19 Outubro 2018
Steven Levitsky, professor de Ciência Política da Universidade Harvard, dedicou praticamente toda a vida acadêmica a entender o que dá suporte e quais são as ameaças à democracia. Especialista em América Latina, ele lançou recentemente o livro Como as Democracias Morrem (Zahar), escrito em parceria com o colega de instituição Daniel Ziblatt.
Alçada rapidamente à categoria de best seller, a obra trata da ascensão de Donald Trump, mas também analisa fenômenos como o nazismo e o fascismo nos anos 30, os governos militares na América Latina, durante a década de 1970 e, mais atualmente, o avanço da extrema direita na Europa.
A entrevista é de Ricardo Ferraz, publicada por BBC News Brasil, 19-10-2018.
A tese central defendida pelos autores é que golpes de Estado clássicos, com uso de armas e fechamento do Congresso, já não são mais aplicados.
As democracias, diz ele, morrem por ataques sutis e sistemáticos contra as instituições. Agora, as atenções de Levitsky se voltaram ao Brasil, onde Jair Bolsonaro (PSL) pode chegar à Presidência da República.
Para o professor de Harvard, trata-se de uma ameaça real à jovem democracia brasileira - ainda que considere um exagero as interpretações de que o capitão reformado seja fascista -, como ele explica na entrevista concedida por telefone à BBC News Brasil.
Por que eleitores, em diversos países do mundo, estão votando em candidatos radicais?
Isso não acontece muito frequentemente. Ocorreu nos Estados Unidos porque os americanos acham que a democracia estará sempre assegurada. Não importa se formos descuidados, não importa quem elejamos, ninguém conseguirá ferir nossa democracia. É um evento assombroso os americanos terem eleito alguém que não demonstra respeito pela Constituição.
Na maioria das vezes, o povo não gosta de autoritarismo e não vota em populistas.
Mas, às vezes, isso acontece porque os eleitores estão bravos com o status quo, com os partidos políticos e com a classe política em geral. Um populista é alguém que basicamente promete colocar tudo isso em um saco para jogá-lo no rio.
Quando eleito, ele passa a atacar as instituições democráticas. Há muitos exemplos no mundo, e o Brasil é um deles.
De que maneira a onda conservadora que se vê nos Estados Unidos e parte da Europa está impactando o Brasil?
Eu ainda não tenho certeza como podemos conectar o fenômeno Bolsonaro com outros populistas de direita, como (Donald) Trump (nos EUA), (Viktor) Orban (na Hungria), ou outros da Europa. A causa principal do avanço da direita nos países ricos é a diversidade. É uma reação à imigração por parte dos (cidadãos) brancos, de direita não-liberal.
Há um pouco disso no Brasil, mas é muito diferente.
Eu não colocaria Bolsonaro no mesmo grupo. Mas, ainda que não seja a mesma coisa, ele se identifica com isso, e você percebe um apoio transnacional à sua candidatura.
São ideias e práticas que 15, 20 anos atrás seriam rejeitadas pelo establishment e que agora estão se tornando aceitáveis. Meu maior medo é que violações de direitos humanos que tinham sido eliminadas na América do Sul possam se tornar aceitáveis de novo.
Quais as principais diferenças entre o que se vê no Brasil e em outros países?
O Brasil passa por uma crise muito pior do que Suécia, França, Hungria ou Estados Unidos.
Nos Estados Unidos, você tem uma parcela muito grande da população que resiste ao fato de que a sociedade vai se tornar mais diversa etnicamente.
Mas o Brasil está sofrendo uma crise de, pelo menos, duas dimensões: a pior recessão na história do país e o maior escândalo de corrupção entre todos os países democráticos.
Eu acho que o avanço da direita no Brasil se deu porque o governo era de esquerda e é visto com o responsável pela crise.
O senhor usa o termo "jogo duro constitucional" para definir a disputa política em contextos radicalizados. O que é exatamente isso?
"Jogo duro constitucional" é usar as instituições como arma política contra o seu oponente.
Usar a letra da lei de maneira a diminuir o espírito da lei. É fruto da polarização: quando os dois lados começam a temer e desprezar o outro, eles passam a lançar mão de qualquer meio necessário para impedir que o outro vença.
Hoje, toda nomeação para a Suprema Corte americana envolve jogo duro constitucional e o mesmo se viu no Brasil, durante o impeachemnt (de Dilma Rousseff), em 2016, e a exclusão da candidatura de Lula, em 2018.
Olhando para outros casos de colapso da democracia (Brasil nos anos 60, Chile nos anos 70, Espanha nos anos 30, Alemanha no começo dos anos 30), se percebe que, quando isso começa, tende a se intensificar e é muito difícil de ser parado.
Há uma percepção do eleitorado brasileiro de que Fernando Haddad, do PT, e Jair Bolsonaro, do PSL, são lados opostos de uma mesma radicalização e que ambos representariam ameaças à democracia. O senhor concorda com essa visão?
Absolutamente não. Não há dúvidas de que integrantes do PT radicalizaram o discurso desde a crise de 2016. Eu acho que o impeachment foi um erro terrível por parte da centro-direita. O impeachment e a exclusão da candidatura de Lula, definitivamente, contribuíram para isso.
Mas o PT é um partido institucionalizado, estabelecido e democrático. Nasceu em 1979 e, por quase 40 anos, jogou dentro das regras democráticas.
O PT governou o Brasil por 14 anos e, se você olhar para qualquer medida de democracia, o Brasil se mantém igualmente democrático, se não mais democrático do que antes.
O PT respeita a independência da Justiça e da imprensa. As eleições sempre foram livres. Se você olhar para o registro do PT no poder, verá que há muito erros, como a política fiscal e os casos de corrupção. Mas (daí a) chamar o PT de chavista, ou de autoritário...
Por outro lado, o PT diz que Bolsonaro é fascista...
Eu acho que isso é um exagero. Penso que ele é claramente autoritário (e não fascista).
Os eleitores dos dois lados estão acusando os adversários de serem fascistas ou comunistas. O senhor acha que o voto está sendo decidido dessa maneira?
Não. Há dois tipos de voto no PT: seus apoiadores, muitos dos quais beneficiários dos governos do partido, principalmente no Nordeste, e muita gente que não gosta do PT, mas que está assustado com o Bolsonaro.
No caso do capitão reformado, algumas pessoas estão votando nele porque ele encarna um modelo de homem forte, porque ele é populista e porque acredita em Deus.
Agora, no segundo turno, muita gente está votando nele porque ele é anti-PT. São poucos os comunistas e os fascistas brasileiros.
O senhor falou anteriormente em chavismo. A situação política e econômica da Venezuela tem sido usada como um exemplo negativo pelos eleitores do Bolsonaro, já que o PT apoia o regime de Nicolás Maduro. Qual dos dois candidatos o senhor acha que tem mais proximidade com o chavismo?
Sem nenhuma dúvida, Bolsonaro. Populistas podem ser de direita, de esquerda, ou de centro.
Hugo Chávez era de esquerda e Bolsonaro não é. Ele não vai implementar a mesma política econômica, mas é uma ameaça populista para a democracia.
Muito frequentemente, quando um populista chega ao poder, você vê rapidamente uma crise institucional entre um presidente e o Congresso, o Judiciário, a imprensa.
E isso leva ao colapso da democracia. É o caso de Hugo Chávez, de Alberto Fujimori (ex-presidente do Peru), (Juan Domingo) Perón (ex-presidente da Argentina), Rafael Correa (ex-presidente do Equador), Evo Morales (presidente da Bolívia) e é claramente o caso de Bolsonaro.
Haddad está longe do populismo. Você pode discordar das suas políticas econômicas, mas ele não representa um projeto populista.
Os partidos políticos tradicionais contribuíram para o quadro atual?
Quase sempre o autoritarismo chega ao poder em regimes democráticos, quando alguém do establishment abre a porta para ele, quando ele recebe ajuda, cooperação de um partido estabelecido. Mussolini recebeu o apoio dos liberais italianos; Hitler recebeu apoio dos conservadores alemães; Trump, do Partido Republicano; Hugo Chávez, de Rafael Caldera (ex-presidente da Venezuela), que o libertou da prisão.
Então, sempre tem pelo menos uma mão do establishment.
Eu acho que os políticos brasileiros fizeram um excelente trabalho em tentar isolar o Bolsonaro no primeiro turno, mas estão fazendo um trabalho muito pior agora, com algumas forças políticas apoiando o candidato do PSL, e isso pode ser um erro terrível.
O discurso de que Haddad e Bolsonaro representam um mesmo perigo é um mito e pode matar uma democracia que o Brasil lutou tanto para conquistar.
Uma aliança pela democracia formada por partidos que sempre estiveram em lados opostos da política influenciaria o resultado da eleição?
Não está claro se isso seria suficiente, mas é a única possibilidade.
A única chance que os brasileiros têm de parar o Bolsonaro é realizar uma aliança ampla genuína, autêntica e entusiástica entre o PT e os partidos políticos de centro-direita.
Isso implica em PSDB e MDB pararem com esse discurso de que o PT é chavista. Já o PT terá de fazer enormes e dolorosas concessões à centro-direita: não indultar Lula, reconhecer que há figuras respeitáveis que não são do PT e que poderiam ser indicadas para o Supremo Tribunal Federal, além de garantir à centro-direita que esse não será um governo do PT, mas um governo que representa uma ampla aliança democrática.
Os eleitores brasileiros parecem mais preocupados com problemas do dia a dia, do que com a ideia abstrata de uma ameaça à democracia. De que maneira um ataque às instituições poderia afetar a vida da população?
Não iria afetar muito a vida dos homens de negócio ricos de São Paulo, pelo menos não inicialmente, mas iria afetar imediatamente a vida de milhões e milhões de brasileiros que podem ser considerados vulneráveis socialmente.
Uma das maiores conquistas dos últimos 30 anos foi diminuir a desigualdade. (Isso aconteceu) graças à ação dos políticos, do Judiciário e dos movimentos sociais, que estenderam direitos às minorias - negros, mulheres, pobres e, mais recentemente, os homossexuais.
Estamos falando de pessoas que historicamente não têm os mesmo direitos das classes mais abastadas de São Paulo e que viram uma proteção muito maior nos últimos anos: o direito de viver, de serem tratados como cidadãos iguais perante a lei. Isso só aconteceu por causa da democracia.
Se as ameaças de fato se concretizarem, de que maneira podemos esperar que a democracia pereça?
Muito provavelmente de uma maneira diferente da de 1964. Não deve haver regime militar, cassação de partidos, ou censura.
Mas pode-se esperar a eliminação de direitos civis básicos, especialmente das minorias, dos pobres, dos trabalhadores rurais.
No pior cenário, o aparelhamento do Estado e do Judiciário para perseguir pessoas politicamente, seja por corrupção, fraude fiscal ou por qualquer outro tipo de crime.
Bolsonaro já disse que quer enquadrar o Judiciário, aumentando o tamanho do STF e indicando seus aliados (para a corte). Mas pode ser pior.
O Brasil tem um problema grande de violência e de crime organizado, com facções como o PCC e o Comando Vermelho. Se Bolsonaro lançar uma guerra contra essas organizações, o Brasil se tornará muito violento rapidamente. Ele pode usar isso como desculpa para acabar com a democracia e suspender a Constituição. É muito improvável que ele faça isso no dia seguinte a sua posse, mas as chances aumentam se ele estiver enfrentando uma crise.
Como as democracias poderiam criar mecanismos para se protegerem?
É muito difícil. Democracias são sempre vulneráveis e podem seguir o mesmo caminho que o Brasil está prestes a tomar: permitir a eleição de alguém que não é comprometido com ela própria.
Alguns países europeus, como Alemanha, permitem ao Estado banir partidos políticos e outros movimentos que ameaçam a democracia publicamente. Outros países, como os Estados Unidos, que têm uma cultura muito diferente, jamais fariam isso.
Mas o ponto é que, quando a democracia está indo minimamente bem, o crescimento está bem, não há muitos escândalos, as pessoas não querem eleger alguém perigoso como Bolsonaro.
Somente em períodos de crises extremas, como o do Brasil hoje, as democracias se tornam vulneráveis. Em períodos assim, os cidadãos precisam se levantar para defendê-la.
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Por que este professor de Harvard acredita que a democracia brasileira está em risco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU