04 Novembro 2019
Daqui a poucos dias nossos leitores terão a oportunidade de comprar o livro que terminei de escrever recentemente com o título Il Dio unico e la società moderna (O Deus Único e a Sociedade Moderna, em tradução livre).
Anteriormente - seis anos atrás - eu havia escrito outro livro intitulado Papa Francesco/Eugenio Scalfari. Dialogo tra credenti e non credenti (Papa Francisco/Eugenio Scalfari. Diálogo entre crentes e não crentes).
Esses dois livros e, em particular, aquele que vocês verão pela primeira vez em breve, abordam um tema reservado a um número relativamente limitado. Em particular, houve dois sacerdotes que abordaram temas do mais alto nível cultural, religioso e até político, no sentido em que a política tem uma influência positiva ou negativa na vida dos homens.
O artigo é do jornalista italiano Eugenio Scalfari, publicado por La Repubblica (do qual é fundador), 03-11-2019. A tradução é de Luisa Rabolini.
O cardeal Carlo Maria Martini foi um grande amigo do Papa Francisco: ele o havia conhecido na Argentina e o convencera a vir à Europa, e a Roma em particular. Ele já era arcebispo e, portanto, podia assumir funções de considerável importância no Vaticano. Aquelas funções Martini já as tinha: era cardeal e tentava, dentro dos limites do possível, modernizar a Igreja. Encontramo-nos duas vezes seguidas em uma reunião que incluía delegados não apenas católicos e cristãos, mas também de outras religiões, começando por aquela judaica e depois árabe e assim por diante. Martini sabia que a Igreja precisava de mudanças profundas, mudanças que visassem principalmente a fé, o amor ao próximo, a igualdade e o amor das almas entre si, que superassem o instinto e enriquecessem a mente com sentimentos que tornassem o nosso gênero humano muito mais votado à solidariedade e ao progresso do bem comum. O problema de Jesus Cristo havia se tornado um dos temas de maior importância. Perguntei ao cardeal Martini qual fosse o relato dos evangelistas e, acima de tudo, daqueles poucos, sete ou oito, que a Igreja oficial havia escolhido. A resposta foi que o mais interessante era o evangelho de João. Os estudiosos do problema não tinham certeza se João fosse o evangelista mais jovem e mais amado por Jesus no período que começou com a Última Ceia e terminou com a Crucificação. A tese defendida por Martini não se detém nas origens de João, mas faz essa consideração tomada a partir daquele evangelho: "O evangelho de João começa com versos proféticos e poéticos: no princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Todas as coisas foram feitas por dele e sem ele nada se fez. Nele estava a vida e a vida era a luz dos homens, a Palavra estava no mundo, e o mundo não o conheceu. Veio para o que era seu, e os seus não o receberam. Mas, a todos quantos o receberam, deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus”. E finalmente, o desfecho crucial: "E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós, e vimos a sua glória. Deus nunca foi visto por alguém. O Filho unigênito, que está no seio do Pai, esse o revelou.”
Minhas conversas com o cardeal Martini foram frequentes na Chancelaria de Roma, onde estavam reunidos representantes das maiores religiões monoteístas. Muitas perguntas foram feitas pelos vários presentes, mas tive a sorte de ser escolhido por ele como aquele que mais estimulava sua posição eclesiástica, que eu gostaria de definir de certa forma revolucionária. Aliás, tive com ele várias conversas ao longo dos anos, não mais em Roma, mas em Gallarate, perto de Milão, onde Martini estava hospitalizado por causa da idade avançada. Ainda me lembro do último desses encontros por sua dramaticidade. Sua mente funcionava, mas seu corpo já estava em condições dramáticas: ele pensava com lucidez, mas não expressava mais palavras, apenas movia os lábios sem emitir som. Um jovem sacerdote traduzia aquele movimento dos lábios e o silêncio do cardeal tomava forma na palavra por ele pensada.
Ele continuava a afirmar, embora agora próximo da morte, que a Igreja precisava ser fortemente modernizada e, portanto, mudada e me explicava as principais razões que compartilhava plenamente com Bergoglio, agora também cardeal. Martini morreu, mas seus escritos, seu pensamento, sua ação na Igreja ainda devem ser lembrados e estão fortemente ligados ao Papa Francisco.
O livro que vocês encontrarão nas bancas e livrarias a partir do próximo dia 5 de novembro já vou apresenta-los a vocês hoje. O título é: Il Dio unico e la società moderna Incontri con papa Francesco e il cardinale Carlo Maria Martini. Os encontros por telefone ou pessoalmente de Sua Santidade comigo foram muitos, e espero que possam continuar ainda, enquanto possível. Francisco é um papa que escolheu esse nome porque o Santo de Assis é a pessoa mais mística que o papa identificou e, como o papa Bergoglio não é místico, e é ele mesmo quem o declara, a escolha desse nome, que jamais havia sido usado até o momento para representar o Líder da Igreja, obedece justamente a esse conceito. O Papa Francisco sente-se investido por uma missão da maior importância. Deus é um só e o Papa Francisco sente dentro dele uma tarefa que lhe foi confiada pelo Céu: atualizar a Igreja para que ela possa ter um impacto na sociedade que mudou profundamente nos últimos séculos.
As conversas que tive com ele por carta, telefone e, principalmente, nos encontros que tive até agora na sala de Santa Marta, abordaram essa relação cultural entre a Igreja e a sociedade. Esse trabalho extremamente complexo está previsto pelo Concílio Vaticano II, mas ninguém ainda o havia pensado. Aquele Concílio previa muitas outras novidades a serem afirmadas e foram de fato afirmadas pelos vários pontífices que sucederam o Papa João XXIII: Paulo VI, Papa Luciani, Papa Wojtyla, Papa Ratzinger e Francisco.
Ratzinger, com o nome de Bento XVI, governou de 2005 a 2013, após o que renunciou. Nunca havia acontecido que um papa renunciasse, mas aconteceu com Ratzinger e levou ao topo da Igreja Jorge Mario Bergoglio, que assumiu o nome, como já dissemos, de Francisco, sem número, porque nunca havia tido um pontífice que tivesse usado tal nome.
O Papa Francisco tem muitos problemas a enfrentar, mas o primeiro de todos é que ele estabeleceu que Deus é único.
Até agora, cada um já tive seu próprio: os gêneros, as raças, as espécies, têm seu próprio Deus, uma parte dessas populações acredita em sua existência e outra parte é composta por céticos e blasfemadores. Acontece assim nas Américas do Sul, do Centro e do Norte; acontece assim em muitos países europeus e na China, no Japão, na Coreia, na Rússia: em suma, em todo o mundo existem céticos, não crentes e blasfemadores e fervorosos fiéis ao seu Deus que dificilmente ultrapassa as fronteiras daquele país. Ou seja, a religião sempre foi um mito, os deuses numerosos e frequentemente de duplo sexo.
O Papa Francisco conhece essas situações muito bem e não as compartilha. É obviamente muito religioso, mas como eu já disse, é um revolucionário. O Deus é único para aqueles que acreditam nele, mas a hierarquia religiosa deve estar ciente da sociedade à qual o Deus se dirige.
O Concílio Vaticano II, através dos vários papas que tiveram a tarefa de cumprir suas prescrições, esqueceu uma questão fundamental: como a sociedade civil mudou nos últimos séculos? E então, como deve mudar o ensinamento da Igreja para se adaptar à nova e moderna sociedade?
Esse é o problema que ficou nos ombros do Papa Francisco, que acredita (na minha opinião, com toda a razão) que a sociedade civil nos últimos séculos deve ser estudada a fundo, caso contrário, seria muito difícil a adequação entre as duas entidades: religião e sociedade laica. Mas onde começa a mudança cultural que o Papa Bergoglio deve estudar para se adequar e levar adiante duas entidades muito diferentes uma da outra que, ao mesmo tempo, devem levar em conta essa diversidade para que o mundo possa proceder da melhor maneira?
Certamente não sou o único a quem o Papa Francisco recorreu, mas a relação entre nós dura há seis anos e se aprofunda cada vez mais. Sua Santidade me perguntou quais personagens fossem representativos da sociedade laica, que influenciaram profundamente o povo e as classes dirigentes, e eu os indiquei: Michel de Montaigne, Voltaire, Diderot, d'Alembert, Rousseau, Descartes, Kant, Shakespeare, Cervantes, Henrique da Inglaterra, Petrarca, Foscolo, Alfieri e depois os modernos: D'Annunzio, Quasimodo, Montale, Calvino, Pascoli, Adam Smith. Não quero esquecer Talleyrand e muitos outros. O Papa verá quais devem ser consultados e em que mudaram a sociedade. Existem também outros, talvez políticos demais e pouco intelectuais, e, no entanto, sua influência na sociedade civil não é de forma alguma secundária: Robespierre, Kellermann, Murat, Napoleão Bonaparte, Tolstoi, Dostoiévski, Chekhov, Proust.
Essa é, pelo menos em parte, a sociedade que influenciou fortemente o andamento da religião e nem sempre de maneira benéfica, mas às vezes e, aliás, com frequência os quadros da religião conspiraram com o pior da sociedade. Especialmente a Ordem dos Jesuítas da qual o Papa Francisco provém. Os jesuítas tiveram altos e baixos.
O papa Francisco, que provém da Companhia fundada por Inácio de Loyola, conhece muito bem essas coisas e, portanto, é perfeitamente capaz de descrever a relação entre sociedade civil e religião. Mas qual religião? Esse é outro problema que pesa sobre os ombros de Francisco. O Deus é único, mas as personalidades sacerdotais também são múltiplas: os padres, os monges, os diáconos, as mulheres que operam a caridade dos mosteiros.
Esses problemas também incumbem sobre o Papa Francisco. Quero citar o último que me vem à mente: o movimento popular que desloca principalmente os pobres de um continente para outro, de uma nação para outra e de uma cidade para outra. São de várias raças e se misturam, dando origem à formação de milhões e milhões de “mestiços”.
Francisco conhece todos esses problemas. Desejo que ele não seja apenas um revolucionário, mas também, e acima de tudo, um profeta.
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Francisco, aquele meu amigo revolucionário - Instituto Humanitas Unisinos - IHU