29 Novembro 2019
Em 1938, o historiador norte-americano Crane Brinton acertou na mosca em sua famosa obra “The Anatomy of Revolution”: “Até agora, os revolucionários têm agido como um grupo organizado e quase unânime”, escreveu ele, pesquisando as revoluções britânica, americana, francesa e russa, “mas, com a conquista do poder, fica claro que eles não estão unidos”.
A reportagem é de John L. Allen Jr., publicada por Crux, 28-11-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O diagnóstico de Brinton vem à mente à luz de dois meses de escândalo e polêmicas financeiras no Vaticano, cuja reviravolta mais recente ocorreu na quarta-feira, com a nomeação do papa de um antigo banqueiro italiano como novo chefe da Autoridade de Informação Financeira (AIF) do Vaticano, sua unidade antilavagem de dinheiro e anticrime financeiro.
Apesar de estar longe de ser uma explicação completa, perguntamo-nos se a agitação é, pelo menos em parte, o resultado de conceitos diferentes de “reforma”, que estavam submersos no início da revolução-Francisco, mas que têm vindo progressivamente à tona enquanto o tempo avança.
Um modelo, que poderíamos chamar de “anglo-saxônico e alemão”, tem como premissa as melhores práticas internacionais, fortes estruturas legais e regulatórias, boas estratégias de investimento que entregam bons retornos sobre os investimentos e receptividade às abordagens e soluções do setor privado.
Outro, que poderíamos chamar de “latino e mediterrâneo”, é mais populista. Por “reforma”, ele entende o fim da corrupção, insistindo que o dinheiro público deve servir a fins públicos, e não privados, uma desconfiança em relação às elites e uma forte opção pelos pobres. Ele se baseia menos em regras do que em resultados, julgando as transações principalmente pelo bem que elas estão projetadas para fazer, em vez do cumprimento estrito de requisitos contábeis.
Estou dando nomes geográficos a esses modelos, mas é claro que isso não significa que um anglo-saxão não possa estar mais inclinado à abordagem latina ou vice-versa. Os modelos não são mutuamente exclusivos, mas são diferentes.
Um bom exemplo do choque entre essas duas mentalidades pode ser a polêmica que eclodiu em 2018 sobre uma solicitação do Vaticano à Papal Foundation, com sede nos EUA, para fornecer um empréstimo de 25 milhões de dólares para apoiar um hospital romano à beira da falência.
Para os leigos norte-americanos no conselho da fundação, era um caso duvidoso de investir um bom dinheiro depois de maus investimentos. Para a equipe do papa, tratava-se de salvar empregos e de preservar um importante prestador de cuidados de saúde na Cidade Eterna.
Eu me lembro de me deparar com uma autoridade vaticana perturbada após a eclosão da polêmica, que me questionou por que “os americanos” não pareciam entender que se tratava do Papa Francisco agindo como um bom bispo de Roma. Se ajudar os trabalhadores e os doentes da cidade exigia provocar alguns inconvenientes aos doadores ricos, insistia ele, que bom para o papa.
A tensão também parecia clara no mandato de curta duração do cardeal australiano George Pell como czar financeiro do Vaticano, cujas asas foram cortadas significativamente por Francisco muito antes de as acusações de abuso sexual levarem à sua acusação e condenação em sua terra natal (Pell, que sempre defendeu sua inocência, está à espera do seu apelo final contra essas acusações).
Mais recentemente, outro pilar do modelo de reforma anglo-saxônico-alemão dentro do Vaticano ruiu sob a forma do advogado suíço e especialista em combate à lavagem de dinheiro René Brülhart, ex-presidente da AIF do Vaticano, que, dependendo de quem se acredita, no dia 18 de novembro: a) encerrou seu mandato e deixou o cargo; ou b) renunciou com frustração; ou c) foi demitido.
A deposição de Brülhart ocorreu em meio a uma crescente controvérsia sobre um acordo imobiliário de 225 milhões de dólares em Londres, executado pela Secretaria de Estado do Vaticano, cujas suspeitas levaram a uma investigação na secretaria e no escritório de Brülhart no dia 1º de outubro por gendarmes vaticanos, à apreensão de registros confidenciais e à suspensão de cinco funcionários, incluindo o vice de Brülhart, Tommaso di Ruzza.
Durante sua habitual entrevista coletiva a bordo, voltando do Japão nessa terça-feira, Francisco, em síntese, jogou a AIF (e, por extensão, Brülhart) debaixo do ônibus.
“Parece que a AIF não controlou os crimes de terceiros”, disse Francisco, referindo-se ao acordo imobiliário de Londres e às acusações de que, entre outras coisas, os financiadores italianos envolvidos obtiveram lucros exorbitantes.
Honestamente, foi uma declaração curiosa, dado que, de acordo com os estatutos da própria AIF que o próprio Francisco aprovou em 2013, ela não tem nenhuma autoridade sobre o uso de dinheiro por parte da Secretaria de Estado. Seu mandato está amplamente restrito ao Instituto para as Obras de Religião, o chamado “banco vaticano”.
Não está claro o que Francisco sabe que o possa ter levado a esse julgamento, mas provavelmente não é surpreendente que, em uma disputa entre os dois modelos de reforma esboçados acima, suas simpatias naturais se inclinem mais para a latina e populista.
Para substituir Brülhart, Francisco nomeou nessa quarta-feira o antigo banqueiro italiano Carmelo Barbagallo. A medida ocorreu duas semanas depois de o papa ter escolhido o padre jesuíta espanhol Juan Antonio Guerrero como novo prefeito da Secretaria para a Economia, substituindo Pell.
Surpreendentemente, trata-se de um advogado suíço e de um australiano substituídos por um italiano e por um espanhol.
Os instintos de Francisco foram aparentemente confirmados nessa coletiva de imprensa a bordo, quando ele abordou o fato de que, a pedido do grupo Egmont, uma rede global de unidades de inteligência financeira da qual ele era vice-presidente, Brülhart pediu a devolução dos documentos apreendidos a fim de cumprir com as garantias de segurança de dados feitas nos Memorandos de Entendimento com outras unidades de inteligência financeira em todo o mundo.
“O controle internacional não depende do grupo Egmont”, disse Francisco. “É um grupo privado que tem seu peso. Mas é um grupo privado.”
O assunto parecia refletir ambivalência em relação a entidades privadas, mesmo que chamar o grupo Egmont de “privado” não seja realmente preciso. Trata-se de uma organização composta por unidades governamentais.
Uma maneira de ler os altos e baixos da reforma financeira do Vaticano nos últimos seis anos, portanto, pode ser uma colisão gradual (e amplamente inevitável) entre dois modelos de reforma que pareciam compatíveis quando o objeto era apenas acabar com o status quo, mas que entraram em conflito cada vez mais desde então.
Com os desdobramentos desta semana, parece que Francisco consolidou amplamente o controle nas mãos de pessoas mais próximas do seu próprio modelo latino e populista. Resta saber se isso abrirá caminho para o avanço, esclarecendo os reais objetivos da reforma – ou se, com efeito, embora não intencionalmente, o Vaticano está realmente “voltando para o futuro”.
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Vaticano: finanças confrontam modelo anglo-saxônico-alemão e latino-mediterrâneo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU