22 Junho 2018
"Hoje temos este instrumento: pelo voto podemos eleger nossos representantes, tentando melhorar um parlamento capenga. Cada eleição é de certa maneira um juízo particular. E seremos julgados pelas nossas escolhas", escreve Luiz Alberto Gomez de Souza, sociólogo.
Aprendi este dicho com minha abuela, primeira e inesquecível catequista. O verbo era outro, mais sonoro, mas que soa violento em ouvidos latino-americanos falsamente pudicos. Isso alimentava as filas para a confissão. Lembro de um intelectual importante que, no fim da vida, cheio de complexos, mal saía do confessionário e já lá voltava. Em insônias da adolescência me perguntava: estarei pronto quando chegar a hora? Ainda mais quando imagens oníricas povoavam e manchavam meus lençóis. “O grande pecado da carne”, bradavam meus mestres salesianos. “Quantas vezes?”, para a contabilidade dos pecados. A linguagem de um catolicismo popular com sementes jansenistas, trazia o pânico de uma sempre possível condenação.
Nada como o humor pra desfazer medos e assombrações. O que me salvou, foi ler um livro na estante de meus avôs. O autor, um desconhecido Cami (sem nome ou sobrenome, atenção, com i), que publicou em 1929 em Madri El juício final (há uma tradução da Ed. Vecchi de 1947). Jocosamente irreverente, descrevia o que seguiria ao troar das trombetas, a convidar a humanidade para espremer-se no Vale de Josafá. E era uma enorme disputa: este braço foi meu antes de você, etc...
Dante Aliguieri, em sua Divina Commedia, traça os três planos: Inferno, Purgatório e Paraíso. Chama-se Commedia por que, ao contrário da Tragedia, termina bem. Esse tema obcecou mais adiante Giovanni Papini. Sua obra póstuma, Giudizio Universale, que levou doze anos para escrever, descreve imagináveis entrevistas de pessoas ilustres com o Criador. No fim de sua vida, por fim, colocou toda a humanidade no Paraíso.
Todo o imaginário medieval em Dante e o moderno em Papini, são um relato na alta poesia e na reflexão teológica do que podemos ler a partir do discurso escatológico de Jesus (Mt, 24, Mc 13, Lc, 21).
Jesus indica: depois de muitas tribulações, “quem perseverar até o fim, esse será salvo. E esta boa notícia do Reino será proclamada no mundo inteiro, como testemunho para todas as nações. Então virá o fim” (Mt 24, 13-14). Quando será? “Ninguém sabe a respeito desse dia e hora, nem os anjos no céu, nem o Filho, mas somente o Pai” (Mt 24,36). Este trecho do ensinamento de Jesus, aparentemente isolado, se liga diretamente aos escritos apocalípticos da tradição judaica. Muitos viam ali um fim próximo (a grande crise do segundo século), outros a queda de Jerusalém do ano 62. Mas a lição vai mais longe, pela história afora, como se vê na parábola do servo fiel e prudente (Mt,24, 45-50; Lc 12, 41-48). Ou na parábola das cinco virgens sem juízo e das cinco prudentes (Mt. 25, 1-13). Um dia...
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Dando um salto para nossos dias, me permito uma alegoria. Imaginemos que o Vale de Josafá esteja ali, na esplanada dos Ministérios. O trono do cordeiro estaria certamente de costas para o Congresso, olhando lá no fim a rodoviária, para onde chegam e partem sem parar multidões apressadas.
As autoridades, pelo momento ainda têm foro privilegiado e se alinham, compenetradas, no começo da fila, cônscias de sua importância. Temer com sua patética coorte, Eunício de Oliveira e seus senadores, Rodrigo Maia e seus deputados. Um precedente histórico, desta vez farsesco: a fila de votação no impeachment de Dilma, um dos momentos mais baixos de nossa política. O que sobraria desse juízo? Bastante pouco: uma minoria de alguns senadores e deputados. Temer, tentando sobreviver, morto-vivo, encolhido entre seus assustados conselheiros: Moreira Franco e Eliseu Padilha.
Alguns poderiam pensar que o julgamento passaria então para o judiciário, do ávido Moro ao STF. Mas estes também serão julgados e devem entrar na fila como os outros. Alguns deles bem atrás, togas amarrotadas, para punição de seus egos.
Porém saiamos desta ópera bufa e voltemos para a grande história.
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O mundo moderno introduziu uma variante decisiva. Na Inglaterra, foi surgindo um novo espaço de julgamento. Vinha lá da Carta Magna de 1215, que limitou o poder de João Sem Terra, passou pela degola de um rei (Carlos I), cresceu com a longa insanidade de outro (Jorge III) e aos poucos, um novo cenário vai se delineando: o parlamento inglês. No começo estava circunscrito aos nobres e a gentry. Com o trauma da Revolução francesa (outro rei guilhotinado), chegamos lentamente ao sufrágio universal e à votação feminina. Os caminhos da história são enviesados. Passam pelo Leviatã de Hobbes e pela centralidade da propriedade em Locke.
0 voto será um grande instrumento de julgamento, que Deus transmitiu à humanidade. Ele transferiu a terrível responsabilidade aos cidadãos. Houve resistência pelo ancien regime. As autoridades religiosas, o papa à frente, temiam perder poder. Pio IX, em seu Syllabus, fulminou essas ideias novas como diabólicas.
Essa liberdade e, ao mesmo tempo, obrigatoriedade de decisão, chama-se democracia. Em diferentes mensagens de Natal Pio XII, a partir de 1942, finalmente foi acolhendo aos poucos essa democracia. Muitos falarão de oportunismo histórico, com a vitória próxima dos aliados. Os condicionamentos que fazem avançar a história, nem sempre são non sancte.
Democracia implica em responsabilidade e num cenário de justiça e de igualdade. Nada mais distante do neoliberalismo concentrador. Francisco indicou recentemente: “Se o lucro permanece como fim, a democracia tende a tornar-se uma plutocracia, em que crescem as desigualdades e também a exploração do planeta.”
Betinho, num texto memorável, que escreveu por minha instigação, declarou:
“...meu olhar e minha atenção estão concentrados sobre a sociedade. Por isso, para mim, mais importante que o Estado é a sociedade, mais importante que qualquer governo é a Ação da Cidadania. Esse hoje é o meu credo. Entre o presidente e o cidadão, fico com o cidadão... Não quero o Estado no planalto, mas na planície. Não quero o presidente, mas o cidadão... Quem decide o nosso futuro somos nós a cada dia, hora, minuto de uma ação política contínua que não se esgota.... Apesar de não acreditar que eu vá viver muito [morreu exatamente três anos depois], o fato é que atuo como se a vida não terminasse numa eleição. Para mim, a eleição é importante, mas a história não estará sendo construída pelo Estado... Creio em cidadania e por isso minha noção de tempo é diferente” (Herbert José de Souza, Opção pela sociedade, Jornal do Brasil, 18 de agosto de 1994).
No mesmo dia escrevi: “Estou em sintonia total com teu artigo... assinaria embaixo sem hesitação... ‘Opção pela sociedade’ tua frase é perfeita...Teu velho companheiro de geração e de sonhos, que te quer muito bem”.
Hoje temos este instrumento: pelo voto podemos eleger nossos representantes, tentando melhorar um parlamento capenga. Cada eleição é de certa maneira um juízo particular. E seremos julgados pelas nossas escolhas.
Mas democracia não se esgota numa eleição. O direito de escolha é permanente, numa democracia participativa exigente.
No sétimo dia Deus se afastou da História e a entregou – terrível fardo – a cada um de nós.
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"Que Diós nos pille confesados" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU