02 Abril 2019
E de repente, no meio da entrevista, em pleno Vaticano, Jordi Évole pegou uma lâmina. Uma das muitas que existem na cerca de Melilla e Ceuta, na fronteira com o Marrocos. O Papa, que poucos dias depois viajaria para o reino alauíta (neste domingo à noite retornou a Roma), pegou o arame de concertina com profunda tristeza, balançou a cabeça e respondeu: "A inconsciência é tal que parece natural. Nós nos acostumamos com isso".
A reportagem é de Jesús Bastante, publicada por Religión Digital, 31-03-2019. A tradução é do Cepat.
O programa Salvados transmitiu essa noite uma entrevista histórica, cheia de manchetes e um sentimento: o Papa Francisco é, sem dúvida, um animal midiático. Certamente, o Papa mais influente dos últimos anos, e o mais incompreendido de portas abertas.
O programa começou com a fumaça branca, e com a explicação que o Papa deu para se chamar Francisco: "Como eu gostaria de uma Igreja pobre e para os pobres", como diria São Francisco de Assis. O programa foi "transladado" para o século XIII, para o berço do poverello, dramatizando o encontro com um jovem Francesco e um leproso, que acabou por ser o próprio Jesus. E ele tinha o mesmo arame de concertina que Évole mostrou a Bergoglio.
Você tem inimigos no Vaticano? "Em teoria, pode haver, mas eu tenho dificuldade em declarar um inimigo", disse, quase no final de uma conversa que estava prevista para falar sobre questões relacionadas à migração - Open Arms tem muito a ver com o programa Salvados de hoje -. Francisco não se isentou de uma revisão da realidade da sociedade e da Igreja. Aborto, eutanásia, abusos sexuais, o papel das mulheres... Com momentos de risos e das confidencias familiares.
Papa Francisco (Foto: La Sexta)
Um Papa que, no momento da refeição, "falou sobre tudo, sobre futebol, sobre o que viesse". Um Papa que "dorme como um tronco, seis horas seguidas" e que "nunca se acostumou" a viver no Vaticano. "É bom nunca se acostumar com o trabalho, porque você perde a capacidade de mudar as coisas". Francisco não assiste televisão, nem tem celular. "Eles me deram uma quando fui ordenado bispo, em 92. Liguei para minha irmã e um mês depois o devolvi."
"Sempre defendi o direito de encontrar os cadáveres. Uma sociedade não pode sorrir para o futuro tendo seus mortos escondidos. Os mortos devem ser enterrados, devem ser individualizados em cemitérios, e não devem ser escondidos. Você nunca terá paz com uma pessoa morta escondida. Nunca”. O Papa Francisco respondeu a quase tudo em uma entrevista histórica com Jordi Évole ao programa Salvados. Exceto à exumação de Franco que, segundo ele, é um assunto que não depende do Vaticano.
A resposta sobre as fossas do regime de Franco não é fruto da improvisação. Bergoglio sentiu em sua própria carne a ditadura de Videla, na Argentina, que extrapolou para a realidade espanhola. "Na Argentina, foram mais de 30.000, na época da ditadura, e isso me tocou de perto. Sempre defendi o direito à verdade sobre o que aconteceu. O direito a um enterro digno. De encontrar os cadáveres. A Argentina ainda está fazendo isso, lentamente. É um direito. Não apenas um direito da família, da sociedade ".
A entrevista aconteceu no dia 22 de março, poucos dias antes da viagem que o Papa acabou de encerrar no Marrocos. Em um momento da mesma, Évole retirou de seu bolso uma lâmina, similar à que se vê, ainda hoje, nas cercas de Ceuta e Melilla. Francisco pegou o pedaço de arame e, com profunda tristeza, balançou a cabeça, olhou para ela e respondeu: "Penso que toda pessoa que precisa atravessar essa cerca, cada um que faz isso, é meu filho, minha mãe, meu irmão. É tal a inconsciência que parece natural. Nós nos acostumamos com isso. O mundo se esqueceu de chorar. Essa é a coisa mais desumana que existe. Isso mostra até onde a humanidade de uma pessoa pode descer".
"Aquele que levanta um muro, acaba prisioneiro do muro que levantou. E isso é uma lei universal. E isso acontece na ordem social e no pessoal. Se você levanta um muro entre as pessoas, acaba se tornando prisioneiro daquele muro que levantou”, disse Bergoglio, sem rodeios. "A alternativa são as pontes, que são uma invenção de Deus, são as asas dos anjos que Deus inventou para que os homens possam se comunicar."
Évole perguntou: O que você diria aos católicos espanhóis que rejeitam a imigração? "Que leiam o Evangelho. São católicos, que leiam o Evangelho. E que sejam coerentes", respondeu o Papa, que também se referiu à atitude de alguns meios de comunicação da Igreja espanhola:" Alguns eu conheço, sim. Católicos de missa, e não fazem nada além de sujar os outros".
Bergoglio defendeu o trabalho de organizações como Open Arms, cujo navio ainda está retido no porto de Barcelona. "Parece-me uma grande injustiça. Por que isso é feito? Para que se afoguem? É simplista, mas se você não pode resgatá-los ... E por que eles vêm? Vivem em um desespero, unidos a uma ilusão tão grande, que se jogam. Não medem as consequências. E nós não medimos a dor dessas pessoas".
O Papa, denunciou repetidamente o fato de que o Mediterrâneo se tornou o maior cemitério da Europa, confessou sua "dor, muita dor", quando viu como a Europa assiste, impassível, a morte de milhares de migrantes em suas águas. "Não entendo. Não entendo a insensibilidade. E não entendo a injustiça da guerra, a injustiça da fome, a injustiça da exploração, que faz com que uma pessoa saia em busca de coisas melhores. E a injustiça de quem fecha a porta".
"A Mãe Europa se tornou muito avó, envelheceu rapidamente. Esse é o problema da Europa. Esqueceu-se quando, após as guerras, seus filhos iam bater nas portas da América (...). Na Europa, esquecemos que a Europa está cheia de imigrantes. Mas também é agora, que vêm de outros lugares. Vai querer me dizer que os da África são de segunda categoria?”.
Évole lhe perguntou sobre o medo gerado por essas crises. (...) A coisa mais abjeta foi o nacional-socialismo, com cadáveres por todos os lados, e a falta de dignidade humana. Isso pode ser repetido, totalmente, e está se repetindo. O medo é o material sobre o qual as ditaduras são construídas". A Igreja jogou com o medo?, questionou o jornalista. "Obviamente, temos uma história que às vezes nos envergonha".
Sobre o dinheiro, o Papa denunciou como “cada vez há menos ricos com muito dinheiro, e há mais pobres com pouco", embora tenha esclarecido que "não sou anticapitalista, acredito em um capitalismo sadio". A doutrina social da Igreja não condena formas que sejam objetivas, justas. Eu sigo a doutrina social da Igreja, não sou anticapitalista, nem antissocialista".
Deve-se pagar o IBI? "Os homens da Igreja são cidadãos e têm que cumprir todos os seus direitos como cidadãos. Há coisas dedicadas ao culto, existem propriedades dedicadas ao fim social. Em tudo o que não for culto ou bem comum, é preciso pagar impostos". Isso sim: "Eu não posso vender um tijolo de São Pedro".
Francisco também foi muito crítico em relação à venda de armas da Espanha para a Arábia Saudita, embora, conforme assumiu, "não seja o único governo". E ele fez uma advertência. "Se você arma a guerra lá, você a terá em sua casa, quer você queira ou não."
Sobre os abusos, Francisco pediu novamente paciência às vítimas. "As coisas concretas da cúpula foram para iniciar processos. E isso tem o seu tempo. Compreendo as pessoas que tenham ficado insatisfeitas, porque quando há uma dor no meio, você tem que silenciar, rezar, chorar, acompanhar e ponto. Mas, iniciar processos é o caminho para que a cura seja definitiva". Contudo, também se quer limpar: "Procuro fazer com que a limpeza vá acontecendo sozinha, criando diretrizes de administração tão limpas..., que não haja espaço para sujeira na estrutura, mas isso é muito lento, e eu digo a você que há problemas no Vaticano".
Em relação ao aborto, o Papa disse compreender que uma mulher vítima do tráfico e que engravida queira fazer um aborto, mas "também sei que não é lícito eliminar uma vida humana para resolver um problema". Sendo assim, disse "respeitar" a pessoa que, voluntariamente, decide praticar a prostituição, "outra coisa são as redes de exploração". Se uma garota fica grávida como resultado dessa violação, "eu a entenderia. Contudo, também sei que não é lícito eliminar uma vida humana para resolver um problema".
Sobre o papel das mulheres na Igreja, o Papa admitiu que "é muito triste. Estamos todos a serviço, mas parece que às mulheres está reservada a servidão. A mulher é protagonista da Igreja, mas é necessário se mexer. E isso custa mais".
Francisco quis explicar sua polêmica frase sobre o feminismo ("um machismo de saias"). "A frase justa teria que ser: Todo feminismo pode correr o risco de se tornar um machismo de saias. Na outra, equivoquei-me".
Houve também um momento para falar sobre o Vaticano e sobre os "mercadores do templo", que ainda hoje existem no interior da Igreja. "Sim, há. Existem, como em todos os lugares. O Estado da Cidade do Vaticano não se salva dos limites e dos pecados e vergonhas de outras sociedades. Aqui, somos homens e temos os mesmos limites e, às vezes, caímos nas mesmas coisas". O que fazer frente a isso? "Você tem que ir limpando. O trabalho é ir limpando, limpando, limpando". Conseguirá fazer isso? Esse é o tema para outra entrevista, ou talvez para a História.
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Francisco: "O medo é o material sobre o qual se constroem as ditaduras" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU