21 Março 2018
“Tenho medo de uma guerra nuclear. Estamos no limite”. A confissão de Francisco segue intacta, desde que pronunciou essas palavras em janeiro passado. O Papa teme um conflito global e suas preocupações estão bem ancoradas. Tudo isto enquanto o cenário internacional parece reviver os fantasmas da Guerra Fria. Em entrevista ao Vatican Insider, um dos diplomatas pontifícios mais acreditados fala da resposta da Santa Sé diante da ameaça atômica.
Durante 13 anos, entre 2003 e 2016, Silvano Tomasi atuou como observador permanente da Sé Apostólica no Escritório das Nações Unidas de Genebra. Dali, desempenhou um papel chave no apoio a um recente tratado contra a posse e uso das armas nucleares, o primeiro desse tipo. Tornou-se em um especialista na matéria, inclusive quando foi secretário delegado do Pontifício Conselho Justiça e Paz do Vaticano.
A entrevista é de Andrés Beltramo Álvarez, publicada por Vatican Insider, 20-03-2018. A tradução é do Cepat.
O Papa já manifestou seu alerta pela possibilidade real de que se deflagre um conflito nuclear, advertindo que “chegamos ao limite”. De onde surge esta preocupação?
A preocupação do Papa está bem ancorada, nos últimos tempos, houveram mudanças, uma evolução na situação mundial, especialmente com a crise na Península Coreana, com a Coreia do Norte que ameaça usar, mediante mísseis, cabeças atômicas. Esta preocupação específica, somada à tentativa de outros países de construir bombas atômicas como seus instrumentos de defesa ou de ataque, verdadeiramente criou uma tensão nova no tabuleiro mundial.
Os esforços constantes pelo desarmamento não deram resultado?
O tratado de não-proliferação (de armas nucleares) não foi respeitado, existem países novos que têm a bomba atômica, não apenas Paquistão, Israel, Índia. A bomba já não está limitada ao grupo inicial dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas, ao contrário, o número duplicou. Com a multiplicação de países que têm estas armas, cresceu o risco de erros técnicos ou de decisões políticas erradas que possam levar ao uso de uma cabeça nuclear que gere uma cadeia de resposta, com o risco de destruir o planeta, inclusive. Ainda que não se fale tanto do risco das bombas atômicas como em tempos da guerra fria, hoje o risco real existe e o Papa quis chamar a atenção mundial justamente sobre este fenômeno.
Estamos voltando ao ambiente próprio da Guerra Fria? Outra vez se pensa que estas armas possam fazer a diferença na política internacional?
A doutrina da ameaça se aplica hoje ainda, infelizmente. Pensava-se que com o final da Guerra Fria já não havia necessidade de estabelecer uma relação entre os Estados baseada na ameaça da destruição recíproca. Não é humano e não é civil que as relações sejam fundadas sobre o medo e a ameaça contínua de destruição por parte de um e outro. Isto não é humano e é por esta razão que a Santa Sé e o Papa Francisco, em especial, insistem que o uso da bomba atômica não é eticamente aceitável porque golpeia indiscriminadamente objetivos militares, civis, pessoas inocentes e provoca danos que não são controláveis por ninguém.
Qual é a posição da Santa Sé em relação às armas nucleares?
A posse de armas nucleares se tornou eticamente inaceitável, porque se um Estado possui estes meios de destruição quer dizer que tem algum programa para usá-los e, além disso, expõe à família humana ao risco de um erro técnico que faça explodir uma bomba ou um erro político que provoque reações igualmente desastrosas. O tratado (subscrito pela ONU) em julho passado, que proíbe o uso e a posse das armas nucleares, é um passo na direção justa, embora será necessário tempo para que seja ratificado por todos. Os países portadores não participaram de sua formulação, mas foi assinado por 122 países, demonstrando a vontade da família humana de não depender destes instrumentos de destruição em massa.
Contudo, antes, a Santa Sé não condenava abertamente a posse, mas, sim, o uso. Houve uma mudança de postura?
Ocorreu uma evolução no pensamento e na doutrina social da Igreja no que diz respeito à guerra. Partimos com Cícero, inclusive antes de Cristo, com o conceito de guerra justa. Eram apresentados argumentos para dizer que a guerra era justa, caso existissem motivos razoáveis. Depois, Santo Agostinho e São Tomás de Aquino teorizaram teologicamente a justificação da guerra justa. De fato, agora, chegamos à conclusão de que a solução dos problemas não se deve dar por meio da violência, mas, ao contrário, mediante o diálogo, pelo qual temos a visita de Paulo VI à Organização das Nações Unidas e seu grito que ficou na história: Nunca mais a guerra.
É mero pacifismo?
Sabemos que quando iniciamos o uso da violência abrimos a porta a consequências imprevisíveis, que provocam dano a pessoas inocentes, que criam problemas, que vão contra o bem comum e, portanto, o caminho para resolver as diferenças e para manter relações dignas entre os Estados é o diálogo. Devemos verdadeiramente refletir e trabalhar para que o conflito não se torne violência, pois são as famílias, as pessoas e os indivíduos, as crianças, os que pagam o preço desta violência. O caminho da violência não paga.
No período da Guerra Fria, existiu o famoso “telefone vermelho”, que era uma espécie de metáfora para mostrar que entre Moscou e Washington existia um último recurso para evitar o conflito global. Hoje, existe algo similar?
Hoje, os países se comunicam através de vários meios, existe o sistema diplomático dos embaixadores, as comunicações diretas entre os chefes de Estado. Caso se tenha o mínimo de boa vontade, as opções para se comunicar podem ser encontradas. O problema é sempre a vontade política para assegurar que se respeite a dignidade das pessoas e os Estados, não se baseando no medo, mas, sim, na confiança. É uma estratégia difícil porque a ameaça do mais forte parece se impor mais imediatamente, mas o caminho mestre para o futuro e a convivência pacífica é o diálogo. Por isso, a Santa Sé e a doutrina social da Igreja insistem constantemente na importância de dar prioridade ao diálogo não só entre as pessoas, mas também entre os países, para evitar a violência que faz os inocentes pagarem o custo do conflito.
A Santa Sé pode mediar? O que faz a esse respeito?
A Santa Sé é muito ativa na busca da paz, mediante uma diplomacia multilateral que desenvolveu de maneira muito visível, do final da II Guerra Mundial até hoje. Está empenhada – sobretudo – no campo da facilitação do diálogo, da prevenção das crises que causam danos às pessoas e às famílias, em nada responsáveis pelas grandes decisões. A voz do Santo Padre é ouvida, continuamente nos recorda que o caminho para o futuro é o de uma convivência pacífica e não o de uso da força.
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O fantasma de uma nova “Guerra Fria” e a resposta do Papa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU