08 Janeiro 2019
"É hora de ouvir pacientemente os desiludidos e começar um diálogo aberto. Descobriremos, então, coincidências latentes, por exemplo, na postura contra a corrupção e no desejo de segurança", escreve Luiz Alberto Gómez de Souza, sociólogo.
Entre os milhões que votaram Bolsonaro há de tudo. Desde uma minoria de mente fascistoide, os conservadores que temem mudanças, os que absorveram um antipetismo sem refletir, os que se afogaram em “fake news”, os que aguardam com esperança que este governo acabe com a corrupção e a insegurança... Ali estão não só os poderosos, mas homens e mulheres do povo, ingênuas classes médias.
Há que fazer um esforço para entender por que tantos apoiaram o coiso. Isso deveria ser feito sem tripudiar com aquela frase irritante: “Veem como tivemos razão?”. Falsa atitude dos que se consideram com "bonne conscience", os "bien pensants" do nosso lado, que tanto indignavam Bernanos.
Reprodução da obra de Caravaggio
Conversão no caminho de Damasco
Conversão de Saulo era um perseguidor de cristãos (At 7, 58). Indo a Damasco, uma luz brilhou e Saulo caiu por terra. Uma voz lhe disse: “Saulo, Saulo, por que me persegues?” E logo se identificou:”Eu sou Jesus, a quem persegues”. Cego, Saulo foi levado à cidade. Quando o Senhor pediu a Ananias que o procurasse, este reagiu incrédulo:“Senhor, quantos males este homem tem feito aos teus santos em Jerusalém”. O Senhor porém disse: “este é um instrumento escolhido para levar meu nome a gentios e judeus”. Seguindo o que lhe foi ordenado, Ananias impôs sobre Saulo as mãos e este voltou a ver. Quando, logo depois, Saulo/Paulo pregava nas sinagogas a Jesus, muitos diziam atônitos: “Não é este o que exterminava em Jerusalém aos que invocavam o nome de Jesus?” (At 9, 3-21). Sabemos o que se seguiu e Paulo, ao fim de seu fecundo peregrinar, pôde dizer: “combati o bom combate” (2 Tim 4,8).
Mural do Arcebispo Oscar Romero e do jesuíta
Padre Rutilio Grande em El Paisnal, El Salvador.
| Foto: CNS / Octavio Duran
Oscar Romero era um bispo conservador e timorato. Ao chegar a San Salvador como arcebispo, recolheu em seus braços o corpo imolado do Padre Rutílio Grande e sua batina branca manchou-se com sangue de mártir. Depois, foi ouvindo pacientemente seu povo. E sua voz levantou-se corajosa, em defesa de seus pobres. Não temeu os poderosos e proclamou a desobediência aos soldados convocados para matar. “Em nome de Deus, em nome deste povo sofrido, cesse a repressão”. No dia seguinte desta homilia, no momento em que ofertava o vinho que se converteria no sangue do Senhor, um tiro certeiro o matou.
Papa Francisco |
Foto: Reprodução/Yotube
Quando o arcebispo Bergoglio foi eleito bispo de Roma, muitos argentinos, a partir de fatos, verdadeiros ou não, durante os tempos da repressão, ficaram céticos. Mas logo que foi proclamado, no balcão da basílica, escolheu o nome do pobrezinho de Assis e desde então não parou de surpreender.
George Bernanos e Miguel Unamuno, num primeiro momento, olharam com simpatia o levante de Franco. Entretanto o primeiro estava na ilha Mallorca e, vendo a terrível repressão militar, escreveu indignado sobre “os grandes cemitérios à sombra da lua”.
George Bernanos | Foto: Domínio Público
Unamuno, como reitor da Universidade de Salamanca, enfrentou o general fascista Millán Astray, que lançara, dizem, seu espantoso “Abaixo a inteligência, viva a morte”. Don Miguel teria respondido altaneiro: “Venceréis, pero no convenceréis”. Retirou-se e morreu logo depois, como um bom cavalheiro de têmpera vasca.
[Aliás, para vergonha nacional nossa, hoje não é um militar, mas um espantoso ministro da educação que declara guerra ao pensamento e à verdade].
Assim, há que acreditar que muitos, pela retidão ou pela graça, podem rever seus passos.
Dentro de alguns meses, com tantos desgovernos e decisões contraditórias, com afirmações logo em seguida desmentidas, muitos se perguntarão: “Afinal, como chegamos a pôr esperança nesses que se lançam, catacegos, num tiroteio sem rumo?”
Miguel Unamuno | Foto: Domínio Público
É hora de ouvir pacientemente os desiludidos e começar um diálogo aberto. Descobriremos, então, coincidências latentes, por exemplo, na postura contra a corrupção e no desejo de segurança.
Há parâmetros a levar em conta: um desejo de verdade, um coração aberto ao sofrimento alheio, a abertura a outras posições...
Por outro lado, seria necessário afastar-nos de oposições apaixonadas, que só trazem rancor e que parecem ser, no fundo, reações às avessas iguais às que condenamos. Alguns possíveis hipócritas dirão: nós, os puros, com “posição correta”, não podemos misturar-nos com quem votou Bolsonaro. Mas numa luta pela liberdade, pela nação e pelo povo, teremos ao lado acompanhantes inesperados, que vêm do outro lado, capazes de repensar seus itinerários e ajudar-nos a revisar nossos próprios preconceitos. E, por outra parte, perderemos talvez antigos aliados, afogados em seu mundinho ideológico rarefeito.
Lembremos então, perto de nós, Teotônio Vilela, convertido pelo sentido de justiça e de fraternidade, acolhido logo como grande companheiro. Ele tinha sido senador do partido dos militares e se transformou na grande voz da liberdade. É ocasião de acreditar que as pessoas podem mudar radicalmente. Quantos não teriam olhado com enorme desconfiança aquele político da Arena de viés coronelesco, como os que escutavam Saulo/Paulo. E, mais adiante, já gravemente doente, ele passaria a ser o profético menestrel das alagoas.
Dele cantaram Milton Nascimento e Fernando Brant:
Quem é este viajante
Quem é esse menestrel
Que espalha esperança
E transforma sal em mel.
Teotônio Vilela | Foto: Domínio Público
Deveríamos tentar um cuidadoso trabalho pedagógico para superar divisões indevidas, indispensável numa atitude dialógica. Isso é, sem lugar a dúvidas, pluralismo democrático.
E aos poucos, poderá ser possível realizar, com todas as pessoas de boa vontade, vindas das mais inesperadas origens e a partir das bases sociais, uma frente ampla nacional, popular e democrática. Para além de sectarismos que sufocam.
Sem deixar-nos contaminar por um clima político patético e por ortodoxias enlatadas, podemos sonhar:
Temos de sair do casulo fechado
de nossas certezas frouxas,
das convicções mumificadas,
das ideias rígidas que aprisionam,
abrindo-nos sem medo
a outros horizontes,
sentindo ao lado
o adversário de ontem,
companheiro agora
de dúvidas compartidas
e de esboços surpreendentes.
Murilo Mendes nos apontou:
é hora de explodir, largar o molde.
E sair na busca de uma Ítaca encoberta,
desvendada a muitas mãos,
um Graal que só os puros de coração,
como Galahad, filho de Lancelote,
conseguem adivinhar.
Só então poderemos romper
os sete selos do Apocalipse.
Vencendo o aniquilamento, inventando a vida.
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Chegarão aliados inesperados... - Instituto Humanitas Unisinos - IHU