07 Agosto 2019
Nesta primeira reportagem, um mergulho nas técnicas do bahsese (terapia ancestral), como os indígenas tratam as doenças e lutam para preservar seus conhecimentos tradicionais. A imagem abaixo traz desenhos dos indígenas do Alto Rio Negro no início do século 20 da coleção de Theodor Koch-Grünberg e fotografias dos Kumuã: Duhpó; Arkuto; Seribi, Kisibi; Yupuri; Arkuto e do bayá Yepa Suriã (de Alberto César Araújo/Amazônia Real).
(Imagem: Alberto César Araújo/Amazônia Real)
A reportagem é de Fábio Zuker, publicada por Amazônia Real, 02-08-2019.
O pólo Base São José II, do Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) de São Gabriel da Cachoeira, está sem médicos desde que Cuba revogou a parceria com o governo brasileiro, em novembro de 2018. Foi uma resposta ao então presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL), que desprezou a ajuda providencial dos profissionais cubanos. Esse centro de saúde atende à população indígena local e, às vezes, os enfermeiros precisam realizar viagens para comunidades ainda mais afastadas. Nelas, nem mesmo a comunicação por rádio funciona. Cercado por uma densa floresta amazônica, entremeada por corredeiras e lagos, o pólo localizado no médio Rio Tiquié fica a cerca de dois dias de viagem em lancha rápida da sede de São Gabriel da Cachoeira, município localizado no Alto Rio Negro, próximo da fronteira com a Colômbia.
Um cronograma pendurado na parede do pólo São José II indica uma intensa agenda de trabalho e de atendimento às comunidades. Ainda assim, esse esforço é alvo de críticas. “Essa saúde que vem de fora substitui o conhecimento indígena. Eles estão em um território indígena, mas não estão nem aí para o conhecimento dos indígenas”, afirma o Tukano Domingos Borges Barreto, que vive em São Gabriel da Cachoeira. “A dipirona destrói o pajé”. Ele faz referência ao complexo sistema de cuidado com o corpo e de cura dos povos indígenas do Alto Rio Negro, que hoje tem o seu centro na figura do kumu, entre os brancos identificado sob o nome genérico de pajé.
João Paulo Lima Barreto é indígena Tukano e doutorando em Antropologia no Núcleo de Estudos da Amazônia Indígena (NEAI), da Universidade Federal do Amazonas (UFAM).
Para ele o kumu possui o poder de evocar propriedades de cura e de proteção. É ele quem possui um conhecimento preciso sobre estar saudável ou doente, e a maneira para formar e cuidar desse corpo, por meio do bahsese (terapia ancestral), do bahsamoi (os cantos/rituais) e do kihti (as tramas de histórias contadas pelos Tukano).
“É um detentor de fórmulas do corpo”, resume João Paulo sobre a figura-central do kumu. O sistema de conhecimentos indígenas é, na visão do pesquisador, “tão complexo quanto o da ciência, que ela nega, descarta, e não compreende”. “Um sistema muito complexo que foi bagunçado pelo branco”, continua João Paulo.
João Paulo Lima Barreto, Yupuri. (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)
Existe toda uma estrutura do Estado brasileiro para a saúde indígena. Está previsto que indígenas tenham um acesso diferenciado à saúde, pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), vinculada ao Ministério da Saúde. Os Distritos Sanitários Especiais Indígenas (Dsei), que são de responsabilidade federal, atuam em uma ou mais Terras Indígenas do país, podendo realizar parcerias com os poderes estaduais, municipais e organizações não-governamentais.
Mas para Lucila Gonçalves, psicóloga e pesquisadora na área de saúde indígena pela Universidade de São Paulo (USP), usualmente “não se leva em conta o conhecimento dos indígenas de maneira simétrica. Formalmente, há uma proposta de integração, mas o conhecimento dos indígenas acaba desqualificado em relação à biomedicina”. No Xingu, onde nos últimos anos Lucila tem realizado sua pesquisa de doutorado, existe uma proposta de trabalho e integração, mas ela está longe de ocorrer de forma efetiva. Lucila conta um episódio que aconteceu com Mapulu, uma importante parteira e pajé da etnia Kamaiurá em Canarana, já fora do Território Indígena do Xingu, no Mato Grosso. Durante um parto que ela foi acompanhar na cidade, o médico do hospital não permitiu que Mapulu entrasse para fazer a pajelança, que envolve “assoprar” a paciente. A pajé teve que tirar a paciente à força do hospital, assoprá-la fora, enquanto o médico protestava. Com a melhora do quadro da paciente, este veio lhe pedir desculpas.
É diante deste quadro, em que o conhecimento indígena é relegado a segundo plano ou tratado como crendices espirituais, que surgem importantes experimentos do valorização do conhecimento indígena. Hamyla Elizabeth da Silva Trindade é enfermeira e indígena Baré, e uma das responsáveis pela Casa de Saúde Indígena (Casai), de São Gabriel da Cachoeira. O local atende mensalmente, em regime de plantão, cerca de 96 pessoas, a maior parte delas com pneumonia, diarreia, malária e suspeita de tuberculose, conforme relatório de 2018. “Na Casai, diariamente, os indígenas nos pedem para o pajé fazer o benzimento ou a pajelança. A gente se depara diariamente com águas benzidas, cigarros para defumar. Trabalhamos com essa relação medicina tradicional e ocidental”, pontua Hamyla.
O kumu Ovídio Barreto, Kumarõ. (Foto: Fábio Zuker/Amazônia Real)
Kumu Dophó Manoel Lima atende visitante no Centro de Medicina Indígena, em Manaus. (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)
João Paulo Lima Barreto, porém, deseja ir além: “os indígenas estão viciados em remédios, e esquecem nossas formas de cura”. É parte desse conhecimento que João Paulo trouxe para Manaus ao criar o Centro de Medicina Indígena Bahserikowi´i, em junho 2017, onde os kumuã (plural de kumu) do Alto Rio Negro atendem a população da capital amazonense. Em dois anos, o centro atendeu 2.300 pessoas, sendo 99% não indígenas – 80% são mulheres com idades entre 25 a 60 anos.
Além disso, como experiência-piloto, João Paulo trabalha junto a seu pai, o kumu Ovídio Barreto, no atendimento de indígenas doentes na Casai de Manaus. “Trata-se de uma parceria entre o Centro de Medicina Indígena Bahserikowi´i e a Casai de Manaus. Nós entramos com o capital humano, e eles com a infraestrutura e organização”, explica o antropólogo.
Essa reportagem especial da agência Amazônia Real acompanha o regresso de João Paulo Lima Barreto, 47 anos, à aldeia onde nasceu, após 15 anos de afastamento para estudar na capital amazonense. Chamada de Uhremiripa (corredeira de rouxinóis) antes da chegada dos missionários salesianos e hoje conhecida como comunidade de São Domingos Sávio, está localizada a dois dias de distância de lancha da fronteira com a Colômbia – separada por duas grandes cachoeiras que dificultam a subida do Rio Tiquié. Na língua Tukano, João Paulo se chama Yupuri, que significa o quarto filho. Os outros irmãos são Anacleto Lima, José Maria, Antônio José e Pedro Ângelo. O nome em português foi dado por sua mãe, Ercilia Lima Barreto em homenagem ao Papa João Paulo I (1912-1978). Dona Ercila faleceu em 2005.
Nas conversas durante o nosso trajeto entre a sede de São Gabriel da Cachoeira e a comunidade de São Domingos, passando o tempo durante as horas a fio na lancha, escondendo-nos como podíamos do sol abrasador e das chuvas geladas, o que se entrevê é o dia a dia de pessoas às voltas com as dificuldades de perpetuar as formas indígenas de conceber e lidar com o mundo. Diante da perseguição da Igreja Católica no início do século 20 e do atual sistema de saúde estatal que lida mal com as práticas e conhecimentos indígenas, chama a atenção a luta pela transmissão desses conhecimentos, em meio à dura vida de indígenas nas aldeias e do preconceito que sofrem na cidade de São Gabriel da Cachoeira.
Com 45 mil habitantes, cerca de 80% da população de São Gabriel da Cachoeira é indígena. É o município mais indígena do Brasil com as seguintes etnias: Arapaso, Baniwa, Barasana, Baré, Desana, Hupda, Karapanã, Kubeo, Kuripako, Makuna, Miriti-Tapuya, Nadob, Pira-tapuya, Siriano, Tariano, Tukano, Tuyuka, Wanana, Werekena e Yanomami. Eles fazem da cidade um território multicultural. Em cada esquina, ouve-se um idioma pronunciado por distintos povos. A diversidade é tamanha que a Lei Municipal 145, de 22 de novembro de 2002, passou a reconhecer o nheengatu, o tukano, o baniwa e o yanomami como línguas oficiais da cidade.
Inspirado nessa iniciativa municipal, João Paulo estuda a possibilidade de elaborar um projeto de lei estadual que reconheça os kumuã e demais pajés de outros povos indígenas do Amazonas como especialistas aptos a trabalharem como terapeutas no diagnóstico de enfermidades e processos de cura juntos aos médicos que exercem a medicina ocidental.
Os Tukano, originalmente, se auto-denominam Yepá-Mahsã. Yeapá é o construtor do mundo terrestre e dos povos do Alto Rio Negro; Mahsã é o próprio ser humano. O nome Tukano é um apelido dado por outro povo do Alto Rio Negro, os Dessana, que acabou sendo incorporado à linguagem comum dos Yepá-Mahsã e no cotidiano deles. Também acabou sendo difundido por não-indígenas.
O mundo, para os Tukano, requer a mediação constante realizada pelos kumuã, junto aos wai-mahsã, os guardiões dos lugares. Como tudo no mundo tem o seu guardião, seu responsável, é preciso haver mediação: do consumo de alimentos à entrada na mata e pescaria, do parto às formas de lidar com o crescimento das crianças e formação do corpo. São os wai-mahsã que detêm os conhecimentos referentes aos bahsese e às formas rituais. Assim, a comunicação feita pelos kumuã é fundamental para a aquisição e circulação de conhecimentos. O corpo, em constante formação, precisa de cuidados próprios, com alimentação, resguardos e práticas dos especialistas, como o bahsese.
Para que a comunicação entre especialistas e o waimahsã ocorra, é necessária uma etiqueta rígida, marcada pelo preparo do corpo, com a ingestão de substâncias específicas, como o sumo de determinados cipós e do paricá (um rapé com propriedades alucinógenas), elaborados para as grandes festas. Neste preparo dos kumuã, é proibida a ingestão de determinados alimentos, como carne de caça e peixes grandes e gordurosos. Se esses requisitos não forem cumpridos, os waimahsã, os donos das coisas, podem ficar furiosos.
Tradicionalmente, existem três tipos de especialistas entre os Tukano e alguns outros povos indígenas do Alto Rio Negro, que atuam juntos no tratamento do corpo. O yaí é aquele que possui a capacidade de diagnosticar doenças; o kumu é o responsável pelo cuidado com o paciente já diagnosticado pelo yaí, por meio da bahsese e do uso das plantas medicinais; já o bayá é o mestre condutor das grandes cerimônias, também responsável pela terapia. É no diálogo entre esses especialistas e os seres invisíveis que se dá a manutenção das forças do cosmos e o equilíbrio do meio ambiente, acreditam os indígenas.
Os missionários salesianos, que fundaram um centro em São Gabriel da Cachoeira em 1916, e a partir de então subiram os Rios Uaupés, Tiquié, e outros na região fronteiriça entre Brasil, Colômbia e Venezuela, não viam com bons olhos esse conhecimento indígena. A expansão do trabalho dos missionários ocorre em meio à decadência do ciclo da borracha, na década de 1920. De certo modo, o enfoque colonial muda do controle sobre o corpo para gerar uma força de trabalho para o controle da alma a fim de gerar fiéis. Objetivando “a regeneração dos pobres selvagens”, os kumuã, responsáveis pela formação dos corpos indígenas, passaram a ser perseguidos.
“As figuras dos nossos especialistas eram comparadas com bruxos. Nosso conhecimento foi categorizado como profano, diabolizado e perseguido”, afirma João Paulo. De acordo com o antropólogo indígena, as categorias de kumu e bayá são hoje escassas, e os yaí foram praticamente extintos. As malocas coletivas foram destruídas, com a imposição de moradias baseadas em núcleos familiares. Os católicos salesianos acreditavam que eram locais onde os indígenas realizavam orgias incestuosas, e qualificavam as festas e pajelanças como diabólicas. Ignoravam regras de casamento como aquela que indicava que homens Tukano deveriam se casar com mulheres Tuyuka, aprendendo de seus sogros conhecimentos referentes à bahsese e plantas medicinais.
Aquilo que os salesianos consideravam como um programa “civilizatório”, consistia em fazer: “1o. Abandonar a maloca, lugar que por sua natureza torna/se de corrupção, para que cada qual viva em sua casa própria; 2o. No desistir das orgias periódicas com as inevitáveis bebedeiras; 3o. No realizar o matrimônio sem o rapto violento da esposa, mas de comum acordo; 4o. No participar da Missa Dominical”.
“Muitos kumuã morreram de tristeza por não poderem exercer seus ofícios”, conta João Paulo. “Meu avô mesmo quase morreu. Para ele, exercer esse ofício era vital”. Segundo ele, os instrumentos de trabalho do avô, que foram apreendidos, encontram-se hoje no Museu do Índio, em Manaus. Os kumuã remanescentes estão fadados ao desaparecimento por conta do sistema educacional dos missionários e da própria lógica do sistema educacional laico dos brancos, que levam os indígenas para a cidade, e relega ao segundo plano o conhecimento dos povos da floresta. João Paulo faz uma crítica à própria antropologia, que permanece lendo a bahsese na chave do ritual religioso, enquanto o desafio lhe parece mais “trazer para o debate os nossos próprios conceitos indígenas, e fugir desse jargão”. Por isso, prefere falar em “técnicas terapêuticas”, “especialistas” e “terapia ancestral”.
O kumu Durvalino Moura Fernandes, kumu do povo Dessano (Kisibi) de camisa azul com o paciente Anacleto Lima Barreto em São Gabriel da Cachoeira. (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)
O kumu Durvalino Moura Fernandes, cujo nome é Kisibi na sua língua Dessana, mora desde 2001 em São Gabriel da Cachoeira, com sua esposa Judith. Ele conta que seu pai era um grande kumu, e com ele aprendeu a fazer bahsese, os importantes benzimentos que formam e protegem as pessoas: “Você vai ficar no meu lugar, e precisa aprender a benzer”, ouviu de seu pai. Para Durvalino, “a educação dos brancos está acabando com o benzimento”. A vida na cidade dificulta muito o compartilhamento de conhecimentos entre os kumuã, por isso, junto a outros kumu, ele está elaborando a criação de uma escola de kumuã e trocas de conhecimento em alguma aldeia ainda a ser definida. Ele vê com ceticismo a proliferação de kumuã na cidade, que não se submetem ao rígido processo de formação.
A perseguição da Igreja Católica culminou na eliminação da produção de paricá, encontrado hoje apenas entre os indígenas da selva colombiana. Judith Fernandes Sarmiento, cujo nome de benzimento em tukano é Yuhsio (uma heroína mítica que organiza o processo de conhecimento da mulher), é neta de um kumu poderoso, mas não pôde aprender com o seu pai as técnicas de bahsese, pois ele foi criado como assistente dos padres, trabalhando como faxineiro e costureiro. O pai só veio a aprender bahsese quando Judith se casou com Durvalino, e então seu sogro o ensinou.
Judith conta que seu marido hoje “cuida muito das freiras franciscanas. Mandam fechar o corpo delas para não pegar doenças daqui. Benze com perfumes e com cremes”. Antigamente, conta Durvalino, os padres “chamavam os kumu de diabo. Hoje em dia, são mais compreensíveis”. O kumu possui um jeito brincalhão, e repete, rindo em tom jocoso, a mesma frase, “e assim consequentemente”, o que não deixa de ser um comentário ao próprio assunto sobre o qual conversávamos, e as consequências das perseguições do passado hoje.
Os irmãos João Paulo e José Maria Lima Barreto na escola do internato salesiano. (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)
“Pois é, Fábio, chegamos no Quartel General dos Padres”, comentou João Paulo, logo após descermos do barco naquilo que um dia fora a missão salesiana de Pari-Cachoeira e onde mora a sua família. São Domingos Sávio, sua comunidade de origem, está a cerca de meia hora rio acima com motor (um dia de viagem de barco a remo), em direção à Colômbia. Por conta da escola, Pari-Cachoeira continua exercendo uma espécie de força atrativa junto aos indígenas, em sua maioria do povo Tukano, que vão para o local da antiga missão em busca de uma melhor formação para os filhos.
No passado, a Igreja possuía capitães em cada aldeia. “Quando o capitão sabia de um kumu atuando, eles o perseguiam e mandavam apreender tudo”, conta João Paulo. “Faziam também pressão psicológica e econômica, não vendendo mais fósforo, sabão, roupas ou tabaco para as comunidades com kumuã atuantes”. Os indígenas eram obrigados a vir de canoa, remando por dias, para celebrações especiais como Páscoa e Natal, sob ameaça de serem punidos.
Conversei com um dos padres responsáveis pela Paróquia São João Bosco, onde antes funcionava o internato, desativado há décadas. Joãonilton Lemos Castanho é indígena do povo Tariano, de Taraquá, na cabeceira do Rio Tiquié, e está em Pari-Cachoeira há um ano e meio. “Eu vejo com bons olhos essa história. Graças aos salesianos que essas comunidades são o que são”, afirma o padre. Ele mesmo se considera fruto desta empreitada, e fala com orgulho da ordem, que conseguiu se estabelecer no Alto Rio Negro, onde antes haviam falhado os jesuítas. Pergunto-lhe então sobre a maneira como a Igreja lidou com os costumes dos indígenas, especificamente as formas de cura dos kumu que foram perseguidos. “Para aquele tempo, houve o choque de realidades, de duas culturas. [Os missionários] vieram da Europa e chegaram muitas vezes impondo a sua cultura. Em certo sentido, foi uma perda da nossa cultura: as danças, a nudez. Foi uma grande perda”, admite o padre.
João Paulo lembra com detalhes da vida em Pari-Cachoeira. Foi mandado para lá aos 9 anos de idade, comprometendo a possibilidade dele se tornar um especialista indígena, seja como yaí, kumu ou bayá, já que os três exigem uma formação específica detalhada, e que pôde ser seguida por muitos de seus primos e irmãos.
Comenta, algo desolado, sobre a mudança em sua vida, com a saída da aldeia para um internato com outras 150 crianças, regido por uma dura disciplina religiosa, de ensino e de trabalho. “Tinha horário para levantar, comer, rezar, estudar, fazer roçado e ir dormir”. Tudo sob a vigilância dos salesianos, que proibiam os indígenas inclusive de falar Tukano. “Quem falasse tinha que usar uma placa de burro”, conta. O interesse era transformar os indígenas em homens à imagem da civilização europeia, a partir do batizado, do trabalho e da disciplina.
De Pari-Cachoeira, João Paulo ganhou uma bolsa de uma empresa de mineração interessada em explorar a região. O curso do ensino médio era para técnico de mineração, em Manaus. Depois de formado, voltou à Pari-Cachoeira para lecionar no mesmo internato onde havia estudado por oito anos. Foi se encaminhando para o sacerdócio e, pouco depois, voltou à Manaus, onde iniciando seus estudos em direito, abandonou definitivamente a vida religiosa. Hoje se considera cristão não-praticante. Ingressou pelo programa de cotas para indígenas no curso da Universidade Estadual do Amazonas, período em que esteve intensamente envolvido com o movimento indígena.
O kumu Claudio Barreto. (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)
João Paulo buscava um tipo de diálogo entre o mundo do direito e o repertório Tukano, tentando propor uma reflexão sobre as concepções indígenas e o direito consuetudinário, a forma jurídica que surge dos costumes de determinada sociedade. Mas o mundo do Direito parecia demasiado fechado para tais experimentos. O indígena decidiu então largar o curso, e foi tentar a sorte na faculdade de Filosofia, com a proposta de obter o seu diploma com um trabalho sobre filosofia indígena, prontamente recusado pelos professores. O corpo docente julgava não existir uma bibliografia especializada na qual o aluno pudesse se embasar. Foi na Antropologia, finalmente, e no contato com seu orientador e amigo, o professor Gilton Mendes do Santos, que João Paulo encontrou um ambiente onde pôde colocar em contato sistemas de conhecimento com os quais convivia diariamente, desde que fora levado para o internato em Pari-Cachoeira.
A visão de João Paulo acerca da Igreja, da sua trajetória e das instituições pelas quais passou não está focada na ideia de que uma cultura foi destruída e tudo se perdera. Enquanto visitávamos, junto a seu irmão José Maria, as dependências do internato de Pari-Cachoeira, onde dormiam quando crianças e adolescentes, ele afirmou que via tudo isso como instrumentos para transformação. “Eu cheguei a pensar que isso tudo era uma perda, mas hoje estou convencido de que não”, afirma João Paulo. É possível vir “a ter um conhecimento junto aos waimahsã, porque eles estão em outro plano, não no plano da perda”. Com a retomada da formação dos especialistas, mediante isolamento, ensino, alimentação, e uso de substâncias para limpeza estomacal e abertura do corpo, João Paulo acredita ser possível a conexão com os waimahsã e a recuperação de conhecimentos “esquecidos” neste plano mundano.
Parte desse entendimento de João Paulo aconteceu durante trajeto ao Alto Tiquié, quando paramos para almoçar em uma pequena comunidade Tukano, aos pés da Serra da Mucura. Lá, um kumu respeitado, chamado de Ahkuto na língua Tukano, contou uma complexa narrativa acerca da origem das serras que existem por detrás da aldeia, assim como o surgimento das doenças e da cura pela terapia ancestral a elas associadas. Ao final da trama, afirmou que essa história não era ele que estava contando. Ela ocorreu assim mesmo, e isso está escrito nas pedras nas montanhas e nas corredeiras. Para os Tukano, os conhecimentos sobre a bahsese e as narrativas de criação parecem se inscrever na paisagem local.
O kumu Nelson – Ahkuto na Comunidade Tukano, aos pés da Serra da Mucura. (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)
Esta reportagem especial foi realizada na Terra Indígena Alto Rio Negro com a anuência das lideranças Tukano da Aldeia São Domingos Sávio e da Fundação Nacional do Índio (Funai).
A matéria faz parte do projeto “Olhando por dentro da Floresta Amazônica”, da Amazônia Real, que está voltado para a produção de conteúdos sobre as populações indígenas, quilombolas, extrativistas, ribeirinhas, defensores do meio ambiente, defensores dos direitos humanos, impactados socioambientais de megaempreendimentos na região amazônica.
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Os Kumuã do Alto Rio Negro: especialistas da cura indígena - Instituto Humanitas Unisinos - IHU