11 Outubro 2018
Papa Paulo VI ao Arcebispo. Romero: "Compreendo o seu difícil trabalho. É um trabalho que pode não ser compreendido, exige muita força e paciência. Mesmo sabendo que nem todos pensam como você em seu país, prossiga com coragem, com paciência, com força e com esperança".
O depoimento é de Luis Badilla (1), publicado por Il sismografo, 10-10-2018. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eu me encontrei e conheci D. Oscar Romero, arcebispo de San Salvador, na primavera de 1979, três dias após que o arcebispo havia sido recebido pela primeira vez em audiência privada pelo Papa João Paulo II, pedida ao novo papa durante a Audiência geral. O pedido através dos canais regulares não havia obtido nenhum fruto, exceto promessas não confiáveis. (2)
O nosso encontro estava marcado ao pé do obelisco da Praça São Pedro e caminhamos juntos por quase 50 minutos, tocando em nossa conversa vários assuntos, especialmente as notícias ainda tristes e confusas que vinham de El Salvador.
Dois dias antes, uma manifestação de opositores à ditadura do general Carlos Humberto Romero tinha chegado até a entrada da Catedral, para expressar solidariedade com outros manifestantes que ocupavam o templo. O grupo, uma vez reunido, começou a clamar pela libertação de alguns líderes presos; em pouco tempo, a polícia do regime interveio e realizou um massacre horrível, atirando em qualquer coisa que se movesse.
No final do dia, 25 mortos foram deixados na calçada e na escadaria da Catedral.
Embora nada ainda estivesse claro - os despachos das agências eram bastante escassos por causa da censura imposta pelo governo -, mons. Romero, grande conhecedor da situação, comentou com grande tristeza: "Espero que nada de irreparável tenha acontecido, mas temo o pior". Depois de alguns dias, infelizmente, as palavras do arcebispo se revelaram verdadeiras: o pior tinha acontecido, o que a história lembra hoje como "La Masacre de la Catedral".
Nosso encontro foi possível graças à minha amizade com Mons. Arturo Rivera y Damas, amigo e colaborador do arcebispo e seu sucessor na sé de San Salvador, depois de seu assassinato em 24 de março de 1980. Mons. Rivera y Damas anos atrás tinha sido bispo auxiliar da Arquidiocese de San Salvador, e neste período havia estreitado relações de amizade com vários bispos e padres chilenos que eu conhecia muito bem. Nesta teia de relações e amizade, quase 40 anos atrás, nasceu a ideia do nosso encontro em Roma, especialmente para falar sobre o meu país, aviltado por quase cinco anos de outra horrenda ditadura. Na realidade, em nosso encontro pouco ou nada foi dito sobre a situação chilena. Mons. Romero tinha uma grande necessidade de ser atualizado sobre o que estava acontecendo em seu país e na sua diocese e isso direcionou a conversa sobre a tragédia salvadorenha, colocando de lado a outra, a chilena.
Naquela tarde, mons. Romero, amável e gentil, parecia bastante nervoso e no intenso gesticular das mãos, bem como em contrações de seu rosto, podiam ser "lidos" sinais de angústia e ansiedade, quase - eu diria - de dor física. Falava de forma rápida, o que não era usual de acordo com o que pude verificar mais tarde, ouvindo várias gravações de suas homilias. Ele também estava preocupado com sua viagem de volta no dia seguinte: teria que ir para a Espanha, de onde voaria para o seu país, em que certamente teria encontrado uma situação pior à existente antes de viajar para Roma, e mais crítica também da que tinha amplamente ilustrado ao Papa João Paulo II, 24 horas antes do massacre na Catedral de San Salvador, local onde hoje fica a cripta funerária do arcebispo mártir e santo.
De qualquer forma, mons. Romero, também estava exausto por sua longa espera em Roma, que demorou porque ele estava aguardando um encontro com o Papa, dias "para mim muito custosos ... A minha, você sabe, é uma diocese pobre, e devemos usar o dinheiro com grande responsabilidade", foi o seu comentário. Mons. Romero tinha a impressão de não ser bem compreendido em alguns departamentos da Cúria e pensava que se dava mais escuta, credibilidade e crédito a vozes inimigas da igreja salvadorenha ou ao que, com as palavras do Papa Francisco, hoje poderíamos chamar de "fofocas" .
Agora se sabe. Está bem estabelecido que, durante muitos anos, antes, quando ainda estava vivo, e mesmo após o seu martírio, Mons. Romero foi vítima do "terrorismo da fofoca" que em alguns momentos tiveram um efeito muito evidente: evitar absolutamente, dificultar ou retardar o processo de beatificação. Eu me lembro que Mons. Romero considerava que essas "fofocas" fossem "compreensíveis, até certo ponto", porque, explicava, a "situação interna do país é muito confusa e envenenada e entre as técnicas que são utilizadas para desinformar há falsidades, calúnias, rumores infundados [...] São pequenas avalanches lançadas na imprensa governamental, aparentemente de modo inofensivo, que depois outros ampliam como verdades indiscutíveis", acrescentou amargurado. Muitas vezes ele era a vítima principal e privilegiada do regime e dos partidos que o apoiavam, e que sempre fizeram de tudo para desacreditar o arcebispo.
Eu sabia que no Vaticano já lhe tinham sido sugerido de tentar melhorar as relações com o governo e, portanto, naquele encontro eu perguntei a Mons. Romero se teria sido possível seguir tal caminho. Sua resposta - lembro claramente - foi desarmante: "Tudo é possível e sempre se deve tentar, mas considero que a nossa sinceridade e boas intenções não encontrem a resposta desejada. Por parte das autoridades recebemos como resposta às nossas exigências só o silêncio, acusações e às vezes ofensas. No governo e na política salvadorenha, a maioria considera a igreja uma instituição inimiga e infiltrada por pessoas inimigas do país, da democracia da convivência pacífica". Para o arcebispo uma "evidência terrível" de tal animosidade, no limite com o ódio, foi o assassinato de vários sacerdotes e leigos empenhados na pastoral, o último dos quais tinha sido o padre Octavio Ortiz, morto em 20 de janeiro de 1979, juntamente com outros quatro jovens.
Em seu coração estavam sempre vivos os nomes de outros irmãos mortos, começando com o Padre Rutilio Grande, trucidado em 12 de março de 1977, junto com duas outras pessoas (Manuel Solorzano, 72, e Nelson Rutilio Lemus, 16 anos). Nos anos seguintes, Mons. Romero viu-se chorando a morte de outros sacerdotes (maio de 1977, padre Alfonso Navarro Oviedo, janeiro de 1978, padre Neto Barrera). Depois de seu encontro com o Santo Padre, ao retornar, teve que prantear dois outros irmãos: padre Rafael Palacios (junho de 1979) e padre Napoleão Alirio Macias (agosto de 1979).
Eu lembro ter colocado o Mons. Romero esta pergunta: "Sobre o senhor, no momento de sua nomeação (1970, bispo auxiliar de San Salvador) (3), foi dito que era bastante conservador, de ‘direita’. Mas agora alguns até o acusam de ser comunista. Por que monsenhor?” Neste ponto, o arcebispo parou e olhando-me com determinação disse: "Não! Eu nunca me interessei por política. Eu nunca fui de direita ou esquerda. São conceitos de uma categoria que eu não conheço e não entendo, a política. Desde 1930, desde a época do Seminário de San Miguel (Romero tinha 13 anos), sempre pensei em Cristo e na sua Igreja como meus únicos pontos de referência. Ser considerado uma hora de direita e depois de esquerda, mostra que são os outros que querem me usar e não o que eu penso e realmente sou".
Então, por alguns minutos, fez uma reflexão extremamente lúcida. "O problema que enfrenta a Igreja latino-americana, e talvez isso ocorra em outras regiões, é a leitura político-ideológica que de seu ser e de sua missão é feita pelo lado de fora. Muitas vezes, os setores da sociedade olham para a missão da Igreja com antolhos ideológicos, na tentativa de usá-la e, portanto, de acordo com suas necessidades, atribuem-lhe rótulos de conveniência. Se não conseguem domá-la, tentam destruí-la". E esse seu pensamento o encontramos de forma recorrente nas gravações que dois anos antes de sua morte o arcebispo fez todas as noites e que foram publicadas na íntegra em 1990. (4)
Eu me lembro que no quadro dessas reflexões Mons. Romero fez inúmeras observações sobre os direitos humanos e sobre a dignidade da pessoa. Em particular, ele lembrou algumas histórias de salvadorenhos torturados, bem como de famílias destruídas, e entre estas havia pessoas próximas a ele por anos. Ele também lembrou, com voz embargada, alguns casos de crianças torturadas para forçá-las a dar informações sobre membros da família procurados pela polícia política. Em alguns momentos, Mons. Romero também enfatizou o drama da pobreza, aliás, da miséria de tantos dos seus concidadãos e, portanto, fez referência a alguns Episcopados europeus e norte-americanos que prestavam uma ajuda solidária às obras de promoção humana de sua arquidiocese. Nesse contexto, ele pronunciou uma frase cujo significado mais profundo eu só compreendi alguns anos mais tarde: "Você sabe, caro amigo, a pobreza em certo sentido é o mal menor, porque é possível ser pobre com dignidade Com a tortura e a repressão, em vez disso, essa dignidade desaparece e a pessoa é degradada ao ponto de torná-la um objeto. É algo muito difícil de superar. Essas feridas são piores daquelas da fome ou do sofrimento físico".
Eu não entendi que estava diante de um santo
Depois de ter comunicado os respectivos endereços postais e nossos números de telefone, nos separamos com um carinhoso aperto de mão e um abraço tímido. Em silêncio, para sempre, Monsenhor Romero afastou-se com a cabeça inclinada para a Via della Conciliazione, pequeno, quase minúsculo, cada vez mais desfocado. Nosso encontro foi doloroso, hoje eu diria premonitório. Lembro de ter olhado por tempo para o crucifixo acima do obelisco, certo de ter falado com um sacerdote exemplar e um grande pastor, mas sem entender que ele também era um homem santo.
Notas.
(1) A narração dessas memórias datadas de muitos anos após os acontecimentos relatados, foi possível graças a um caro amigo salvadorenho para quem, dez dias depois de meu encontro com Mons. Romero, escrevi uma carta contando-lhe uma parte importante daquela conversa. Agora esse amigo, residente há anos nos EUA, a meu pedido me enviou de volta uma cópia da minha carta de 1979, que eu não conservava. A ele minha sincera gratidão e carinho, assim como a sua família.
(2) Das cartas pastorais de Mons. Romero - Testemunho de Jesús Delgado, secretário do bispo mártir. "Wojtyla foi recentemente eleito. Após a audiência geral na Praça de São Pedro, Romero se apresentou ao papa dizendo que ele era arcebispo de San Salvador e o Papa com o dedo levantado disse, "Tenha cuidado com o comunismo!". Romero imediatamente se agitou e respondeu: ‘Sim, Santo Padre, entendo sua preocupação, mas devo dizer-lhe que o comunismo em
El Salvador não é o mesmo que na Polônia. No meu país, acusam de ser comunista até mesmo aqueles que falam da Doutrina Social da Igreja’. E Wojtyla franziu a testa, evidentemente insatisfeito com a resposta. Romero depois desse encontro teve uma impressão negativa: ‘Sinto que com este papa eu não vou me entender muito’, ele me disse, ‘é muito diferente de Paulo VI’".
Quase um diálogo entre surdos.
"Sim. Eu disse a ele: ‘Devagar monsenhor, acaba de se tornar papa, não conhece bem a América Latina. Nós devemos orar por ele’".
A amargura de Romero durou inclusive mais tarde?
“Cinco meses depois tivemos que ir para a França. Eu disse a ele para ir a Roma porque não se pode ir para a Europa sem passar por Roma. E Romero disse: ‘Desta vez não vou, eu não me entendo com este Papa’”.
E o senhor?
"Isso significa, eu disse a ele, que em sua biografia vou escrever um capítulo sobre a recusa de ir a Roma e encontrar o Pontífice. Uma hora mais tarde, ele me pediu para alterar a passagem."
Como foi esse segundo encontro com o Papa?
"Muito bom. O pontífice encorajou-o e disse-lhe para ir em frente e que teria rezado por ele que era o vigário de Cristo para o povo de San Salvador. Uma sintonia selada quando João Paulo II em janeiro de 1979 chegou a Puebla, no México, para inaugurar a reunião do episcopado latino-americano".
(3) Mons. Romero em 25 de abril de 1970, foi nomeado bispo auxiliar de San Salvador pelo Papa Paulo VI que, em seguida, nomeou-o Bispo de Santiago de Maria, em 15 de outubro de 1974. Finalmente, em 3 de fevereiro de 1977, sempre o Papa Montini nomeou-o arcebispo de San Salvador.
Monsenhor Romero encontrou Paulo VI pela última vez em 21 de junho de 1978, um mês e meio antes da morte do pontífice. Monsenhor Romero, em seu diário, recordou aquele encontro com particular afeição. O Papa com ele foi "cordial, generoso, a emoção daquele momento não me permite lembrar palavra por palavra". Mas o Papa Montini disse a ele: "Eu compreendo o seu difícil trabalho. É um trabalho que pode não ser compreendido, exige de muita força e paciência. Mesmo sabendo que nem todos pensam como você em seu país, prossiga com coragem, com paciência, com força e com esperança". "Ele me prometeu que oraria por mim e pela minha diocese. E me pediu para fazer todo esforço pela unidade". No ano seguinte, Mons. Romero retornou a Roma e visitou a Basílica do Vaticano e rezou diante do túmulo de Montini. "Ele me impressionou, mais do que qualquer outro, por sua simplicidade", escreveu sempre em seu diário. "Eu senti uma emoção especial ao rezar no túmulo de Paulo VI, de quem passei a recordar muitas coisas de seus diálogos comigo, durante as visitas que fiz, tendo a sorte de ser admitido à sua presença pessoal."
(4) Dez anos após a morte de O. Romero, a arquidiocese de San Salvador publicou sem comentários as transcrições dessas gravações.
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1979, meu encontro com o D. Oscar Romero ao pé do obelisco de São Pedro, um ano antes de ser morto enquanto celebrava a Eucaristia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU