11 Junho 2019
Boa parte das maiores empresas alimentícias do mundo (Unilever, Nestlé, Danone, Kellogg’s, McDonald’s, KFC, a brasileira JBS…), agrupadas no Consumer Goods Forum (CGF), decidiram em 2010 que até 2020 suas cadeias de produção estariam livres de ingredientes obtidos graças ao desmatamento. A produção de matérias-primas terá destruído nestes 10 anos florestas do tamanho da Espanha, calcula a ONG. A seis meses do fim do prazo, o Greenpeace exige que essas corporações cumpram seu compromisso e considerem o Cerrado um exemplo claro dos resultados da falta de ação, segundo o relatório intitulado Contagem Regressiva para a Extinção, apresentado nesta terça-feira. Mas se mostra pessimista: “Contatamos mais de 60 marcas que assinaram ou são líderes do mercado, mas a maioria não respondeu, e as que o fizeram não podem garantir que não utilizam em suas cadeias de produção ração obtida a partir da soja que vem de zonas desmatadas”, disse Rômulo Batista, pesquisador do Greenpeace, durante uma viagem ao Cerrado organizada pela ONG. E isso que, como salienta, a tecnologia permite que as cadeias de produção sejam mais transparentes.
A reportagem é de Naiara Galarraga Gortázar, publicada por El Pais, 11-06-2019.
Batista sustenta que a moratória da soja da Amazônia — a cerca de mil quilômetros do Cerrado — é um bom modelo. Aquele pacto, assinado por grandes empresas com o Governo brasileiro e a sociedade civil, permite que há uma década a indústria não utilize mais a soja de zonas recém-desmatadas na maior floresta tropical do mundo. O Greenpeace salienta que o acordo permitiu um grande aumento do cultivo de soja nessa região sem desmatar novas zonas. O compromisso do Consumer Goods Forum para 2020 é inclusive mais ambicioso, porque abrange o planeta inteiro e prevê que não haja desmatamento na produção de vários produtos, incluindo soja, gado, cacau, lácteos, azeite de palma e papel.
Mas o Cerrado não é a Amazônia. É menos exuberante, menos famoso e goza de uma proteção legal muito inferior à dada ao chamado pulmão do mundo. O Cerrado é a savana mais biodiversa do mundo, acolhendo 5% das plantas e animais, incluindo 4.800 espécies endêmicas. Uma riqueza à qual tradicionalmente se prestou pouca atenção no Brasil, enquanto a agroindústria crescia a ritmo vertiginoso impulsionada pelo boom das matérias-primas e o veloz crescimento econômico da China. Estas terras são férteis porque, a partir da década de 1970, o Brasil enviou engenheiros-agrônomos mundo afora para aprenderam, com os outros e em suas próprias pesquisas, a reduzir a acidez da terra e permitir que a soja germinasse. O Brasil é hoje o maior exportador mundial dessa leguminosa: em 2017, vendeu 25 bilhões de dólares em soja (sendo 90% para a China e 9% para a Europa). Esse produto representa 12% de suas exportações, mas é, junto com a pecuária, o principal motor do desmatamento.
"Quando chegaram jamais imaginamos que nos causariam tantos prejuízos", explicou numa tarde recente Lopes Leite na varanda de sua casa em uma pequena comunidade a seis horas de carro de Barreiras (no interior do Estado da Bahia, na confluência com Maranhão, Tocantins e Piauí), cercada por milhares de quilômetros quadrados de plantações. Estas cidades prosperaram (têm luz, trator, escolas, geladeira ...) e alguns moradores são trabalhadores diaristas em situação precária nos latifúndios, mas, de acordo com o Greenpeace, as melhorias econômicas alardeadas pelo setor agrícola não chegaram até eles.
Numa vista aérea, a sucessão de quadrados de diferentes tamanhos e tons de verde parece um Rothko que se estende até onde a vista alcança. Apenas um pequeno avião amarelo de fumigação, que de cima parece um mosquito, dá uma ideia da magnitude. Aqui e ali surgem pequenas parcelas com vegetação verde escura. São reservas ambientais. Um total de 20% das terras do Cerrado é intocável por lei, na Amazônia, 80%. O desmatamento aqui é maior e mais acelerado do que lá: 8.972 quilômetros quadrados nos últimos 12 meses, segundo o Greenpeace. Quase o tamanho de Chipre, apontam suas medições feitas por satélite.
Para esta ONG, o latifúndio Estrondo, que, com 305 mil hectares, é maior do que Luxemburgo, incorpora o pior da indústria da soja. Suspeita que se apropriou ilegalmente de terras, algumas de suas licenças para desmatar legalmente estão sendo investigadas e é acusado de usar trabalho análogo à escravidão. O Greenpeace afirma que em abril constatou que estavam cultivando 69 hectares embargados pelo Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente). Todas as tentativas de ouvir a versão do Estrondo foram infrutíferas.
Um silo da empresa Cargill no latifúndio Estrondo, próximo de Barreiras (Bahia, Brasil). Registro de maio deste ano (Foto: Marizilda Cruppe | Greenpeace)
Esses latifúndios são tão extensos que algumas das grandes negociantes do setor, como a Cargill e a Bunge, têm neles seus próprios silos. De um avião, seus nomes podem ser vistos em enormes armazéns de grãos no Estrondo. Batista, do Greenpeace, destaca que o atual sistema de produção impede em geral de distinguir a soja legítima da ilegal ou da proveniente de áreas desmatadas porque tudo é misturado nos silos. O que se sabe é que das 45 milhões de toneladas de soja do Cerrado exportadas em 2017, quase 900.000 foram para a Espanha, segundo o projeto Trase que rastreia o percurso do produto.
Laura Kehoe, pesquisadora de conservação da natureza na Universidade Oxford e promotora do manifesto de 600 cientistas e 300 grupos indígenas para exigir da União Europeia que a sustentabilidade seja um dos pilares em suas negociações comerciais com o Brasil, insiste que os europeus não sabem o que está incluído no que consomem: "A ração de soja que a Europa importa do Cerrado é usada em todo o setor pecuário da UE, e a cadeia de fornecimento não é rastreada adequadamente. Assim, mesmo que um europeu queira evitar esses impactos (desmatamento), não tem como saber o que realmente está em seus alimentos. Se os europeus comem qualquer tipo de produto animal, de filés a tortilhas e vitaminas, não terão como saber se a comida está alimentando a destruição do Cerrado”, explica por e-mail.
Imagem de drone de uma comunidade afetada pelo latifúndio Estrondo no interior da Bahia em maio
(Foto: Marizilda Cruppe | Greenpeace)
Para o pesquisador do Greenpeace, uma das maneiras mais eficazes de combater o desmatamento implica "diminuir a ingestão de proteína animal e que as empresas cumpram os seus compromissos e a lei, além de acabar com a sensação de impunidade, porque no Brasil só 5% das multas ambientais são pagas e ninguém vai para a cadeia por desmatamento”.
Em meio às paisagens infinitas e às cifras estonteantes são travadas batalhas hercúleas por cada metro quadrado desses preciosos solos. Uma delas contrapõe a comunidade dos Lopes Leite à fazenda Estrondo. As populações tradicionais são importantes porque, como explica o ecologista Batista, "sua maneira de usar o território já o protege". Por exemplo, eles têm o gado solto, uma vaca para cada dez hectares, quando nos pastos é geralmente uma por hectare ". Essas famílias estão há anos em litígio com o latifúndio para que seja reconhecida sua posse de 43.000 hectares do vale que habitam e que a empresa queria converter em sua reserva para cultivar o restante.
Em fevereiro, um tribunal de Salvador deu provisoriamente a razão à comunidade Lopes Leite , explica em um café de Barreiras seu advogado, Mauricio Correia, da Associação dos Advogados de Trabalhadores Rurais. "Mas quando obtemos uma vitória judicial, abrem uma valeta", diz ele sobre o assédio a sua clientela. As terras onde vivem encolheram porque, observa, Estrondo ergueu guaritas que lhes cortam a passagem, ali mantém guardas armados, cavou uma vala profunda que impede até a passagem de gado, destruiu a torre que por alguns dias lhes deu acesso à Internet e era uma forma de denunciar sem demora ... Os atritos são frequentes e cada vez mais violentos. Em janeiro, um guarda deu um tiro no pé de Lopes Leite. Horas depois da visita desta correspondente à comunidade, Lopes Leite foi detido e também acusado de porte de arma. "Impressiona como desdenham da decisão judicial, é como se fossem um país com leis próprias", diz o advogado Correia.
Lopes Leite e seus vizinhos proclamam sua intenção de resistir. Ao contrário deles, que mal aprenderam a ler, a escrever e a fazer contas básicas, seus filhos estudaram. Um deles orgulhosamente nos diz que a filha está na faculdade. Estuda Direito.
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Greenpeace cobra proteção da última fronteira de expansão da soja no Brasil - Instituto Humanitas Unisinos - IHU