03 Janeiro 2019
"Será indispensável deixar de lado uma situação medíocre e minúscula, para recuperar a ambição dos grandes espaços e dos reais enfrentamentos com ‘desaforados gigantes’ do sistema dominante", escreve Luiz Alberto Gómez de Souza, sociólogo.
Vendo em Brasília um festival político absurdo e grotesco, não podemos ceder à facilidade de escorregar num pessimismo fácil. Pelo contrário, temos de somar-nos àqueles que, na contracorrente, procuram descobrir na frente novos horizontes, para além de aparências enganadoras.
Sigamos nossos heróis, Quixote e Sancho, pelos caminhos da Mancha:
En esto descubrieron treinta o cuarenta molinos de viento que hay en aquel campo, y así como Don Quijote los vió, dijo a su escudero:- La ventura va guiando nuestras cosas mejor de lo que acertáramos a desear; porque ves allí, amigo Sancho Panza, donde se descubren treinta o poco más desaforados gigantes con quien pienso hacer batalla, ... y es gran servicio de Dios quitar tan mala simiente de sobre la faz de la tierra.
-¿Qué gigantes? dijo Sancho Panza. Mire vuestra merced, que aquellos que allí se parecen no son gigantes, sino molinos de viento...
-Bien parece, respondió Don Quijote, que no estás cursado en esto de las aventuras; ellos son gigantes, y si tienes miedo quítate de ahí, y ponte en oración... que yo voy a entrar con ellos en fiera y desigual batalla.
(Foto: Reprodução da obra Quixote de Candido Portinari)
O grande poeta mexicano Octavio Paz nos adverte prudente:
¿Son molinos o son gigantes lo que ven Don Quijote y Sancho? Ninguna de las dos posibilidades es la verdadera, parece decirnos Cervantes: son gigantes y son molinos.
Porém chega desafiante Miguel Unamuno:
Tenía razón el Caballero: el miedo y solo el miedo hacía a Sancho y nos hace a los demás simples mortales ver molinos de viento en los desaforados gigantes que siembran mal por la tierra.
Será indispensável deixar de lado uma situação medíocre e minúscula, para recuperar a ambição dos grandes espaços e dos reais enfrentamentos com ‘desaforados gigantes’ do sistema dominante.
Lenta mas firmemente, há que desvendar práticas vitais alternativas e somar-nos a elas, na construção de outros caminhos ‘portadores de futuro’. Estão nas mãos daquelas ‘minorias abraâmicas’ que ia anunciando nosso Hélder Câmara.
Reprodução da obra Quixote de Candido Portinari
E assim, olhando com distanciamento e desinteresse a ridícula comédia de equívocos que se desdobra em Brasília, descobrimos que há uma realidade mais importante e mais decisiva em curso, no caboclo que luta pela terra que lhe querem tirar, no índio que corre livre pelos espaços verdes, no jovem que descobre a vontade de criar, na mulher que descobre sua dignidade até então pisoteada, no migrante sem teto que quer levantar seu ninho, nas orações de tantas origens que confluem para a mesma fonte, na tenacidade de quem luta pela vida em construção. Há um mundo que lateja energia. Nele se antecipa o amanhã.
Murilo Mendes indica no seu mais profundo aforisma, que tenho citado tantas vezes:
O homem é um ser futuro,
um dia seremos visíveis.
E aclara em seu ‘poema dialético’:
Todas as formas ainda se encontram em esboço,
tudo vive em transformação:
mas o universo marcha
para a arquitetura perfeita.
Adiante o poeta conclui definitivamente:
A aurora é coletiva.
A espada do Quixote aponta novas trilhas. Coletivamente, então, estamos convocados sem apelo à sua invenção. Depende de nós, inexorável, que assim seja.
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Reflexão num primeiro de janeiro de 2019 - Instituto Humanitas Unisinos - IHU