23 Abril 2019
Estamos vivendo um momento único na história da Igreja com um ex-papa, devidamente creditado por ter a coragem de renunciar quando os problemas que enfrentou se tornaram esmagadores, vivendo dentro dos muros vaticanos. A renúncia é mais bem interpretada como um ato de generosidade de Bento XVI para com a Igreja. A graça que Francisco demonstrou em relação ao seu antecessor é igualmente um ato de generosidade.
Publicamos aqui o editorial do jornal National Catholic Reporter, 22-04-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Cada vez mais, no entanto, Francisco também deve apelar à virtude da paciência para lidar com a interferência de um antecessor cuja aposentadoria passou de uma prometida “vida dedicada à oração” a uma vida de “pontificações” do banco traseiro.
A intervenção mais recente – e talvez a mais infeliz – foi a carta de Bento XVI teorizando sobre as causas da crise dos abusos sexuais e, é claro, defendendo seu papel ao lidar com ela. (...)
Em novembro de 2016, foi publicado um livro-entrevista no qual Bento XVI defendeu seu papado de oito anos, dizendo que não se via como um fracasso. Em março do mesmo ano, ele se inseriu em uma iniciativa de Francisco, quando deu uma entrevista na qual expôs a misericórdia de Deus enquanto Francisco estava no meio de um Jubileu Extraordinário, tendo como tema central a misericórdia. Essas intervenções podem parecer anódinas para alguns, mas abrem um terrível precedente, tornando mais provável a percepção ou a realidade de uma rivalidade entre o ex-papa e seus acólitos e o papa em exercício e seus apoiadores.
A mais recente interjeição de Bento XVI ocorreu pouco depois de um recente e inédito encontro internacional de bispos de todo o mundo para discutir a crise dos abusos e parecia, ao contrário das intervenções anteriores, um ato de sabotagem, intencional ou não. O crescente consenso de que as características da cultura hierárquica sigilosa estão no cerne da atual crise foi expressado com força e repetidamente no encontro. A hierarquia da Igreja global levou quase três décadas e meia para alcançar esse nível de honestidade sobre si mesma.
À parte a teologia e a exegese de Bento XVI em sua última carta, sua análise das causas da crise – os turbulentos anos 1960, a revolução sexual, as várias forças da modernidade, as deficiências na formação dos seminários –, se se tornassem a base para a compreensão do escândalo, fariam a Igreja retroceder em décadas.
Imagem: Reprodução
No dia 7 de junho de 1985, a última página do NCR continha um editorial abordando os problemas delineados em uma reportagem de quatro páginas, o primeiro relato nacional já publicado, sobre a crise dos abusos sexuais do clero. “Quem está envolvido aqui e que padrões de conduta vêm à tona depois de se verem os eventos? As crianças, é claro, são as vítimas mais imediatas”, dizia o editorial. “Traumatizadas, cheias de culpa, até mesmo suicidas, elas ficam aterrorizados com a ideia de discutir com seus pais ou outras figuras de autoridade sobre o que aconteceu.”
“Em seguida, os pais se tornam vítimas, geralmente descobrindo por último o que aconteceu com seus filhos. Emocionalmente, eles são movidos por uma variedade de sentimentos: culpa por não terem protegido seus filhos, raiva do padre que infligiu o dano e uma sensação de constrangimento por terem que confrontar, de um modo ou de outro, uma pessoa que eles foram formados a respeitar como um mediador único da graça e do amor de Deus.”
“Depois, há as autoridades eclesiais: o pároco, o bispo e, às vezes, o superior religioso. Em quase todos os casos, essas autoridades parecem seguir um conjunto de diretrizes não escritas: assegurar aos pais que se cuidará de tudo, adverti-los a não buscarem um advogado e, de todos os modos, implorar-lhes que não contem à imprensa.”
Os editores da época, então, delineavam um pouco mais, incluindo a necessidade daquilo que eles chamaram de “conselhos ministeriais”, incluindo psiquiatras, assistentes sociais, funcionários de instituições que lidam com padres problemáticos, clérigos, leigos e “pelo menos um advogado”, e avisando que os pais devem ter acesso aos conselhos “sem consulta prévia com seu pároco ou bispo”. Eles também escreviam que os infratores sexuais em série “devem ser separados do restante da sociedade”.
“A Igreja deve liderar o comportamento social, e não o refletir, quando se trata de buscar soluções”, argumentava o editorial.
Há 34 anos, um pequeno grupo de editores e repórteres católicos que acabavam de entrar em contato com as primeiras indicações daquele que era um escândalo nacional nascente, entendeu o problema de um modo que resistiria ao teste do tempo: as vítimas eram as crianças e suas famílias; os perpetradores eram principalmente padres; os especialistas em encobrimento eram os bispos.
Não é necessário recorrer a debates teológicos ou a análises sociais, nem consultar uma literatura apocalíptica para entender o que aconteceu. No fim dos anos 1940 – muito antes das reformas do Concílio Vaticano II e dos anos 1960 – um padre estadunidense ficou sabendo do abuso sexual de crianças por parte de padres. Seu nome era Gerald Fitzgerald, um padre de Boston que fundou os Servos do Paráclito para lidar com clérigos problemáticos, principalmente aqueles que sofriam de alcoolismo. Não muito tempo depois de ele abrir um centro no Novo México, os bispos de todos os Estados Unidos começaram a enviar criminosos sexuais.
Fitzgerald ficou tão chocado com os ataques às crianças e tão revoltado com os perpetradores que, nos anos 1950, ele adquiriu um terreno em uma ilha do Caribe com a intenção de isolar os padres abusivos. Essa ideia nunca se tornou realidade, mas ele sabia que eles não poderiam ser curados.
Ele escreveu sobre os abusos sexuais de crianças a vários bispos dos Estados Unidos e recomendou a não os transferir para novas paróquias ou dioceses. O Santo Ofício do Vaticano pediu-lhe para explicar o que sabia, e ele deu uma resposta de cinco páginas em 1962. No ano seguinte, ele teve um encontro pessoal com o Papa Paulo VI para discutir o assunto.
Paulo VI sabia. João Paulo II sabia. Bento XVI sabia. As autoridades do Vaticano sabiam.
Chega. Já dissemos isso antes e vale a pena dizer de novo: acabou. A negação não funciona mais. Tentar jogar a culpa do crime e do acobertamento sobre tudo e sobre todos, exceto aqueles que realmente estavam envolvidos, não convence mais.
Bento XVI teve a sua oportunidade como prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé e como papa para chamar a cultura hierárquica a prestar contas. Ele tomou algumas ações corajosas, como levantar o caso contra Marcial Maciel Degollado, pedófilo notório e protegido de João Paulo II, chefe da Legião de Cristo. Mas ele não conseguiu responsabilizar as lideranças da Igreja.
Sua intromissão atual não é nem uma análise saudável nem uma atitude útil para um papa que faz esforços sem precedentes para reformar a cultura clerical. Bento deveria seguir seu instinto inicial e ficar em silêncio orante.
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