09 Julho 2018
Nicarágua. O trovador que lamenta a traição de Daniel Ortega.
Nada pode ser mais eloquente a respeito da traição à revolução sandinista de Daniel Ortega, o presidente nicaraguense, do que a revolta de Carlos Mejía Godoy contra ele.
O comentário é de Clovis Rossi, jornalista, publicado por Folha de S. Paulo, 08-07-2018.
Primeiro, um pouco da história de Mejía Godoy: é um cantor, compositor e ativista social que emprestou ritmo e melodia à revolução sandinista, a que depôs em 1979 a ditadura do clã Somoza.
Seus versos enfeitavam uma revolta libertária. Sua canção mais conhecida (“Nicarágua/Nicaraguita”) celebra precisamente a liberdade e termina com estes versos: “Ay, Nicarágua sos más dulcita/Que la mielita de tamagas/Pero ahora que ya sos libre, Nicaraguita/Yo te quiero mucho más”.
Acho que dispensa tradução, exceto para “tamagas”, que designa várias coisas centro-americanas, mas, no caso, refere-se ao mel que se recolhe de colmeias sem dono em uma região da Nicarágua.
Em todo o caso, traduzo: “Ai, Nicarágua, és mais docinha/que o mel das tamagas/mas agora que já és livre, Nicaraguita/eu te quero muito mais”.
Mejía Godoy continua sendo um libertário, tanto que está participando dos protestos contra o autoritarismo de Ortega e de sua mulher, a vice-presidente, Rosario Murillo.
Mas já não acha que a Nicarágua de hoje seja doce, bem ao contrário. Em entrevista ao jornal espanhol El País, Mejía Godoy disse o seguinte: “Não tenho nada pessoal contra o indivíduo Daniel Ortega, e, sim, contra o que ele representa, e o que ele representa é o apocalipse de Nicarágua”.
Para quem acha que apocalipse é uma palavra forte demais, convém lembrar que os mortos nesses dois meses e meio de protestos já são mais de 200, que as perdas econômicas decorrentes da crise superam US$ 1 bilhão (R$ 3,9 bilhões) e que economistas locais calculam que 150 mil pessoas podem perder o emprego —uma barbaridade em um país de 6,3 milhões de habitantes.
Tudo porque Ortega se transformou em um Somoza do século 21 e se aferra ao poder, ao qual chegou após aliar-se ao que havia de mais conservador e corrupto na Nicarágua pós-Somoza.
Mejía Godoy não é o único sandinista desiludido com seus antigos heróis. O cantor, aliás, trabalhou nos anos 70 na Oficina de Música Popular de Solentiname, uma comunidade cristã dirigida pelo poeta (e ex-padre) Ernesto Cardenal.
(Carlos Mejía Godoy e Ernesto Cardenal. Foto: Jorge Mejía Peralta | Flickr)
Cardenal, ícone da Teologia da Libertação, embebida de marxismo, foi militante do sandinismo e usado como demonstração de que os católicos apoiavam a revolução. Tornou-se ministro da Cultura, após a vitória do sandinismo, mas rompeu com Ortega em 1994. Passou a ser tão vilmente perseguido que sua vida ficou quase inviabilizada, ele que está com 93 anos.
Iosu Perales, cientista político especialista em relações internacionais, um dos incontáveis internacionalistas que apoiaram a revolução, escreve para o site Confidencial que se sente sandinista intelectual e sentimentalmente.
Não obstante, critica não só o autoritarismo de Ortega e as matanças que desatou mas também o comportamento da esquerda de “justificar atuações da esquerda que devem ser criticadas por outras esquerdas”.
Quando será que a esquerda brasileira reconhecerá o óbvio, ou seja, que a revolução sandinista é uma “Revolução Perdida”, como diz livro do poeta Cardenal?
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O cantor da 'Revolução Perdida' na Nicarágua - Instituto Humanitas Unisinos - IHU