08 Abril 2020
"Desejo de segurança induzido pelos mesmos poderes que interveriam, depois de ter provocado o medo, para ter a oportunidade de "satisfazê-lo". Poderá se dizer: sugestões de um livre pensador no momento em que nem todos tinham a percepção exata do que estava acontecendo. Nada disso", escreve Paolo Mieli, escritor italiano, em artigo publicado por Corriere della Sera, 07-04-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
No começo foi Giorgio Agamben. Agamben, o famoso filósofo de 78 anos que teve oportunidade de assistir aos seminários de Martin Heidegger, lecionou em algumas das mais prestigiosas universidades europeias e estadunidenses, recebeu um diploma honoris causa da Universidade de Freiburg e vários prêmios importantes, foi amigo de Elsa Morante, Pierre Klossowski, Italo Calvino e Pier Paolo Pasolini, que até lhe confiou um papel no filme Evangelho segundo Mateus.
Reverenciado pela esquerda mais radical, no final de fevereiro, aproveitou a oportunidade da entrada do vírus Covid-19 na Itália para repropor, no jornal "Manifesto", os temas de um livro que ele publicou na época da guerra no Iraque: O estado de exceção (Boitempo). Nessa obra, Agamben vinculava-se a algumas reflexões de Carl Schmitt para demonstrar como, da Alemanha de Hitler aos Estados Unidos de Guantánamo, alguns países ocidentais estavam se acostumando cada vez mais a aceitar que medidas emergenciais, apresentadas como temporárias e extraordinárias, levassem a um "paradigma normal de governo".
Parecia a Agamben que a atual "suposta epidemia" nada mais fosse que um pretexto para "medidas de emergência frenéticas, irracionais e totalmente desmotivadas". As mídias e as autoridades, denunciava o estudioso, “se empenham a espalhar um clima de pânico, causando um estado real de exceção, com graves limitações de movimentos e suspensão do funcionamento normal das condições de vida e trabalho em regiões inteiras”. Para ele, parecia (a partir de "declarações do Consiglio Nazionale delle Ricerche - CNR") que não havia nenhuma epidemia na Itália e chegava à conclusão de que, na presença de uma "gripe normal", a intenção era induzir nas consciências dos indivíduos um "estado de medo" destinado a se traduzir em "estados de pânico coletivo". Assim, "em um círculo perverso e vicioso", a "limitação das liberdades impostas pelos governos seria aceita em nome de um desejo de segurança". Desejo de segurança induzido pelos mesmos poderes que interveriam, depois de ter provocado o medo, para ter a oportunidade de "satisfazê-lo". Poderá se dizer: sugestões de um livre pensador no momento em que nem todos tinham a percepção exata do que estava acontecendo. Nada disso.
Em 11 de março, com o bloqueio já iniciado, Agamben voltou ao tema, criticando "uma das consequências mais desumanas do pânico que se tenta, por todos os meios, disseminar na Itália por ocasião da chamada epidemia de coronavírus", ou seja, "a ideia de contágio”. Ideia condenada por ele como "estranha à medicina hipocrática", e que lhe trazia à lembrança (ele não era o único) a história da coluna infame de Alessandro Manzoni com a figura do untore (contaminador). De que maneira? Segundo Agamben, as disposições do governo - que trancavam em casa toda a Itália - transformavam "de fato todo indivíduo em um potencial untore, exatamente como aquelas do terrorismo consideravam de fato e de direito todo cidadão como um terrorista em potencial".
Particularmente repulsivo lhe pareceu a invenção da "figura do portador saudável ou precoce, que contagia uma multiplicidade de indivíduos sem que se haja a possibilidade de se defender dele". O filósofo esperava que os decretos de Conte não fossem ratificados pelo Parlamento ("mas é uma ilusão", acrescentava). E por quê? Porque, uma vez convertidos em lei, eles teriam resultado na "abolição do próximo".
Agamben concedia a possibilidade de que, "dada a inconsistência ética dos nossos governantes", essas disposições fossem "ditadas por aqueles que sofriam do mesmo medo que elas pretendem provocar". Mas para ele era igualmente difícil "não pensar que a situação que eles criam é exatamente o que aqueles que nos governam tentaram repetidamente estabelecer". Ou seja? “Que de uma vez por todas se fechem as universidades e as escolas e apenas se realizem as aulas on-line, que se pare de se reunir e de falar por razões políticas e culturais, que se troquem apenas mensagens digitais e que, sempre que possível, as máquinas substituam qualquer contato - todo contágio - entre os seres humanos".
Havia dois elementos no pensamento de Agamben: que a gripe fosse pouco mais que uma epidemia sazonal (e isso não tem nada a ver com teorias conspiratórias); que alguém ("que nos governa") pretenda aproveitar a oportunidade de criar um regime autocrático.
No que diz respeito à primeira questão, uma circunstância curiosa aconteceu. Quanto à "gripe talvez um pouco mais grave, mas não diferente das que a precederam" - tese deduzida das não melhor especificadas "declarações do Cnr" - concordaram (mesmo sem ter lido Agamben, imaginamos) os líderes da direita mundial Boris Johnson, Donald Trump (depois obrigados a mudar de ideia) e Jair Bolsonaro, que ainda agora definem o efeito do vírus como uma gripezinha.
Entre os cientistas italianos, teve grande exposição pela tese de “pouco mais que uma simples gripe” Maria Rita Gismondo, inspirada batalhadora da frente da minimização (a quem foi confiada uma coluna cotidiana no jornal "Fatto") à qual se somou um variegado conjunto de artistas e personalidades diversas, incluindo Gabriele Muccino, Gianrico Carofiglio e, várias vezes nas telas de TV, Vittorio Sgarbi. Todos, nos devidos tempos, se retrataram publicamente. O que pesa a seu favor.
Entre eles, apenas Muccino ultrapassou o pensamento conspiratório, criando a hipótese que a epidemia pudesse ser atribuída a "uma operação para derrubar as economias chinesa e europeia". Mas ele também se retratou.
Outros ao contrário - e aqui chegamos ao segundo capítulo das teses de Agamben, ao pensamento da conspiração - identificaram, por trás do coronavírus, manobras obscuras: Diego Fusaro levantou a hipótese de que poderia ser uma "guerra bacteriológica por parte dos Estados Unidos", Red Ronnie (haveria um medicamento capaz de neutralizar o Covid-19, "mas aqui na Itália eles o escondem da gente") e Eleonora Brigliadori ("os EUA estão por trás"; "é terrorismo midiático" e, textualmente, "a pneumonia acomete pessoas que enfraqueceram sua esfera moral na respiração").
Depois, Alessandro Meluzzi (eles escondem o remédio porque custa muito pouco para permitir grandes negócios), Alessandra Mussolini (tudo nasceu em um laboratório chinês) e Domenico Scilipoti, segundo os quais existem elementos válidos para "deduzir" que o cardeal Malcolm Ranjith, arcebispo de Sri Lanka, está certo quando disse: "O vírus é o produto de experiências inescrupulosas de nações ricas e poderosas". Quais?
Afirma a seita do Reverendo Moon - conhecida na Itália por ter "enganado", através da adepta Maria Sung, o arcebispo católico Emmanuel Milingo - que o vírus teria saído acidentalmente de um laboratório de Wuhan para a criação de armas químicas e bacteriológicas.
A mesma tese de Mussolini, que encontrou "confirmação" no famoso vídeo da Rai de novembro de 2015 - mais uma vez a história do vírus nascido em um laboratório chinês - que ainda circula, apesar de ter sido declarada "falsa" por todos, absolutamente todos, os estudiosos nesse campo.
Suposições que foram levantadas por Zhao Lijian, porta-voz do Departamento de Informações Estrangeiras em Pequim (com a variante de que teriam sido soldados estadunidenses a trazer o vírus para Wuhan). E, na época da Sars, já haviam sido espalhadas pelos russos Sergei Kolesnikov e Nikolai Filatov. A elas se acrescentaram as teorias de Gunter Pauli (um amigo belga de Beppe Grillo, "emprestado" primeiro ao ex-ministro Lorenzo Fioramonti, depois, há um mês, ao Presidente do Conselho Conte), segundo o qual haveria uma ligação misteriosa entre as Redes 5G, o nascimento do Covid-19 na China e sua difusão na Lombardia.
Todos esses personagens viralizaram e viralizam na Internet. Zombados com superioridade - especialmente os italianos - por Antonio Padellaro no “Fatto” (ele os comparou a personagens dos filmes de Nanni Moretti), Enrico Bucci no “Foglio” e Massimo Castelli no “Panorama”. No entanto, certa consideração foi usada em relação à Agamben. Especialmente por seus colegas. Com apenas alguns casos anômalos, incluindo aquele do diretor de "MicroMega" Paolo Flores d'Arcais, que o atacou de frente, definindo, desde o título de sua matéria, como "devaneios" as teses do autor do Estado de exceção.
Flores fala de Agamben como um "filósofo de renomada audiência internacional, muito influente, especialmente no mundo acadêmico estadunidense, cheio de pós (pós-heideggeriano, pós-foucaultiano, pós-derridiano, pós-pós)". E duela com ele sobre a exegese da Coluna infame. O "bom Manzoni", escreve o diretor de "MicroMega", "nunca teria imaginado que seu romance fosse lido ao contrário do que ele queria dizer, até a mais extrema imprudência". As páginas sobre a peste em Milão são muito atuais, não porque o autor de Os Noivos estigmatize e negue a ideia de contágio ("que era muito real e de fato será multiplicado pelas procissões organizadas pelo cardeal Borromeo"), mas, pelo contrário, porque Manzoni "em primeiro lugar, critica as autoridades que preferem ignorar o contágio por tempo demais”. Porque "o governador Ambrogio Spinola considera as exigências da guerra em curso mais urgentes e rejeita as medidas propostas pelas autoridades sanitárias". E porque “uma vez que se reconhece que a peste existe e se dissemina (por contágio!) na ignorância e superstição da época, a culpa é jogada sobre os ‘untori’ em vez dos invisíveis e então desconhecidos patógenos".
Dito isso, o mérito do governo Conte– aliás "bastante medíocre", afirma Flores, ("sua principal virtude é que o possível governo alternativo ... seria infinitamente pior") - é o fato de ter se resignado em determinado momento a ceder às prementes insistências dos cientistas. De forma que, continua o diretor de “MicroMega”, “seguindo o fio do raciocínio de Agamben”, se estamos na presença de um “poder que quer nos aterrorizar”, quem está “conspirando não é o governo, mas os médicos”. Em suma, seria uma "conspiração dos aventais brancos inimigos do povo" (como Stálin, na véspera de sua morte, "havia denunciado um", acrescenta sarcasticamente Flores). Com o agravante de que seria uma "conspiração de ensandecidos masoquistas, já que médicos e enfermeiros são os mais expostos, os mais presentes "nas trincheiras", aqueles que mais do que qualquer outro sofrem o peso material e psicológico desses dias amarguíssimos e pagam às vezes um preço à beira do heroísmo”.
Não se aguenta mais, Flores escreve, "superstições, gurus e sabe-tudo, mesmo quando se metem a filósofos ou psicanalistas". A partir de agora, "será preciso colocar de lado o bom tom corporativo, mesmo sob o risco do ostracismo da guilda das filosofias ‘pós-pós’ hoje hegemônicas". De forma que, nos manuais de lógica, Flores conclui, no capítulo dedicado às "falácias", "será necessário acrescentar uma nova tipologia": "a falácia do untore, ou falaciagamben". Deve-se dizer, no entanto, que as posições do Flores, na esquerda intelectual à qual ele e Agamben pertencem, parecem minoritárias. Ainda há muitos, muitos mesmo, a maioria, que formulam hipóteses extravagantes sobre o que está escondido "por trás da epidemia".
Segundo um levantamento da Bva Doxa, quase um quarto dos italianos dá crédito às teorias da conspiração. No exterior, é pior: na França, quase 30% seguem esse tipo de publicação na Internet e a média mundial de crédulos sobe a 36%. Somente na Alemanha e no Reino Unido os partidários das teorias conspiratórias do Covid são em número menor do que na Itália. David Quammen, autor de Spillover (Adelphi), o livro que há dez anos previu o que está acontecendo agora, define esse tipo de teoria da conspiração como o "açúcar da web": quanto mais você lê sobre isso, mais quer ler; "uma droga". Uma droga também para os filósofos.
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A estranha paixão pelo complô viral - Instituto Humanitas Unisinos - IHU