01 Junho 2018
"No jornalismo, existe uma máxima que quase sempre a verdade está no que não é dito ou escrito. Está nas entrelinhas e no silêncio. E nisso o congresso de Maceió foi pródigo. Escancarou que o judiciário tem lado. E este lado não é o do povo ou da soberania popular", escreve José Maschio, jornalista, em artigo publicado por Jornalistas Livres, 31-05-2108.
Anunciado como o maior evento da magistratura brasileira, o XXIII Congresso Brasileiro de Magistrados, que aconteceu no final de semana na bela Maceió (AL), serviu para mostrar a verdadeira face do Judiciário Nacional. E tem uma cara feia, o Judiciário. Enquanto busca maior protagonismo político na esfera nacional, revela uma inaptidão natural e histórica para um mínimo de democracia interna.
Essa cara feia do Judiciário precisa ser explicitada. Nas falas de autoridades e ministros convidados, as palavras humanismo, transparência e liberdade de expressão foram quase um mantra. Um mantra repetido inúmeras vezes, mas abandonado na prática.
A começar pela principal temática do Congresso, repetida à exaustão: a politização do Judiciário ou a Judicialização da Política? Um tema que poderia esclarecer a que o Judiciário brasileiro se destina.
Mas cada juiz da primeira instância que participou do evento deve ter saído apenas com o ponto de interrogação da equação. Não respondida claramente nem pela organização do congresso, nem pelos palestrantes.A tão propalada transparência deixou de existir em situações práticas. Como a da ministra Carmem Lúcia, presidente do STF (Supremo Tribunal Federal), que permitiu à imprensa apenas cinco minutos de imagens da sua fala. Falou por trinta minutos com a imprensa censurada.
Não falou nada além de elogios aos nobres juízes presentes, mas impôs a censura pela empáfia de um histórico de verticalização do Judiciário, onde poucos falam e muitos apenas ouvem.
Ou pela indisposição do presidente da AMB (Associação dos Magistrados Brasileiros), Jayme de Oliveira, em conceder entrevista à publicação Terra Sem Males. Sua assessoria, procurada nos três dias do evento, tinha sempre uma desculpa. E a equação judicialização ou politização não foi esclarecida.
A começar pelos políticos convidados. Senadora Ana Amélia (PP- RS). Ela mesma, que conclamou os gaúchos a atacarem a caravana do ex-presidente Lula, quando ainda não preso, em visita ao Rio Grande do Sul. A conservadora Ana Amélia, não por acaso, é autora de uma PEC (Projeto de Emenda Constitucional) que propõe alteração na indicação de ministros ao STF. Convidada de honra acabou por dar "bolo" no congresso.
Outro convidado, o presidente da Câmara Federal, Rodrigo Maia (DEM-RJ), usou o congresso para proselitismo político. E foi interessante notar que Maia nem mesmo se deu ao trabalho de assistir palestra de sua "aliada", nas palavras do presidente da AMB, Jayme Oliveira.
A palestra era da juíza Renata Gil, vice-presidente da AMB, que mostrava a situação de conflagração social no Rio de Janeiro. Graças ao crime organizado e das milícias (notadamente de PMs). A milícia é um Esquadrão da Morte moderno, com ares de empreendedorismo tão ao gosto dos liberais.
Além deles outro convidado, Ronaldo Cunha Lima (deputado alagoano), mostrou o viés político partidário do congresso da AMB. Cunha é de Alagoas (interessante chamar alguém da casa) e mais: é a única peça no tabuleiro eleitoral alagoano que pode fazer PSDB, PP e DEM evitarem a reeleição de Renan Filho (MDB) ao governo.
Em um Judiciário em que os membros da Suprema Corte são tratados como heróis, a mídia tinha mesmo que ser cortejada. No painel A Mídia e o Judiciário, as emissoras Record e Rede TV foram homenageadas. Coube ao presidente da Rede TV, Amilcare Dallevo Júnior, uma das comparações mais emblemáticas do evento.
Essa comparação, não se sabe com ironia, sarcasmo ou por ele acreditar mesmo nisso foi reveladora. Dallevo Júnior enumerou quatro pontos em comum entre Judiciário e Mídia livre (o livre é nas palavras dele): independência, transparência, credibilidade e imparcialidade.
O presidente da Rede TV ressuscitou um mito, o da imparcialidade da imprensa, que nenhum aluno de jornalismo ou Comunicações, ainda na sua fase caloura, acredita mais. Quanto aos três outros itens, basta buscar nas pesquisas de opinião, obra da própria mídia, para saber o que pensa a população sobre Judiciário e Mídia.
E os magistrados que foram Congresso, o que pensam?
Em um congresso realmente grande, “cerca” de mil e trezentos juízes presentes, na informação nada precisa da Assessoria de Imprensa da AMB, seria interessante saber o que pensam os presentes. Homens e mulheres que enfrentam “a verdadeira pedreira da magistratura”, nas palavras do bajulador ministro Marco Aurélio Mello. Nada disseram. Não tinham voz.
Coube ao congressista presente o papel de ouvinte. Nos painéis, os palestrantes palestravam, os ouvintes ouviam e aplaudiam, especialmente quando o crescimento da participação da mulher na magistratura era mencionado. E os palestrantes, em busca do aplauso fácil, sempre mencionavam. Vale lembrar que 37,3% dos cargos da magistratura nacional são ocupados por mulheres.
Sem vez e sem voz, cabia auscultar e perscrutar o que pensavam juízas e juízes dos vários rincões do país na morna e molhada Maceió. Em um Judiciário cada vez mais disposto a ter participação política efetiva, seriam politizados os juízes? Em meio ao burburinho dos cafés ou águas de coco (cortesia da Sococo, uma das patrocinadas do evento) era possível perceber.
E perceber uma triste realidade. Em nível de politização, nossas juízas e juízes, notadamente de primeira instância, nada devem aos caminhoneiros autônomos que exercem o democrático direito de greve a pedir intervenção militar. Apesar de estarem, os magistrados, no topo da pirâmide social brasileira.
Como aquela juíza do sul, a se indignar com o acampamento Marisa Letícia, em Curitiba. Organizado pelo movimento Lula Livre, de petistas e lulistas em apoio ao ex-presidente preso. Segundo ela, os militantes levam crianças em passeatas de quilômetros, em uma afronta à dignidade humana.
Ou daquele magistrado baiano, que insistia que o Exército devia ser instado "a trabalhar", seja na construção de ferrovias ou na repressão aos caminhoneiros que impedem que o combustível possa chegar aos aeroportos.
Isso talvez explique os aplausos ao economista Eduardo Giannetti da Fonseca no painel Visão do Momento Econômico. Giannetti, em um malabarismo próprio dos tucanos, conseguiu a proeza de elogiar os caminhoneiros pela greve e o presidente da Petrobras, Pedro Parente, responsável pela greve com seus constantes aumentos para atender aos acionistas. Tudo isso em uma única frase.
Uma juíza ao saber de que as recepcionistas, contratadas para dar leveza e beleza ao Congresso, ganhavam uma diária de R$ 85, 00 reais por mais de dez horas de trabalho, saiu-se com um comentário bem típico da cultura escravocrata vigente: “Tadinhas delas”. Nenhuma preocupação outra que não o jantar de sábado, já que o do dia anterior tinha sido “muito fraquinho, pobre”.
Talvez e só talvez, a postura da juíza do centro-oeste brasileiro explique por que juízes, salvo exceções, não se rebelam contra a falta de democracia interna, em que um juiz de primeira instância, por exemplo, não pode votar na eleição do presidente do TJ (Tribunal de Justiça) do seu Estado.
Essa verticalização do Judiciário, que impõe o institucional e o espírito de corpo acima de tudo, leva a situações extremas. Juízes e juízas ouvidos consideram natural a organização buscar patrocinadores para o evento. Mesmo que sejam eles, os patrocinadores, motivos de demandas judiciais que eles, os juízes, terão que decidir.Uma dos maiores patrocinadores do congresso, a Qualicorp, administradora de planos de saúde, trabalha com planos campeões de reclamações na Justiça, como a Sul América, Bradesco Saúde, Golden Cross, Salutar, Promed e Unimed.
A participação das empresas privadas, notadamente aquelas com demandas judiciais, além da efetiva presença do governo federal no patrocínio (via Itaipu, Caixa Econômica Federal e Petrobrás) do evento aponta outro problema. A violação do princípio de independência judicial.
Essa violação foi objeto de denúncia, no último abril, pela JUSDH, Articulação Justiça e Direitos Humanos, na ONU. A JUSDH denunciou exatamente essa influência de empresas no Judiciário brasileiro.
A frase do ministro Humberto Martins, vice-presidente do STJ (Superior Tribunal de Justiça), na conferência de encerramento sintetiza o distanciamento que existe entre o Judiciário militante, político e a realidade nacional. “A sociedade acredita no Judiciário brasileiro”. Martins, na sua eloquência nordestina, só esqueceu de uma coisa: consultar o povo brasileiro.
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A cara feia do Judiciário - Instituto Humanitas Unisinos - IHU