Que desafios a pandemia traz à teologia? Como ler os mecanismos de controle a que os governos recorrem como medidas sanitárias? De que modo assumir uma atitude crítica frente à massiva difusão de mensagens fundamentalistas a nível político e religioso? Estas e outras perguntas fazem parte dessa extensa conversa com o teólogo Carlos Mendoza, professor e pesquisador da Universidade Ibero-americana do México.
Em diálogo com movimentos sociais, o dominicano há anos faz pontes entre a fenomenologia pós-moderna, a teoria mimética de René Girard, o pensamento decolonial e a teoria queer. A diversidade caracteriza seu modo de se aproximar da realidade, de se deixar interpelar por ela e de expressar suas convicções. Não se surpreenda, leitor, que ele privilegie a expressão juntes, no lugar de juntos, para se referir a todos nós.
Autor de uma trilogia dedicada à revelação, Mendoza anuncia um novo livro, já em impressão, sobre a ressurreição analisada a partir do contexto das violências. Um tema que enriquece sua maneira de entender a situação posta em evidência devido à aparição do novo coronavírus.
A entrevista é de David Pérez e Miguel Estupiñán, publicada por Religión Digital, 03-05-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Como a pandemia desafia o exercício teológico?
No campo filosófico, autoras ou autores, como Judith Butler ou Giorgio Agamben, pronunciaram-se sobre a questão de fundo: como o biopoder está gerindo a pandemia como um ato de Estado de Exceção. Essa é uma aproximação que a teologia precisa retomar, porque está em jogo pensar a crise do Antropoceno, em relação com esta e outras pandemias. A pobreza é uma delas: 52% da humanidade vive em condições de pobreza extrema. Também o patriarcado é uma pandemia. Não se pode para de apontar o dedo às violências contra as mulheres: violência física, sexual, laboral... múltiplas violências que as feministas da terceira geração colocaram sobre a mesa e que este ano estavam crescendo muito nos espaços públicos, não apenas nas redes sociais.
A teologia tem que pensar a crise desse antropocentrismo, com o qual o cristianismo contribuiu com uma visão excessivamente cristológica da redenção, deixando de lado a pneumatologia, colocando-a em segundo plano. Demasiadamente antropocêntrica, a teologia foi cúmplice deste modelo de civilização que está em crise. E o tema teológico de fundo seria uma autocrítica do cristianismo e sua contribuição a algumas violências que deram como resultado uma sociedade hegemônica com o patriarcado, o capitalismo, o colonialismo, a religião sacrificial. Tudo isso está em crise agora.
Em que a teoria mimética contribui para interpretar o contexto atual?
Por uma parte, a teoria mimética pode ser um instrumento valioso para analisar os processos de construção de um inimigo coletivo que supostamente precisamos enfrentar: não somente o vírus, mas também todo aquele que é estrangeiro, algo iminente que está sendo traduzido como uma ameaça.
O que está em jogo é a imitação como um contágio do medo da alteridade, como a criação de um inimigo para dar identidade ao grupo. E a teoria mimética desenvolveu muito essa análise de quais são os mecanismos de contágio mimético de todos contra um. Por exemplo, grupos em um bairro contra aqueles que estão doentes: como os isolam, como os violam. Ou como os governos, particularmente Bolsonaro no Brasil, mas também Trump nos Estados Unidos, estão manipulando o medo. Esse mecanismo está sendo aplicado no caso da pandemia e tem outros aspectos: políticas de migração contra estrangeiros; economias protecionistas que fecham fronteiras para proteger a economia local, etc.
Mas a teoria mimética também pode nos ajudar a abrir perspectivas. Porque o contágio pode ter uma valência positiva, que seria o contágio da solidariedade, da empatia, da inclusão do outro, da unidade, de inventar novas maneiras de nos tocar, de nos cuidar à distância, mas com uma imaginação criativa.
Como você analisa a situação do pessoal médico, particularmente exposto à doença em países como o México ou a Colômbia, onde eles não têm garantias de atendimento à sua saúde?
A partir da teoria decolonial e do pensamento crítico, podemos entender que ela está sendo considerada uma população subordinada, sujeita pelo biopoder a funções que vão além das condições de segurança. Por exemplo, no México, com horários extremos, sem preparação adequada e recursos hospitalares, o pessoal médico de instituições públicas não possui a proteção necessária; nem mesmo para casos epidemiológicos. Nesse sentido, fazem parte de um mecanismo mais amplo que os subordina à lógica do algoritmo, das estatísticas, do controle da saúde por meio de instituições governamentais. A crise de um modelo de biopoder não está apenas gerando Estados de exceção, mas também operando um mecanismo de criação permanente de subordinados.
A teoria mimética pode nos dar pistas para entender o processo de sacrifício do corpo médico e da saúde, mas não abrange todas as interpretações necessárias para esse fenômeno. Em uma comunidade em crise que precisa de estabilidade, mais cedo ou mais tarde, um mecanismo é gerado para purificá-la de uma certa ameaça. Esse processo é inconsciente e hoje concebe que a fonte do mal é a pessoa infectada que pode ser alguém com diagnóstico positivo ou o pessoal médico ou da saúde altamente exposto.
Normalmente, estamos diante de um mecanismo de bode expiatório, com a mentira ou a crença de que, ao expulsar essa pessoa, a comunidade fica imune; quando, na realidade, isso é falso, porque nem em termos médicos nem antropológicos a comunidade é imune. Algo que a teoria mimética pode representar é a clareza desses mecanismos e a necessidade de desmascarar os termos médicos, sociopolíticos ou teológicos. Essa exclusão do outro, nesse caso, o corpo médico, sacrificados sob certas condições, é um processo que está gerando mais exclusão.
Nesse contexto, como lês a exaltação do heroísmo, do martírio e da entrega?
É uma manipulação do sentimento religioso, porque ignora ou subordina as condições básicas de segurança da saúde que esse pessoal, suas famílias, os próprios hospitais e os doentes devem ter. É uma manipulação ideológica sob o pretexto do bem comum e pode ser interpretada religiosamente no sentido de que ele está oferecendo sua vida porque pensa no próximo; mas também, numa chave patriótica, pelo Estado ou pela cidadania e valores cívicos.
É um perigo que essa manipulação do sacrifício ocorra, porque reduz a questão a um ato individual de generosidade, quando na realidade o que está em jogo é a constituição de um corpo social ferido. A reconfiguração do social e do político deve passar por outras avenidas. Não se trata apenas do ato individual de heroísmo, mas de justiça, democracia, respeito pelos direitos humanos, igualdade de gênero e todos os outros eixos transversais da violência.
Que análise você propõe a respeito do controle exercido pelos Estados no nível global por meio de confinamento e comunicação política?
Me somo à análise de Giorgio Agamben e as de David Cayley, comentando textos de Iván Illich, que são muito inspiradores e pertinentes, por causa das críticas deste último ao que seria o modelo atual de uma sociedade de manipulação, de capitalismo, mas também de uma estrutura social que rompe os elos de "convívio" que caracterizam o humano e nos levam, nos termos de Iván Illich, a escalas contraproducentes que geram o oposto do que eles queriam remediar. O caso do inimigo médico, por exemplo. Quarenta anos atrás, Illich falou sobre como a medicina hospitalar, embora resolva muitos problemas, gerou novas doenças e uma subordinação de corpos e saúde às estruturas estatais. Quando, na realidade, a saúde é, antes de tudo, uma responsabilidade da comunidade. Por isso, ele insiste tanto na recuperação dos laços de "convívio" em uma sociedade que gera cada vez mais estruturas. Nesse sentido, tem muito a ver com a noção de biopoder de Foucault, que se refere aos dispositivos que controlam a população.
Mudamos o termo: não somos mais pessoas ou comunidades, mas populações que entram na análise estatística e em uma série de algoritmos, consideradas parte de um conjunto que deve ser controlado. Nesse sentido, a estatística predomina como uma nova religião, cujos padres são cientistas, especialmente aqueles dedicados ao estudo epidemiológico. Vemos isso com Hugo López-Gatell no México. Ele se tornou não apenas o subsecretário de saúde mais popular da história mexicana, mas uma figura da mídia com a aura do sagrado em suas coletivas de imprensa, porque eles contêm dados concretos para prever o que acontecerá. Mas os meios que o México tem para a medição não são os da Coreia. O controle que o governo López Obrador está realizando da pandemia é altamente criticável no sentido dos dados. Uma manipulação midiática da pandemia por um governo em crise porque não realizou uma verdadeira transformação econômica e cultural.
Enquanto isso, existem outras pandemias no México às quais não demos a devida importância, como disse no início: dez mulheres são mortas por dia por feminicídio. Existem pobreza e outras pandemias de saúde como diabetes e obesidade.
Nesse sentido, estamos submetidos a um modelo de civilização. Filósofos como o judeu Yuval Noah Harari colocaram isso. Somos governados pela inteligência artificial e cada vez mais estamos entrando em um tipo de biopoder que, visto do sul epistêmico, tem outro nome: necropoder. Apelo aqui a Achille Mbembe e a tantos outros que nos alertam sobre os riscos de nos deixarmos ser controlados como população por essas políticas públicas de saúde.
Temos que voltar à convivialidade, à família, ao bairro. Alguns falam da ruralização da cidade; em outra escala, nos termos de Illich, para recuperar o humano. E o que é humano significa nossos corpos, nossos territórios, nossas formas de organização social, nossos modos de produção, troca e economia.
Nesse sentido, a pandemia pode ser analisada de cima, ou seja, dos governos que, com sua biopolítica, controlam as populações por razões estatísticas e macroeconômicas; ou por baixo. Eu escolho o segundo caminho.
O que você acha das referências do Presidente López Obrador às crenças populares?
Existem vários elementos. Talvez a primeira seja que López Obrador seja um líder carismático manipulador de emoções religiosas. É ideológico o uso que está dando aos símbolos religiosos, em particular a esses selos dos detentores; conectar-se com muitas pessoas, maiorias, talvez, da população mexicana que tem essa visão mágico-religiosa.
Essa religiosidade popular expressa de maneira gráfica-simbólica a vulnerabilidade das pessoas contra o mal.
Essas imagens correspondem a séculos de práticas religiosas que têm a ver com a consciência de que existe uma exterioridade do mal e que preciso ser protegido nessa extrema vulnerabilidade.
O acompanhamento pastoral, no caso do cristianismo e da Igreja Católica, teria que ser para um amadurecimento progressivo dessa expressão dos vulneráveis, a fim de entender que o mal não é apenas uma questão externa que está fora de mim. De alguma forma, sou responsável por enfrentá-lo. Não é uma exterioridade. Eu também sou parte desse mal, daquelas estruturas do pecado, nas palavras da teologia da libertação dos anos 80; daquela mentira de Satanás, da qual eu também fui um carrasco e não apenas uma vítima, diria René Girard e a teoria mimética.
Assim entramos em um segundo momento fenomenológico: a análise da minha responsabilidade subjetiva nessas estruturas do mal. Isso significa amadurecimento em uma fé religiosa, para dar um terceiro passo: o de uma consciência e uma prática de fé crente, na qual a comunidade e a pessoa em comunidade se encarregam dessa realidade e dos crucificados hoje, segundo Ignacio Ellacuría e Jon Sobrino.
Passamos, então, de meros objetos dessa ameaça a sujeitos, uma comunidade intersubjetiva, para enfrentar o mal pela força do bem. Tudo isso, por exemplo, foi muito desenvolvido na Espanha por Andrés Torres Queiruga, com a ideia de passar de uma teodiceia que acusa Deus do mal - e, portanto, o invoca como protetor - para uma maneira mais responsável de se controlar.
Na América Latina, Jon Sobrino é o autor que talvez tenha mais trabalhado nessa questão de uma teologia que confronta o mal, mas de uma prática de seguir um crucificado que despertou, de um Deus que liberta crucificados e, portanto, de um aprendizado para sermos também pessoas que ajudam os povos crucificados a descerem das suas cruzes. Então, o mal não é mais algo apenas externo, algo mágico do qual tenho que me defender com detentes, imagens, ritos, comandos, etc. mas um problema histórico, político e espiritual, do qual cuidamos juntos.
Como a pandemia pode servir para reinventar práticas alternativas de resistência coletiva?
Muitos movimentos eclesiais e sociais estão fazendo isso em bairros, cidades, áreas indígenas, mesmo na megalópole, tentando organizar trocas de produtos de hortas familiares, serviços. A pandemia está sendo vivenciada com mais criatividade por baixo, dos movimentos de resistência social; tentando gerar outras práticas de economia, consumo, saúde, assistência. Está sendo confrontado pelo reverso da história, não pelas estruturas de poder das empresas ou do governo; mas das pessoas em suas comunidades, como um grupo de pessoas trans em Toluca que se organizaram para dar comida a pessoas que não precisam comer, sobretudo da terceira idade.
Ter a mente, o olho e o ouvido colocados nessas resistências é muito importante, pois são eles que nos ajudam a recuperar o aspecto face a face; de ser pessoas e não população; da convivialidade, de Iván Illich, e de comunidades indígenas, como os caracóis zapatistas que também estão tentando gerar essas outras práticas de proteção à saúde. Comunidades que têm um caminho percorrido de organização autônoma. Essa é a pista.
O sociólogo Bernardo Barranco disse em uma coluna recente para o La Jornada que o discurso de ódio que recupera o deus moralista está sendo reciclado por aqueles que argumentam hoje em dia que “a pandemia é um grito de Deus para a humanidade em face da desordem social, do aborto, da violência, corrupção, eutanásia e homossexualidade”. Como analisa a produção de mensagens desse tipo?
Eles são infelizes e ridículos. Sinais de um sistema mundial religioso típico do patriarcado hierárquico clerical da Igreja Católica e de outras tradições religiosas. Um sistema que está entrando em colapso e não sairá ileso dessa pandemia. O número de padres que começaram a dizer missas na internet é impressionante. O consumismo que está gerando em muitas famílias responde a um sentimento religioso de orfandade. O acompanhamento é sempre necessário, mas estamos perdidos se reproduzirmos o modelo sacramentalista clerical patriarcal. Este modelo já está quebrado e, mais cedo ou mais tarde, entrará em colapso. Pode levar décadas ou séculos, mas você já está mortalmente ferido.
O fato de o religioso ser agora um produto do consumo da mídia reafirma a ideia de si mesma como algo mágico. As procissões com a exposição do Santíssimo Sacramento nas ruas parecem-me uma contradição intrínseca ao mundo contemporâneo que tenta entender que isso não é algo mágico.
Estamos diante de um cenário diferente, onde prevalece o científico e teríamos que reinterpretá-lo como a possibilidade de uma nova forma de experiência do sagrado. Não mais nesses termos do medo do mal que nos assombra e dos quais vamos nos proteger com atos mágico-religiosos, mas com outra maneira de reinterpretar a fé. É o que muitos grupos estão fazendo que em seus lares estão gerando outras práticas de sacramentalidade, de celebrações domésticas, de meditação na Palavra, da Lectio Divina, dos rituais eucarísticos.
As igrejas terão que repensar como simbolizamos que Deus está conosco, nos acompanhando para enfrentar os males e viver com dignidade. Este é um grande desafio para as teologias, em particular para a teologia sacramental: repensar o sagrado e seus símbolos em um contexto de globalização, extrema vulnerabilidade e com novas formas e novos ministérios. O modelo clerical patriarcal precisa mudar. Não sairá ileso, e que bom.
O que revelam as mensagens religiosas durante a pandemia entre os católicos?
Por um lado, que estamos em um momento de colapso de uma igreja clerical patriótica. As cenas da Basílica vazia de São Pedro e o Papa sozinho lá com alguns cardeais e freiras foram dramáticas. Para alguns, heroico, mas para mim um raio-x de uma igreja cuja estrutura está entrando em colapso, enquanto a comunidade real está do lado de fora, nas ruas ou dentro de casa.
No consumo religioso durante a pandemia, por exemplo, assistindo à missa do Papa, na televisão, a do arcebispo do México na Basílica de Guadalupe e a do pastor, que não remove os filtros e gostaria de se tornar muito cibernético.
Mas eu vou pelas brechas no meio dessa hegemonia da mídia religiosa e apostaria em um modelo eclesiológico de recuperar a Igreja doméstica e as redes de relevância com mais criatividade.
Muitas pessoas procuram algo alternativo que desradicalize a liturgia, reconheça a diversidade de carismas e ministérios, em particular de leigos e leigas; reposicione a vida religiosa com sua própria identidade e coloque o ministro em uma nova posição de como se reinterpretar.
Comunidades de pertença estão sendo criadas e é mais fácil on-line, embora não seja o mesmo que estar juntos na mesma sala, em um templo, em um lugar bonito como um jardim.
Eu tentei fazer parte desse movimento em redes e mídia digital. Todo domingo, durante este período da Páscoa, estive com um grupo de cerca de cem pessoas, através de uma pequena reunião na qual todos co-presidimos; cada um fazendo algo diferente, que estimula nossa fé: bênção de pão, comida, fruta; uma reflexão bíblica; música.
Essa experiência foi precedida de uma iniciativa incentivada durante a Quaresma por Carlos Mendoza e outros, incluindo Marilú Rojas, Ángel Méndez e James Alison. Ainda com o intuito de acompanhar e propor contribuições e um modelo de comunicação eclesial diferente do das massas televisivas ou online, o projeto consistiu em uma Lectio Divina com seis capítulos em um canal do YouTube; seis meditações para aprofundar a ideia de uma igreja pós-patriarcal e pós-clerical, numa perspectiva queer.
E o que é o queer? Segundo Carlos Mendoza, todos os corpos invisíveis pelo sistema patriarcal, capitalista e colonial. “Todos os corpos descartados e todos os subalternos: migrantes, mulheres, indígenas”, acrescenta.
Quatro categorias foram reiterativas na Lectio Divina Queer: subverter a história ou sistemas históricos de dominação, acuerpar, curar feridas e cuidar de nós mesmos. Qual é a relação entre elas?
Eu sempre tento encontrar pontes entre diferentes teorias. Teoria queer, pensamento decolonial, teoria mimética e fenomenologia pós-moderna têm muitas coisas em comum.
Subverter, abraçar, curar, cuidar de nós mesmos tem muito a ver com o pensamento feminista e queer, especialmente visto do Sul. Subverter as estruturas de dominação é algo típico do pensamento descolonial. O patriarcado é homofóbico, falocêntrico, heteronormativo, cisgenérico. Podemos dar todos os adjetivos que as teorias queer lhe deram e que são verdadeiras. Eles se concentram muito bem nos tipos de violência.
Mas li a subversão na chave teológica como insurreição messiânica, o assunto do meu próximo livro sobre a ressurreição. Neste, pego uma frase de Leonardo Boff, que me deu um "clique", escrita em um pequeno artigo, cerca de dez anos atrás, para dizer que a ressurreição é uma insurreição e que me levou a dizer que havia uma pista lá.
Essa faixa que desenvolvo na chave messiânica da antecipação escatológica, para mim a subversão mais radical. Subversão política da violência de gênero, subversão contra sistemas como o capitalismo. Basicamente, uma subversão de uma ordem hegemônica satânica. Portanto, uma subversão messiânica que apenas passa pelas feridas e pela vida dos justos; em particular, de Jesus de Nazaré.
Daí o outro: acuerpar (Nota de IHU On-Line: Acuerpar: colocar coletivamente os corpos em ação, em manifestação de indignação contra injustiças) . Algo sobre o que os feminismos disseram e analisaram muito. Não é uma análise no sentido teórico, mas como recuperar nossos corpos como territórios junto com a mãe terra. Acuerparnos tem a ver com o caminho do sul epistêmico de falar da intersubjetividade. Hegel havia dito duzentos anos atrás em termos inteiramente teóricos. Mas aqui se trata, de nossas vulnerabilidades, de nossos corpos como locais de autonomia e empoderamento. Acuerparnos consiste em tecer redes de bem-viver; não apenas de comunicação, mas de viver juntos.
Por isso é necessário cuidar do corpo social ferido. Algo que aprendi muito com os migrantes e, sobretudo, com as famílias dos desaparecidos. Como as feridas do corpo social no México são os túmulos clandestinos, os corpos descartados das mulheres assassinadas e as feridas estão abertas. Essas feridas do corpo social no México e no mundo são as únicas através das quais a redenção pode acontecer. Estou relendo Isaías: com suas feridas seremos curados. Em outras palavras, somente das vítimas podemos curar como um corpo ferido, desde que assumamos memória, verdade e possível justiça com a reconciliação. Não se trata apenas de curar minhas feridas pessoais ou individuais, mas as de um corpo social ferido, espero que não a morte. E, portanto, o imperativo do cuidado mútuo. Acima de tudo, os povos nativos falam muito da boa vida de aprender a cuidar de nós mesmos junto com a mãe terra.
Subverter, acuerpar, curar e cuidarmos são os quatro verbos que falam do mesmo dinamismo. Eu chamo de potência das vítimas. Porque é força, poder; mas é mais do que força ou poder, é potência. A potência dos pobres, que surge da precariedade.