30 Março 2020
O período litúrgico da Paixão (ou Quaresma) é um período de “sacudida” para as pessoas de fé, ao qual se acrescenta neste ano a “sacudida” das medidas decorrentes do coronavírus, que forçou a interromper as modalidades usuais de presença e de comunicação religiosa e a desenvolver novas “a distância”.
A reflexão é de Eugenio Bernardini, teólogo, pastor italiano e ex-moderador da Mesa Valdense, órgão representativo e administrativo da Igreja Valdense, em artigo publicado por Il Fatto Quotidiano, 29-03-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A palavra bíblica que nos é sugerida neste domingo, 29, pelo lecionário “Un giorno, una parola” [Um dia, uma palavra] (Ed. Claudiana, 2019), Quinto Domingo do Tempo da Paixão (ou Quaresma), é: “Não temos aqui embaixo uma cidade estável, mas buscamos a futura” (Hebreus 13,14). Uma palavra que convoca os fiéis a uma reflexão específica sobre o tema do “ficar em casa”.
Comecemos pelo comentário de João Calvino, o mais importante reformador religioso do cristianismo protestante dos anos 1500, junto com Martinho Lutero: “Nós somos como estranhos e errantes neste mundo, nós não temos uma morada estável, senão no céu. Assim, portanto, todas as vezes que formos expulsos de algum lugar, ou que soframos alguma mudança, meditemos sobre que o Apóstolo nos ensina aqui: que nós precisamente não temos uma sede certa sobre a terra, porque o céu é a nossa herança, e, sendo tão exercitados, preparemo-nos todos os dias para o fim último”.
E ainda: “Pois aqueles que vivem demasiadamente à vontade e em repouso muitas vezes forjam para si um ninho neste mundo. E, como somos todos propensos a tal descuido, é útil sermos agitados e frequentemente levados daqui para lá, para que aprendamos a elevar os nossos olhos para o céu, que, caso contrário, inclinam-se demais para baixo” (em “Commentaires de Jehan Calvin sur le Nouveau Testament” [Comentários de João Calvino sobre o Novo Testamento]).
Trata-se de uma leitura autobiográfica: Calvino, assim como muitos outros naquele século crucial para a história europeia, havia experimentado na carne o sofrimento de ter que vagar continuamente para encontrar um lugar onde pudesse viver e expressar sua própria compreensão da fé cristã.
Nesse errar, ele aprendera a confiar apenas em Deus e a reconhecer que somente n’Ele e na sua “cidade” é que encontraria repouso e estabilidade, naquela cidade “bem alicerçada, cujo arquiteto e construtor é o próprio Deus” (Hebreus 11,10).
A sua situação existencial é semelhante a de quem ainda hoje é forçado a se deslocar por motivos alheios à sua vontade, como os refugiados políticos ou religiosos, ou os deslocados pela guerra, ou os migrantes por motivos econômicos ou ambientais, sobre os quais polemizamos ferozmente até poucas semanas atrás e que hoje parecem esquecidos diante da pandemia do coronavírus. No entanto, eles continuam existindo e ocupando um dos lugares mais frágeis.
Nós, pelo contrário, forçados hoje a ficar nas nossas casas e em nossos municípios, ansiamos compreensivelmente a poder voltar ao nosso “errar” moderno, àquela mobilidade que é parte essencial da nossa liberdade. E esperamos fazer isso verdadeiramente muito em breve.
Mas a palavra bíblica de hoje convoca os fiéis a uma reflexão particular sobre o tema do “ficar em casa” e do “errar pelo mundo”, convidando-nos a deixar a situação de “cristãos acomodados” e a assumir a de “cristãos incomodados”, a sair do nosso “acampamento mental”, da nossa “cidade fortificada”, do nosso “ninho no mundo” para sermos, ou voltarmos a ser, cristãos “agitados” pelo Espírito, como escreve Calvino: “É-nos útil sermos agitados e frequentemente levados daqui para lá, para que aprendamos a elevar os nossos olhos para o céu, que, caso contrário, inclinam-se demais para baixo”.
O período litúrgico da Paixão (ou Quaresma) é um período de “sacudida” para as pessoas de fé, ao qual se acrescenta neste ano a “sacudida” das medidas decorrentes do coronavírus, que forçou a interromper as modalidades usuais de presença e de comunicação religiosa e a desenvolver novas “a distância”.
Esperamos que, no fim deste período, as pessoas de fé saibam recuperar a “proximidade”, mas sem voltar a se “acomodar” nos “ninhos” usuais. Precisam disso tanto aqueles que querem transmitir uma palavra vivificante, quanto aqueles que a esperam.
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Calvino e as cidades inabitáveis: “Agitação que nos leva a olhar para o céu” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU