10 Abril 2020
"Ficamos admirados. Somos chamados a ver um fio vermelho que une os dois papas, que vai além do cálculo político e nos manifesta, em vez disso, a silenciosa obra do Espírito Santo. Também estamos aliviados, neste momento de provação, pela mística dessa oração que atravessa o tempo e nos devolve, mesmo dentro da tempestade, à maravilha da fé: não tenhais medo, estou sempre com vocês".
A opinião é do teólogo e padre italiano Francesco Cosentino, professor da Pontifícia Universidade Gregoriana, em artigo publicado em SettimanaNews, 04-04-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Uma Praça São Pedro vazia e um papa cansado que avança solitário, carregando o peso da dor do mundo, para interceder com as mãos levantadas em direção a Deus, enquanto como lágrimas do céu a chuva cai sobre o Crucifixo. Ali, naquele silêncio surreal, enquanto muitos corações o acompanhavam, o Papa Francisco levava diante do Pai o sofrimento da humanidade e fazia a pergunta dos apóstolos: "Mestre, não te importa que pereçamos?".
As imagens, sinais e palavras da oração que o Papa Francisco presidiu na sexta-feira, 27 de março, permanecerão na história. Permanece firme como um símbolo de nossa luta contra o coronavírus, aquele Crucifixo colocado no centro de uma praça deserta, sinal de um Deus fraco e derrotado, que não intervém do alto e de fora, mas nos salva afundando-se em nossa dor e compartilhando-a conosco.
O Papa Francisco optou por meditar o episódio do Evangelho de Marcos, que narra uma noite tempestuosa em que os apóstolos se encontram enquanto Jesus, no mesmo barco, dorme. A moldura do Evangelho serve de pano de fundo da situação dramática em que a humanidade inesperadamente se encontrava; nossa rápida e segura travessia por um mundo aparentemente seguro e confortável foi abruptamente interrompida; a ânsia de onipotência do nosso eu e a velocidade do mundo moderno foram forçados a parar pela primeira vez.
A sensação que fica nosso coração é aquela que ressoou nas primeiras palavras do papa: “Desde há semanas, parece cair a noite. Densas trevas cobriram nossas praças, ruas e cidades; apoderaram-se de nossas vidas enchendo tudo com um silêncio ensurdecedor e um vazio desolador, que paralisa tudo à sua passagem: pressente-se no ar, nota-se gestos, dizem-no os olhares. Nós nos encontramos temerosos e perdidos. Como os discípulos do Evangelho, fomos surpreendidos por uma tempestade inesperada e furibunda”.
Uma realidade totalmente misteriosa, no entanto, surge quando nos colocamos diante dessa cena do evangelho e da meditação do papa. Talvez achem difícil de acreditar aqueles que preferem tomar partido ideologicamente, perdendo de vista a realidade da Igreja que nunca pode ser lida politicamente e atravessada por torcidas contrapostas. Certamente existem diferentes sensibilidades, muitas das quais são convocadas a coexistir no único universo eclesial, mas, acima de tudo, existem laços e pontos em comum que o Espírito deve tecer entre os fios da história, de uma maneira totalmente surpreendente.
É o caso do vínculo espiritual entre Ratzinger e Bergoglio e a leitura da passagem do Evangelho de Marcos, conhecida como "Jesus acalma a tempestade".
O papa Bergoglio destacou que os apóstolos não pararam de crer em Jesus, mas como parecia a eles e aos nossos olhos o fato que ele estivesse dormindo durante a tempestade, tentaram acordá-lo gritando: “Mestre, não te importas que pereçamos?”.
O papa repetiu várias vezes, no entanto, a pergunta de Jesus: "Por que sois temerosos?". Essa é uma pergunta que não nos convida a minimizar a tempestade, mas nos desafia a passar por essa situação, continuando a acreditar nele, abraçando as contrariedades do momento presente e permanecendo aberto ao que o Espírito despertará. E, no final, a oração que comoveu o mundo: “Pede-nos que não tenhamos medo. Mas nossa fé é fraca e sentimo-nos temerosos. Mas Tu, Senhor, não nos deixes à mercê da tempestade. Continua a repetir-nos: ‘Não tenhais medo’ (Mt 28,5). E nós, juntamente com Pedro, ‘confiamos-te todas as nossas preocupações, porque Tu tens cuidado de nós’ (cf. 1Pedro 5,7)”.
Com alguma surpresa, pode-se descobrir que semelhante meditação sobre essa página do Evangelho e um grito de oração igualmente apaixonado são encontrados na reflexão do teólogo Joseph Ratzinger sobre o Mistério Pascal. As meditações, juntamente com as de Karl Rahner, são encontradas em um livro intitulado Semana Santa, publicado pela Queriniana.
Em sua meditação no sábado santo, realizada em 1967, Ratzinger afirma que se pelo menos a sexta-feira podia-se olhar o crucificado, o sábado santo, por outro lado, está "vazio, a pesada pedra do novo sepulcro cobre o falecido, tudo é passado [...]. Deus não salvou esse Jesus que se comportava como seu Filho [...]. Sábado Santo: dia do sepultamento de Deus; não é esse, de maneira impressionante, o nosso dia? O nosso século não começa a ser um grande sábado santo, dia da ausência de Deus?”.
Mas eis que aqui o teólogo alemão, que mais tarde se tornou papa, afirma que o grande silêncio do Sábado Santo é antecipado de maneira extraordinária por uma cena do Evangelho: "Cristo dorme em um barco que, sacudido pela tempestade, está prestes a afundar".
Como na primeira parte da meditação do papa Francisco, talvez com uma linguagem mais sofrida e com uma oração que se transforma em clamor, Ratzinger afirma: "Deus está dormindo enquanto suas coisas estão prestes a afundar, não essa é a experiência de nossa vida?". O eco dessas palavras parece alcançar a cena dramática e maravilhosa do momento de oração extraordinária presidida pelo Papa Francisco e, ao mesmo tempo, parece nos oferecer uma leitura do que vivemos hoje.
E, no final, a caneta do então jovem teólogo formula uma oração que leva à comoção e que está misteriosamente unida às palavras que o Papa Francisco nos dirigiu poucos dias atrás: “Quando a tempestade passar, perceberemos quanto a nossa pouca fé era carregada de tolice. E, no entanto, ó Senhor, não podemos deixar de sacudir a ti, Deus, que estás em silêncio e dormindo, e gritar-vos: acordes, não vês que estamos afundando? Despertes, não deixe a escuridão do Sábado Santo durar para a eternidade, deixe um raio de Páscoa cair sobre os nossos dias ... Tu que secretamente guiastes os caminhos de Israel para finalmente ser um homem com os homens, não nos deixes no escuro, não permitas que tua palavra se perca no grande desperdício de palavras dos nossos tempos atuais. Senhor, ajude-nos, porque sem ti afundaremos. Amém".
Ficamos admirados. Somos chamados a ver um fio vermelho que une os dois papas, que vai além do cálculo político e nos manifesta, em vez disso, a silenciosa obra do Espírito Santo. Também estamos aliviados, neste momento de provação, pela mística dessa oração que atravessa o tempo e nos devolve, mesmo dentro da tempestade, à maravilha da fé: não tenhais medo, estou sempre com vocês.
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“O barco na tempestade”, entre Ratzinger e Bergoglio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU