país formaram uma ampla coalizão que se tornou a Organização Nacional pelo Direito ao Bem-Estar (NWRO, na sigla em inglês), da qual Piven era membro-fundadora. O número de integrantes na base da NWRO aumentou drasticamente, em fins dos anos 1960, e chegou a 20.000 filiados ativos e a 540 grupos comunitários no final da década, o que fez com que ganhassem capacidade de influência na política nacional da assistência pública.
Na medida em que a NWRO ia crescendo, em 1971, Cloward e Piven publicaram o livro “Regulating the Poor” [Regulando os pobres], um relato histórico e sociológico dos movimentos sociais nos Estados Unidos, ao longo do século XX. O livro tentava explicar o raquitismo dos auxílios sociais nos Estados Unidos e alegava que o bem-estar social nos Estados Unidos era cíclico: ampliava-se para lidar com as desordens sociais, em situações de desemprego generalizado, e se contraía, ainda que conservando os auxílios necessários para fomentar o emprego.
Seis anos mais tarde, e após a NWRO se dissolver, o livro “Poor People's Movements” [O movimentos dos pobres], de Piven e Cloward, explorou os movimentos dos pobres, da Grande Depressão aos anos do pós-guerra, “para compreender as características da política econômica estadunidense que explicam as razões pelas quais esses surtos ocorriam, quando e por qual motivo adotavam determinada forma e por qual motivo as elites respondiam da maneira como agiam”. Seu argumento, que foi polêmico não somente entre as organizações que analisava, sustentava que, ao longo da história dos Estados Unidos, a ruptura, não a organização em massa, foi o principal mecanismo pelo qual os movimentos sociais conseguiram avanços.
A entrevista é de Maya Adereth e Jack Gross, publicada por Ctxt, 26-05-2020. A tradução é do Cepat.
“Regulating the Poor” articula um marco teórico para explicar a função do bem-estar nos Estados Unidos. Como desenvolveu esse enfoque para o bem-estar estadunidense, e como aplicou esse marco ao caso prático dos “Movimentos dos pobres”?
O argumento central dos dois livros era a ameaça das desordens: o poder da desobediência coletiva. Sustentávamos que quando as pessoas se rebelavam e desobedeciam às normas que normalmente regem seu comportamento (como pagar o aluguel ou se submeter às condições da assistência social) podiam produzir um impacto na política social. Quando argumentamos isto pela primeira vez, nos anos 1960, parecia uma verdade evidente. Para onde você olhasse, as pessoas estavam organizando marchas, manifestando-se e interrompendo o sistema em que estavam envolvidos.
Era uma espécie de greve em grande escala e com isto me refiro a uma greve no sentido mais amplo. Até mesmo as pessoas que não tinham trabalho fixo, que não podiam fazer o que normalmente se considera uma greve trabalhista, podiam organizar uma parada em frente ao escritório de serviços sociais e coordenar uma solicitação em massa de auxílios sociais. Também dispunham da capacidade para obstruir o sistema.
Um dos elementos distintivos que ainda caracteriza seu livro é a colocação das pessoas pobres como agentes políticos, em vez da classe operária. O que motivou essa mudança de ênfase?
Acredito que a pobreza extrema, e a degradação que pode acompanhá-la, é um crime social. O sofrimento que as pessoas experimentam quando são empurradas para baixo e para fora das margens da sociedade é um crime. E nos anos 1960 muitas pessoas sentiam a mesma coisa entre elas, logicamente, os próprios pobres. Proliferavam formas de protesto coletivo, sobretudo nas grandes cidades e entre as pessoas de cor. Desatou-se um escândalo moral generalizado pela pobreza coletiva que uma sociedade rica impunha sobre alguns de seus membros.
Eu estava estreitamente envolvida com um grupo de mulheres do Lower East Side e do Harlem, que vivia dos auxílios sociais e que estava organizando a resistência ao departamento de serviços sociais de Nova York. Estava tendo cada vez mais experiências diretas com a ação coletiva que era realizada por algumas pessoas pobres, vítimas da próspera sociedade estadunidense.
Em ‘O peso dos pobres’, um dos elementos mais surpreendentes da tristemente célebre estratégia Cloward-Piven é sua teoria da coalizão. Você vincula a crise (neste caso a crise fabricada pela sobrecarga dos sistemas de assistência social) com períodos de reestruturação e apresenta como exemplos a ‘Grande Depressão’ e os movimentos pelos direitos civis. Qual é a relação entre crise e coalizão, e o que significa isso para a estratégia dos movimentos sociais atuais?
A estratégia que propusemos nesse ensaio e que propomos em uma multidão de contextos adicionais, como, por exemplo, em greves de aluguéis, é uma ruptura. Para poder compreender a relevância que tem na atualidade, é preciso voltar um passo e observar a vida social em um sentido mais amplo: no complexo sistema de cooperação e respeito às leis que sustentam algumas das funções sociais centrais. A sociedade é um esquema de cooperação, ainda que isso signifique que quase todo mundo precisa desempenhar seu papel, não só nas fábricas, mas também em nossas escolas, em nosso sistema de saúde e em nossos sistemas habitacionais. No reverso, todo o mundo também tem o poder para deixar de cooperar. O protesto é eficaz quando as pessoas percebem que representam um papel crucial nos grandes modelos sociais e nas instituições. Acredito que isso continua sendo plenamente relevante hoje em dia.
Uma das maneiras como as pessoas, as pessoas pobres, são silenciadas na sociedade estadunidense contemporânea se dá por meio de sua humilhação sistemática por parte dos líderes políticos estadunidenses. Certamente, isso é assim desde muito antes dos anos 1970, mas não pode durar para sempre. Cedo ou tarde, as pessoas percebem que o papel que desempenham pode se tornar uma alavanca para influenciar nas políticas públicas.
Algumas de suas obras enfatizam retirar o apoio, mas outros aspectos enfatizam uma maior participação: a inscrição em massa para receber auxílios sociais aparece nos dois casos, mas o registro de eleitores com maior clareza no segundo. Há momentos em que um método é mais eficaz que o outro?
Penso que é mais fácil que o protesto surja em um contexto eleitoral, quando os líderes eleitos se preocupam mais com a adesão de um grande número de pessoas da parte mais baixa da escada social. Durante muito tempo, a tendência entre os ativistas foi pensar que a dimensão eleitoral impossibilita o protesto, ainda que, na realidade, na história dos Estados Unidos, o protesto em si foi mais factível quando tivemos uma espécie de suporte no sistema eleitoral, através dos próprios grupos que formam os potenciais constituintes do movimento.
Portanto, acredito que é mais exato e iluminador pensar nas formas como o protesto e a política eleitoral se potencializam entre si. O protesto tem mais possibilidades de ter êxito quando ao menos um dos cargos públicos expressa sua solidariedade ao sofrimento dos insatisfeitos e despossuídos. Caso sejam ignorados, rejeitados ou insultados é provável que sejam subjugados e que acabem com suas aspirações.
Por exemplo, acredito que isso pode ser observado no movimento pelos direitos civis e também no movimento operário. O movimento pelos direitos civis contava com aliados políticos em Washington D.C., senadores e congressistas que eram responsáveis diante de distritos eleitorais negros ou hispânicos. Por isso, acredito que também existe uma relação de complementaridade entre o poder eleitoral e o poder do protesto.
Levando em consideração tal complementaridade entre os poderes, poderia nos falar um pouco sobre a ‘Aliança Operária dos Estados Unidos’ (WAA, na sigla em inglês) e a ‘Organização Nacional pelo Direito ao Bem-Estar’, com as relativas virtudes e fragilidades das duas organizações.
Mesmo nos casos em que os protestos têm êxito, o êxito é apenas parcial. O movimento operário dos anos 1930 não conseguiu uma utopia para as pessoas trabalhadoras dos Estados Unidos, mas uma série de direitos para o movimento sindicalista. Sempre se obtém algumas vitórias, mas depois é preciso sair novamente e continuar lutando.
A Aliança Operária dos Estados Unidos era uma organização comunista dos anos 1930 que tentou estender uma mão aos que recebiam beneficência. Em nossa parte sobre a WAA, em “Poor People's Movements”, fomos críticos com seus organizadores porque sua intenção foi desenvolver uma organização formal, sumamente articulada, utilizando a insatisfação dos pobres nos anos 1930. Nós acreditávamos que as manifestações, as revoltas e os protestos eram mais eficazes que os clubes que a WAA organizava.
E na mesma linha, acreditávamos que, durante os anos 1960, aqueles que pretendiam organizar os beneficiários de auxílios sociais e que estavam decididos a construir uma organização formal, acabaram ignorando os protestos que serviam para desestabilizar as políticas municipais e a organização assimétrica que já existia. Em “Regulating the Poor”, criticamos o modelo organizativo da NWRO, nos anos 1960, ainda que estivemos entre os organizadores.
Você defende que as organizações hierárquicas são menos eficazes porque é mais fácil se infiltrar nelas e se apropriar delas. Sem uma organização desse tipo, como conceber uma estratégia política de longo prazo?
É por meio da mobilização continuada que se consegue a mudança a longo prazo. Quando nos mobilizamos de forma continuada, nos beneficiamos da experiência de mobilizações anteriores. Adquirimos um conhecimento dos incentivos das elites e do potencial que elas possuem para se apropriar ou suprimir o descontentamento que surgiu.
Quando constituímos organizações que cooperam com os governos municipais, também nos colocamos na situação de perder o impulso e a consciência de nosso próprio papel no conjunto do sistema, mas isso se retoma. A política continua e a relação entre grupos dominantes e subordinados segue se desenvolvendo. As pessoas redescobrem, mais de uma vez, o poder da ruptura.
Várias décadas após o livro “Regulating the Poor”, como teoriza a situação dos auxílios sociais nos Estados Unidos, em relação com o resto do norte global?
Costumávamos pensar que a situação nos Estados Unidos era diferente da situação na Europa, onde se apresentou um exaustivo sistema de bem-estar como um compromisso de classe. Aqui, não tínhamos isso, e nos anos 1960 o tipo de movimentos que se rebelava não era forçosamente o de uma classe operária organizada, mas, ao contrário, o das minorias raciais e pobres. Simplesmente, nossos movimentos tinham uma composição diferente e não se ajustavam exatamente ao modelo do estado de bem-estar europeu.
Estamos experimentando, já há algumas décadas, um processo de desindustrialização e de densidade sindical em decadência em todo o mundo. Como esta mudança na composição do mercado de trabalho afeta as políticas de bem-estar social? Como afeta, por exemplo, a relativa importância das exigências apresentadas às empresas, se as confrontamos com as que são apresentadas diretamente ao Estado?
Não tem como generalizar nestes casos. Cada grupo terá poder de influencia sobre diferentes setores sociais. Quando se pensa em um grupo social concreto, é necessário se perguntar: quais instituições sociais é capaz de alterar?
Um dos elementos que conseguiu mudar profundamente o panorama da ação social na atualidade é que já não podemos falar em ruptura institucional, sem pensar na mudança climática. Para poder desenvolver políticas públicas que controlem eficazmente o comportamento dos atores que estão destruindo o clima, dependemos do Estado. Precisamos de um poder estatal forte e centralizado ao lado do movimento. Esta crise é muito grande. Para derrotar a indústria dos combustíveis fósseis será necessário contar com o apoio das autoridades municipais e estatais.
Existe um debate na atualidade sobre as vantagens de uma política de emprego garantido em contraposição a alguns programas universais de transferências econômicas. Que opinião merece este debate e o renovado interesse de uma opção política bastante diferente da sua e a da NWRO?
Uma forma de descrever o objetivo clássico da esquerda é o pleno emprego e salários dignos. O problema que isso expõe é que fracassa categoricamente em relação ao tipo de políticas que são necessárias para prevenir a mudança climática. Esse objetivo se baseava na ideia de que a economia podia crescer indefinidamente, mas hoje em dia já não precisamos mais de crescimento. Teríamos que estar pensando na relação entre produção e poluição.
Sendo assim, a ideia de que todo o mundo trabalhe 40 horas por semana, com o barulho das máquinas ao fundo e mais e mais artefatos sendo fabricados é uma utopia muito limitada. Deveríamos estar imaginando novas formas de viver uma boa vida que não impliquem em fabricar automóveis, utilizar combustíveis fósseis, sujar o planeta, etc.
De onde acredita que virá o movimento dos próximos anos? O que lhe dá esperança?
Há muitos movimentos que estão acontecendo que geram esperança. Por exemplo, no setor de serviços ou no que agora se chama de setor dos cuidados, ocorrem mobilizações incrivelmente exitosas entre os professores, enfermeiros e trabalhadores do comércio. Estas são pessoas que fazem coisas que todos podem ver e valorizar. Não é nenhum mistério que necessitamos delas. Na medida em que o trabalho é considerado uma força de mudança, teríamos que pensar nos cuidadores e no que podem fazer.
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“A pobreza extrema é um crime social”. Entrevista com Frances Fox Piven - Instituto Humanitas Unisinos - IHU