13 Fevereiro 2019
China e Rússia veem o Ocidente em crise civilizatória – e apostam numa saída. Implica integrar a Eurásia, lançar imensos projetos de infra-estrutura, desafiar o poder do dólar e a hegemonia militar dos EUA.
O artigo é de Pepe Escobar, publicada por Consortium News e reproduzida por Outras Palavras, 11-02-2019. A tradução é de Felipe Calabrez.
A esta altura, todos deveríamos saber que o coração do Grande Jogo do século 21 é a miríade de vertentes da batalha entre os Estados Unidos e a parceria entre a Rússia e a China.
Até mesmo a Estratégia Nacional de Defesa dos EUA o reconhece: “O desafio central para a prosperidade e segurança dos EUA está no ressurgimento da competição estratégica de longo prazo promovida por… poderes revisionistas.” O recente parecer sobre as implicações da expansão global da China sobre a defesa dos EUA também o diz.
O confronto moldará o surgimento de uma possível ordem mundial estratégica pós-ideológica, em meio a uma imprevisibilidade extremamente volátil, na qual a paz é guerra e um acidente pode desencadear um confronto nuclear.
O cenário EUA versus Rússia e China continuará desafiando a obsessão do Ocidente em ridicularizar o “anti-liberalismo”, um exercício retórico e medonho que iguala a democracia russa ao governo de um só partido da China, à demo-teocracia iraniana e ao renascimento neo-otomano da Turquia.
É irrelevante que a economia da Rússia seja um décimo da economia chinesa. Desde o impulso ao comércio sem o uso do dólar americano até o aumento de exercícios militares conjuntos, a simbiose Rússia-China está pronta para avançar além das afinidades políticas e ideológicas.
A China precisa muito de know-how russo em sua indústria militar. Pequim transformará esse conhecimento em uma abundância de inovações civis e militares de duplo uso. O longo jogo indica que a Rússia e a China irão derrubar barreiras culturais e de idioma para liderar a integração euro-asiática contra a hegemonia econômica americana apoiada pelo poderio militar.
Pode-se dizer que o século eurasiano já está diante de nós. A era do Ocidente moldando o mundo à vontade (um mero lapso de história) acabou. Isto apesar das negações e fulminações da elite ocidental contra as chamadas “forças moralmente repreensíveis”, “forças de instabilidade” e “ameaças existenciais”.
A Standard Chartered, empresa britânica de serviços financeiros, usando uma combinação de taxas de câmbio, poder de compra e crescimento do PIB, projetou que as cinco principais economias em 2030 serão a China, os EUA, a Índia, o Japão e a Rússia. Serão seguidos pela Alemanha, Indonésia, Brasil, Turquia e Reino Unido. A Ásia ampliará sua classe média no exato momento em que esta está sendo destruída no Ocidente.
Pode-se argumentar que as elites de Pequim estão fascinadas em como a Rússia retornou, em menos de duas décadas, ao status de semi-superpotência após a devastação dos anos de Yeltsin.
Isso aconteceu em grande parte devido à ciência e tecnologia. O exemplo mais ilustrativo é o incomparável e avançado de armamento revelado pelo presidente Vladimir Putin em seu discurso de 1º de março de 2018.
Na prática, Rússia e China estarão avançando no alinhamento das Novas Rotas da Seda da China, ou a Iniciativa do Cinturão e da Estrada [Belt and Road Initiative (BRI), em inglês] com a União Econômica Rússia-Eurásia.
Há um amplo potencial para que uma rede expressa Trans-Eurásia de transporte terrestre e marítimo esteja pronta e funcionando em meados da próxima década, incluindo, por exemplo, pontes rodoviárias e ferroviárias ligando a China à Rússia em todo o rio Heilongjiang.
Após importantes conversas trilaterais envolvendo Rússia, Índia e Irã em novembro passado, mais atenção está sendo dada ao Corredor Internacional de Transporte Norte-Sul (INSTC), uma pista de 7.200 km misturando rotas marítimas e ferroviárias essencialmente ligando o Oceano Índico ao Golfo Pérsico através do Irã e da Rússia, e mais adiante à Europa.
Imagine que a carga transite de toda a Índia para o porto iraniano de Bandar Abbas; depois siga para Bandar Anzali, um porto iraniano no Mar Cáspio; para o porto russo de Astrakhan; e, de trem, para a Europa. Do ponto de vista de Nova Delhi, isso significa que os custos de transporte foram reduzidos em até 40%, e a rota Mumbai-Moscou pode ser transposta em apenas 20 dias.
Abaixo da linha, o INSTC vai se fundir com o BRI — como nos corredores ligados à rota Índia-Irã-Rússia, em uma rede de transporte global liderada pela China.
Isso está acontecendo exatamente quando o Japão está olhando para a Ferrovia Transiberiana — que será atualizada ao longo da próxima década — para melhorar suas conexões com a Rússia, a China e as Coreias. O Japão é hoje um dos principais investidores na Rússia e, ao mesmo tempo, muito interessado em um acordo de paz entre as Coreias. Isso libertaria Tóquio dos enormes gastos com defesa condicionados pelas regras de Washington. Os acordos de livre comércio da União Econômica da Eurásia (EAEU) com a Associação das Nações do Sudeste Asiático (ASEAN) podem ser adicionados a isso.
Especialmente nos últimos quatro anos, a Rússia também aprendeu a atrair investimentos e riqueza chineses, ciente de que o sistema de Pequim produz praticamente tudo e sabe como comercializar globalmente, enquanto Moscou precisa combater todos os bloqueios sonhados por Washington
Ponte metálica em estrada de ferro (rio de Kama, perto da cidade do permanente). Fotografia colorida primitiva da Rússia, criada por Sergei Mikhailovich Prokudin-Gorskii como parte de seu trabalho para documentar o Império Russo de 1909 a 1915. (Foto: Wikimedia)
Enquanto Washington continua sendo um prisioneiro bipartidário da caverna platônica russofóbica — onde as sombras da Guerra Fria na parede são tomadas como realidade — o slogan de Trump, MAGA (Make America Great Again) está perdendo o trem para a Eurásia.
Uma hidra de muitas cabeças, a MAGA, se despojada até os ossos, poderia ser lida como um antídoto não ideológico ao aventureirismo global do Império. Trump, a seu modo não-estratégica e caótico propunha, pelo menos em teoria, o retorno a um contrato social para reerguer seu país — o que se traduziria em empregos, oportunidades para pequenas empresas, impostos baixos e não mais guerras estrangeiras.
É uma nostalgia dos anos 1950 e 60, antes do atoleiro do Vietnã e antes de a produção “Made in the USA” ser lenta e deliberadamente desmantelada. O que resta são dezenas de trilhões de dívidas nacionais; um quatrilhão de derivativos; o Estado Profundo correndo solto; e muito medo de russos perversos, chineses tortuosos, mulás persas, a troika da tirania, o cinturão e a estrada, a Huawei e os estrangeiros ilegais.
Mais do que uma “guerra de todos contra todos” Hobbesiana, ou do que as queixas de que o “sistema baseado em regras ocidentais” está sendo atacado, o medo é, na verdade, do desafio estratégico representado pela Rússia e pela China, que buscam um retorno ao império do direito internacional.
O MAGA prosperaria se pegasse carona no trem de integração da Eurásia: mais empregos e mais oportunidades de negócios, em vez de mais guerras no exterior. No entanto, o MAGA não vai acontecer — em grande parte porque o que realmente faz o Trump exultar é sua tentativa de dominar as fontes de energia, para interferir decisivamente na Rússia e no desenvolvimento da China.
O Pentágono e a comunidade das agências de espionagem [Intel Community] levaram o governo Trump a perseguir a Huawei, tratada como um ninho de espiões, enquanto pressionava os aliados-chave (Alemanha, Japão e Itália) a fazer o mesmo. A Alemanha e o Japão permitem que os EUA controlem os nós principais nas extremidades da Eurásia. A Itália é essencialmente uma grande base da OTAN.
O Departamento de Justiça norte-americano requereu a extradição da executiva financeira-chefe da Huawei, Meng Wanzhou, do Canadá na última terça-feira, acrescentando um ponto à tática geopolítica do governo Trump.
Acrescente-se a isso que a Huawei — baseada em Shenzhen e de propriedade de seus trabalhadores — está matando a Apple em toda a Ásia e na maioria das latitudes em todo o Sul Global. A batalha real está em torno da tecnologia 5G, na qual a China pretende superar os EUA, enquanto melhora a capacidade e a qualidade da produção.
A economia digital na China já é maior do que o PIB da França ou do Reino Unido. É baseado nas empresas BATX (Baidu, Alibaba, Tencent, Xiaomi); na Didi (a Uber chinesa); na gigante de e-commerce JD.com e na Huawei. Essas Big Seven são um estado dentro de uma civilização — um ecossistema que eles mesmos construíram, investindo fortunas em big data, inteligência artificial (IA) e internet. Os gigantes norte-americanos — Facebook, Instagram, Twitter e Google — estão ausentes deste enorme mercado.
Além disso, o sofisticado sistema de criptografia da Huawei em equipamentos de telecomunicações impede a interceptação pela NSA. Isso ajuda a explicar sua extrema popularidade em todo o Sul Global, em contraste com a rede de espionagem eletrônica Five Eyes (EUA, Reino Unido, Canadá, Austrália, Nova Zelândia).
A guerra econômica contra a Huawei também está diretamente ligada à expansão do BRI em 70 países asiáticos, europeus e africanos, constituindo uma rede de comércio, investimento e infra-estrutura à escala da Eurásia, capaz de virar as relações geopolíticas e geoeconômicas, como as conhecemos, de cabeça para baixo.
O que quer que a China faça não alterará a obsessão do Estado Profundo norte-americano por “uma agressão contra nossos interesses vitais”, como afirma a Estratégia Nacional de Defesa. A narrativa dominante do Pentágono nos próximos anos será sobre a China “pretendendo impor, no curto prazo, sua hegemonia na região do Indo-Pacífico, e pegar os Estados Unidos de surpresa para alcançar a futura preeminência global”. Isso mistura-se com a crença de que a Rússia quer “esmagar a OTAN” e “sabotar o processo democrático na Criméia e no leste da Ucrânia”.
Durante minhas viagens recentes pela parte norte do Corredor Econômico China-Paquistão (CECP), vi mais uma vez como a China está modernizando rodovias, construindo barragens, ferrovias e pontes que são úteis não apenas para sua própria expansão econômica, mas também para o desenvolvimento de seus vizinhos. Compare-o com as guerras dos EUA — como no Iraque e na Líbia — onde as barragens, ferrovias e pontes são destruídas.
A diplomacia russa está vencendo a Nova Guerra Fria — como diagnosticado pelo professor Stephen Cohen em seu último livro, War with Russia: From Putin and Ukraine to Trump e Russiagate.
Moscou mistura graves advertências com diversas estratégias, como ressuscitar o gasoduto South Stream para abastecer a Europa como uma extensão do Turk Stream, depois que o governo Trump também se opôs furiosamente ao gasoduto Nord Stream 2 com sanções à Rússia. Enquanto isso, Moscou eleva as exportações de energia para a China.
O avanço da Iniciativa Belt and Road está ligado às exportações russas de segurança e energia, incluindo a Rota do Mar do Norte, como um futuro corredor de transporte alternativo para a Ásia Central. A Rússia surge, então, como a principal garantia de segurança para o comércio e a integração econômica da Eurásia.
No mês passado, em Moscou, discuti a Grande Eurásia — agora estabelecida como o conceito dominante da política externa russa — com os principais analistas russos. Eles me disseram que Putin está a bordo. Ele se referiu à Eurásia recentemente como “não um tabuleiro de xadrez ou um playground geopolítico, mas nosso lar pacífico e próspero”.
Não é preciso dizer que os think tanks dos EUA descartam a ideia como “natimorta”. Eles ignoram o Prof. Sergey Karaganov, que já em meados de 2017 argumentava que a Grande Eurásia poderia servir de plataforma para “um diálogo trilateral sobre problemas globais e estabilidade estratégica internacional entre a Rússia, os Estados Unidos e a China”. Por mais que Washington possa recusar, “o centro de gravidade do comércio global está agora mudando dos altos mares para o vasto interior continental da Eurásia”.
Pequim está percebendo que não pode cumprir suas metas geoeconômicas em energia, segurança e comércio sem passar por cima do dólar americano.
De acordo com o FMI, 62% das reservas globais dos bancos centrais ainda eram mantidas em dólares americanos no segundo trimestre de 2018. Cerca de 43% das transações internacionais no sistema SWIFT ainda estão em dólares americanos. Mesmo que a China, em 2018, tenha sido o maior contribuinte para o crescimento do PIB global, com 27,2%, o yuan representa apenas 1% dos pagamentos internacionais e 1,8% de todos os ativos de reserva detidos pelos bancos centrais.
Leva tempo, mas a mudança está a caminho. A rede de pagamentos transfronteiriça da China para transações com o yuan foi lançada há menos de quatro anos. A integração entre o sistema de pagamento russo (Mir) e o chinês (Union Pay) parece inevitável.
A Rússia e a China estão desenvolvendo o pesadelo final para os ex-xamãs da política externa dos EUA, Henry Kissinger e o falecido Zbigniew “Grande Tabuleiro de Xadrez” Brzezinski.
Em 1972, Kissinger foi o mentor — com a ajuda logística do Paquistão — do momento de Nixon na China. Esse foi clássico “Divide and Rule”, separando a China da URSS. Dois anos atrás, antes da posse de Trump, o conselho do Dr. K, oferecido nas reuniões da Trump Tower, consistiu em uma “Divide and Rule” modificada: seduzir a Rússia, para conter a China.
A doutrina de Kissinger estabelece que, geopoliticamente, os EUA são apenas “uma ilha às margens da grande massa de terra da Eurásia”. A dominação, “por uma única potência de qualquer uma das duas principais esferas da Eurásia — a Europa ou a Ásia — continua sendo uma boa definição de perigo estratégico para os Estados Unidos, “com ou sem Guerra Fria”, como disse Kissinger. “Pois tal arranjo teria a capacidade de ultrapassar os EUA economicamente e, ao fim, militarmente.”
A doutrina Zbig seguiu linhas similares. Os objetivos eram evitar conflitos e manter a segurança entre os vassalos da União Europeia-OTAN. Mantenha os vassalos curvados; impeça que os bárbaros (ou seja, os russos e aliados) se unam; acima de tudo, impeça o surgimento de uma coalizão hostil (como a atual aliança Rússia-China), capaz de desafiar a hegemonia dos EUA; e submeta a Alemanha, a Rússia, o Japão, o Irã e a China a um permanente “Divida e Reine”.
Daí a preocupação da atual Estratégia de Segurança Nacional, prevendo que a China, desalojando os Estados Unidos, “alcançaria a preeminência global no futuro”, através do alcance supra-continental da BRI.
A “política” para neutralizar tais “ameaças” são sanções, sanções e mais sanções unilaterais, juntamente com uma inflação de noções absurdas espalhadas por Washington — como a de que a Rússia está auxiliando e instigando a reconquista do mundo árabe pela Pérsia, bem como a de que Pequim vai abandonar o plano do “tigre de papel”, o “Made in China 2025”, para obter papel de destaque na produção global em alta tecnologia, apenas porque Trump a detesta.
Muito de vez em quando, um relatório dos EUA realmente acerta, como quando se refere a Pequim acelerando uma série de projetos da BRI; como uma tática Sun Tzu modificada, implantada pelo Presidente Xi Jinping.
No Diálogo Shangri-La de junho de 2016, em Cingapura, o professor Xiang Lanxin, diretor do centro de Estudos One Belt and One Road, do Instituto Nacional da China para Intercâmbio e Cooperação Judicial da SCO, definiu o BRI como um caminho para um mundo “pós-Westfaliano”. A jornada está apenas começando; uma nova era geopolítica e econômica está próxima. E os EUA estão sendo deixados para trás na estação.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Desafio a cinco séculos de eurocentrismo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU