16 Julho 2019
Em um edifício circular aberto nas laterais, ao lado da capela católica nessa aldeia ameríndia, o padre Ron MacDonell, das Missões Scarboro, estava explicando como a língua, os dentes e as cordas vocais trabalham juntos para produzir sons.
A reportagem é de Barbara J. Fraser, publicada por Catholic News Service, 15-07-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Seus ouvintes, cerca de 30 líderes leigos das aldeias indígenas Macuxi e Uapixanas, na região de Rupununi, no sul da Guiana, colocaram seus dedos em seus pescoços para sentir as vibrações enquanto experimentavam as palavras.
A sessão fez parte de uma oficina de dois dias em abril para ajudar os líderes leigos a melhorarem a leitura das Escrituras dominicais em seus próprios idiomas durante as liturgias que eles lideram em suas comunidades.
Clare Alexander, 40 anos, residente Uapixana de Santo Inácio, estava praticando em voz alta nas duas línguas, porque essa aldeia, que fica ao lado da cidade de Lethem, na fronteira entre a Guiana e o Brasil, inclui pessoas de ambos os grupos indígenas.
Perto dali, Elsa Ignacio, 64 anos, líder da comunidade católica na aldeia de Meriwau, estava aprendendo Uapixana.
“Eu preciso ensinar as crianças, porque estamos esquecendo”, disse ela. “As crianças estão aprendendo apenas inglês na escola.”
Os missionários jesuítas na Guiana também estão promovendo um programa piloto de educação bilíngue de dois anos, que eles esperam expandir, disse o padre jesuíta Varghese Puthusserry, que trabalhou com povo Uapixana na região de Rupununi na última década.
Ele se tornou fluente em Uapixana porque, embora as pessoas nas comunidades em que ele trabalhava falassem inglês, a língua oficial da ex-colônia britânica, “eu senti que não estávamos nos comunicando com eles”, disse Puthusserry ao Catholic News Service.
Ao longo dos anos, as pessoas foram desencorajadas a falar sua língua nativa, e os jovens que se preparavam para a confirmação “não conseguiam se expressar em nenhum dos dois idiomas”, disse ele. “Eles não eram proficientes em inglês e haviam perdido a sua própria língua.”
Isso levou a um programa de alfabetização, que serviu de base para o programa de educação bilíngue que começou em três aldeias.
Para MacDonell, missionário e linguista da província de Nova Escócia, no Canadá, as duas vocações são uma combinação natural.
“Os missionários tradicionalmente trabalham em terras estrangeiras, por isso se envolvem no aprendizado de outras línguas”, disse ele.
Para a maioria, o aprendizado de idiomas é “um meio para um fim, que é o seu trabalho pastoral ou de evangelização”, acrescentou.
Mas, para ele, a linguagem é mais do que apenas uma maneira de se comunicar. Ela abre uma janela para as culturas indígenas e permite que ele ajude os povos indígenas a manterem sua identidade.
Os primeiros missionários europeus a se aventurarem na Amazônia nos séculos XVI e XVII aprenderam as línguas nativas, desenvolveram dicionários e traduziram a Bíblia.
Agora, no entanto, muitas dessas línguas correm o risco de desaparecer, e os membros da Igreja estão incentivando as comunidades a mantê-las vivas.
As línguas indígenas sofreram um declínio “drástico” na bacia amazônica, disse MacDonell. Ele espera que o Sínodo dos Bispos sobre a Amazônia em outubro, uma reunião de bispos convocada pelo Papa Francisco, ajude a chamar a atenção para as ameaças à linguagem e a outros aspectos das culturas indígenas.
“A linguística como um ministério na Igreja ajuda os povos indígenas a revitalizarem a sua língua, a aprenderem a sua língua, a apreciarem e a valorizarem mais a sua língua”, disse MacDonell.
Mais de 300 línguas existem na bacia amazônica, mas muitas são faladas apenas por um punhado de pessoas. As crianças muitas vezes não aprendem as línguas nativas das suas famílias, porque seus pais preferem aprender a língua dominante do país – o inglês na Guiana, o português no Brasil, e o espanhol na maior parte do restante da Amazônia.
Em todo o mundo, os linguistas temem que nove em cada 10 idiomas desaparecerão até o fim deste século. Globalmente, apenas algumas línguas usadas com mais frequência nos negócios e nas finanças, como o inglês e o mandarim, estão absorvendo outras línguas menos difundidas.
Muitas línguas amazônicas já desapareceram desde a chegada dos primeiros missionários.
No século XVI, quando os exploradores e missionários espanhóis chegaram pela primeira vez àquela que hoje é a região de Beni, no norte da Bolívia, nas terras baixas da Amazônia, havia cerca de 400 grupos indígenas que falavam 39 idiomas. Nos anos 1990, apenas três línguas ainda estavam em uso, e uma era considerada seriamente ameaçada.
Muitas outras línguas ainda faladas na bacia amazônica também estão ameaçadas; MacDonell citou várias razões.
Muitos grupos indígenas são muito pequenos, e, em alguns, apenas um punhado de pessoas ainda fala a língua. Algumas pessoas que agora são de meia-idade se lembram de serem punidas por falarem sua língua nativa na escola, então pararam de usá-la.
Na esperança de poupar seus filhos de uma vergonha e dor semelhantes, e ansiosos para que eles tenham as vantagens oferecidas por falarem a língua dominante do país, esses pais não ensinaram aos jovens a língua nativa do seu povo. Se as crianças não aprendem uma língua, ela está fadada à extinção.
As pessoas também podem parar de falar sua língua nativa quando migram das suas aldeias para cidades em busca de emprego ou de educação, em parte porque enfrentam discriminação e em parte porque a língua nacional dominante é a língua franca.
Quando uma língua se extingue, perdem-se mais do que palavras.
“Você perde outra forma de ver a realidade”, disse MacDonell. “Cada língua filtra a nossa experiência humana de uma forma diferente. Isso se perde – essa riqueza, essa diversidade.”
A língua abre uma janela para o modo como as pessoas veem e compreendem o mundo.
Quando o povo Macuxi, no Brasil, olham para o céu noturno, eles têm uma palavra para se referir às estrelas brilhantes e outra para as estrelas fracas.
“Nós não faríamos essa distinção”, disse MacDonell sobre os missionários norte-americanos. “Uma estrela é uma estrela.”
Além desses detalhes, outros aspectos da cultura desaparecem quando uma língua cai no esquecimento, especialmente entre as pessoas que transmitem informações de uma geração para outra, contando histórias.
“Você perde uma rica tradição – histórias culturais, a história, a tradição oral do povo”, disse MacDonell.
Essas histórias geralmente contêm uma sabedoria sobre como as pessoas se relacionam com o mundo natural, incluindo o conhecimento das plantas, crucial para as práticas tradicionais de cura.
Embora essas coisas possam ser escritas, isso significa que o que antes era tradição oral “se torna um fóssil”, disse MacDonell. “Você tem um registro disso, mas não é a escuta ou a audição ao vivo da cultura e de toda a sabedoria que as acompanha.”
Em vários países, no entanto, grupos indígenas estão dando passos para manterem suas línguas vivas.
Em Nauta, uma cidade no baixo rio Marañón, no Peru, uma estação de rádio administrada pela Igreja lançou um programa no turno inverso ao da escola, em que os idosos do povo Kokama que ainda falam a sua língua nativa ensinam as crianças cujos pais não falam Kukama em casa.
Alguns dos jovens envolvidos no programa fizeram videoclipes – cantando e fazendo rap em espanhol e em Kokama.
Os povos indígenas de outros países têm pressionado seus governos a fornecerem professores bilíngues para as escolas. No território indígena do Vale do Javari, no oeste do Brasil, na fronteira com o Peru, as crianças falam a sua língua nativa no Ensino Fundamental, geralmente aprendendo espanhol apenas quando saem de suas aldeias para continuarem seus estudos na cidade mais próxima.
Embora isso garanta que a língua nativa permaneça viva e vibrante, isso também dificulta a transição para o Ensino Médio para os estudantes, dizem os missionários.
Em seus primeiros anos como missionário em Roraima, MacDonell trabalhou com catequistas de quatro aldeias para desenvolver um dicionário da língua Macuxi. Anos mais tarde, uma dessas pessoas, um professor, disse-lhe que ele estava usando o dicionário para planejar as aulas para os alunos.
Agora, o padre canadense realiza oficinas para grupos indígenas em várias partes da Amazônia, que buscam manter suas línguas vivas. Ele se sente abençoado, pois, como missionário, ele pode combinar o ministério sacramental com o seu amor pela linguagem e o seu desejo de trabalhar pela justiça entre os povos indígenas da região amazônica.
“Meu combustível é a minha própria paixão”, disse ele. “No fim da minha vida, quando eu me perguntar: ‘A minha vida foi fecunda? Eu cumpri as expectativas ou os convites de Deus para mim?’, eu gostaria de dizer sim.”
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Em cidades da Amazônia, católicos ajudam indígenas a manter suas línguas vivas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU