10 Julho 2018
Naquele restrito arco de tempo, apareceu uma sequência de textos teológicos que permaneceram – embora com gradações e níveis diferentes – como pilares indicadores de um processo que, depois, se ramificaria ainda mais em várias direções inéditas.
A opinião é do cardeal italiano Gianfranco Ravasi, prefeito do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado em Il Sole 24 Ore, 08-07-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Há 50 anos, não tínhamos a consciência de que aquela data, 1968, se tornaria uma espécie de divisor de águas simbólico, posteriormente mitificado ou depreciado.
Gostaríamos, agora, de recordar aquele ano não tanto pelos abalos que ele também criou no tecido eclesial, mas sim por um dado editorial surpreendente. De fato, naquele restrito arco de tempo, apareceu uma sequência de textos teológicos que permaneceram – embora com gradações e níveis diferentes – como pilares indicadores de um processo que, depois, se ramificaria ainda mais em várias direções inéditas.
Iniciamos com o primeiro teólogo, Joseph Ratzinger, então com 41 anos, professor naqueles anos em Tübingen, e com a sua “Introdução ao Cristianismo”, uma obra que a editora Queriniana da Bréscia traduziria três anos depois e que, em seguida, ininterruptamente reeditaria, antes mesmo da ascensão do autor ao sólio pontifício.
Trata-se de uma série de lições de verão, proferidas – de acordo com uma tradição universitária da Europa Central – aos auditores de todas as faculdades. Formuladas em um ditado límpido e marcado por piscadelas culturais variadas, identificam-se no escrito alguns nós estruturais do cristianismo: o apelo ao indivíduo para que se abra ao todo; a passagem do ser para si ao ser para os outros; o Deus Máximo transcendente que se revela no Mínimo da cruz; a esperança no futuro, fundada no presente salvífico; o primado do receber sobre o fazer e, portanto, o sentido do dom pelo qual o amor nos precede e nos excede. Essa lista temática, certamente, não dá conta da rica articulação de um discurso que tem, em filigrana, as asserções do Credo cristão, proclamado pelo fiel na liturgia, mas repleto de significados antropológicos universais.
Ao método epistemológico, por sua vez, dirige-se o segundo texto que aparece em 1968: é a “Hermenêutica de Marburgo”, de Ernst Fuchs (1903-1983), teólogo protestante, professor da universidade citada no título (em 1954, ele havia publicado uma “Hermenêutica de Tübingen”, sede do seu ensinamento anterior).
Como é evidente, a palavra fundamental é “hermenêutica”, isto é, a interpretação e, portanto, “a doutrina da linguagem da fé”, na consciência de que o homem se revela mais ao dizer do que ao agir, manifestando assim o seu ser e o seu existir.
Na Bíblia, a palavra é a epifania arquetípica divina (“Deus disse: Haja luz!”), tanto na criação quanto na história (Sinai e o Decálogo). Cristo é definido pelo Evangelho de João como o Logos por excelência, e o Novo Testamento é, em última instância, “um manual de hermenêutica” que ensina a língua para dialogar com Deus, de modo a descobrir o sentido da vida, desafiar a morte e escolher o caminho do amor.
O terceiro autor que introduzimos é discípulo do famoso teólogo Karl Rahner: Johann Baptist Metz, nascido na Baviera em 1928, professor em Münster e ainda vivo, com o seu ensaio “Sobre a teologia do mundo”, que se insere no filão da chamada “teologia política” e que foi traduzido no ano seguinte pela Queriniana.
A obra quer ser um corretivo a uma abordagem privatista demais da fé, curvada sobre o íntimo e sobre o existencial pessoal, rompendo o vínculo com a história e a sociedade que, em vez disso, é basilar na visão bíblica e na Encarnação de Cristo.
Nem o isolacionismo sacral nem a abstração teórica podem preencher e esgotar a demanda do Evangelho dirigida ao cristão para que esteja no mundo como fermento e sal. A mensagem cristã volta-se, sim, à plenitude escatológica: esta, porém, já tem aqui e agora o seu início e, se o olhar está dirigido para o além e para o “ainda não”, os pés estão plantados na praça da história, onde o fiel é uma presença eficaz não homologada, mas crítica.
A reflexão de Metz, depois, se expandiria para novas categorias, como as da “memória”, da “narrativa”, da solidariedade, da “Igreja mundial culturalmente policêntrica”, e não hesitaria em abordar também o escândalo teológico que deriva da infâmia de Auschwitz.
Até agora, movemo-nos no horizonte europeu e, mais especificamente, alemão. Agora, é necessário cruzar o Atlântico e chegar em Boston, onde Mary Daly (1929-2010) era professora e que, em Londres, tinha publicado em 1968 uma obra destinada a criar celeuma, traduzida pela editora Rizzoli em 1982.
O título já é emblemático: “A Igreja e o segundo sexo”, com óbvia referência ao famoso ensaio sobre o “Segundo sexo” escrito por Simone de Beauvoir em 1949. Era a primeira pedra, que depois se tornaria uma avalanche, de um movimento que assumiria também aspectos provocativos, como, por exemplo, o “ginocentrismo”, a “gin-ecologia”, ou, mais comumente, a “teologia feminista”.
As tipologias seriam múltiplas: desde as mais radicais e agressivas até formas mais dialógicas, mas sempre convencidas de que é necessário não apenas derrubar uma abordagem “patriarcal” da Igreja, mas também reelaborar a própria linguagem, reconstruindo-a de acordo com categorias mais “neutras”.
Daly ainda dava os primeiros passos nesse horizonte que, depois, veria polêmicas acaloradas, mas também ferozes redimensionamentos e que, no fim, se ampliaria para o fluido território do gênero. O certo é que algumas reivindicações entraram na agenda eclesial nas décadas seguintes, especialmente agora com o Papa Francisco.
Concluamos o nosso percurso dentro daquele ano de transição, como foi 1968, com uma última obra que nos força a retornar à Alemanha. Deixamo-la por último porque, na verdade, não é um escrito teológico, e o autor não era um teólogo, nem um crente, ao contrário, era um marxista, embora bastante heterodoxo.
Pretendemos nos referir ao filósofo Ernst Bloch (1855-1977) e ao seu ensaio “Ateísmo no cristianismo. Pela religião do Êxodo e do reino que virá”, traduzido pela editora Feltrinelli em 1971. Estritamente falando, seria preciso amarrar esta reflexão àquela que tornou famoso o professor de Tübingen e que se cristalizou no imponente “O princípio esperança” (1954-1959), traduzido em 1994 pela editora Garzanti. Como se pode ver no mesmo subtítulo, a referência é à matriz bíblica que foi o paradigma de referência constante de Bloch na sua pesquisa teórica.
Apelando à categoria “exódica” e à messiânica, mas também à tradição mística judaica e às concepções cristãs mais livres e até heréticas (Orígenes, os Ofitas, Joaquim de Fiore, Campanella), ele delineia um rosto divino que seria “ateu” aos olhos da teologia fundamentada nas concepções metafísicas de marca grega, para as quais Deus é o ser perfeitíssimo ou o “motor imóvel” e assim por diante.
Ele, ao contrário, é aquele que pode se definir a Moisés como “Eu sou aquele que sou”, apresentando-se como uma personalidade livre que não gera adeptos adoradores, mas sim criaturas livres em uma terra de liberdade. Para Bloch, o “vocês serão como Deus” do tentador do Éden tem uma verdade que se cumprirá em Jesus Cristo, que não é um Deus que se tornou homem, mas o homem que se torna Deus.
Um cristianismo invertido, portanto, revolucionando e revolucionário, portanto, que tem justamente na Bíblia a sua raiz e que foi silenciado na sua força disruptiva pela instituição. É evidente que somos conduzidos em um terreno móvel e a um metacristianismo, embora alimentado pela energia primigênia da Revelação bíblica.
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O 1968 de Ratzinger e da teologia. Artigo de Gianfranco Ravasi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU