09 Mai 2018
Na célebre obra O 18 Brumário de Luís Bonaparte, Karl Marx observa que os grandes acontecimentos históricos costumam ocorrer duas vezes, a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa. Ao menos em parte, o historiador Luiz Antonio Dias, professor da PUC de São Paulo, confia na validade do vaticínio, embora considere certas farsas piores do que as tragédias originais.
Em 2013, durante uma entrevista a CartaCapital, Dias apresentou em primeira mão os resultados de um desmitificador estudo sobre o período pré-1964. Com base em pesquisas feitas pelo Ibope às vésperas do golpe, mas não divulgadas à época, demonstrou que o presidente deposto João Goulart não apenas tinha amplo apoio popular como grandes chances de vencer caso disputasse as eleições presidenciais previstas para 1965. A versão consagrada pela mídia, de um líder fraco e divorciado da opinião pública, não parava em pé.
A entrevista é de Rodrigo Martins, publicada por CartaCapital, 09-05-2018.
Para o historiador, não há como ignorar as semelhanças com a atual conjuntura. Após o impeachment de Dilma Rousseff, baseado no pretexto das “pedaladas fiscais”, o favorito nas eleições deste ano está impedido de concorrer. Mesmo preso, condenado sem provas, Lula segue na liderança das intenções de voto e bate qualquer adversário no segundo turno.
Se em 1964 não havia como esconder a natureza do golpe, em 2016 a mídia tratou de lhe conferir um verniz de legalidade. Dias acredita, porém, que a narrativa farsesca está em xeque e uma das provas seria a manutenção do capital eleitoral de Lula, mesmo após toda a ofensiva judicial e midiática contra o petista. “Por isso o incômodo com os cursos sobre o golpe que pipocaram em todo o País e no exterior”, emenda o historiador, que participou da criação de um desses programas na Faculdade de Ciências Sociais da PUC.
Por que a historiografia consagrou por tanto tempo a visão de Jango como um presidente sem apoio popular?
Dois fatores ajudam a explicar. Em primeiro lugar, essas pesquisas pré-1964 não foram divulgadas à época. Permaneceram desconhecidas até o Ibope doá-las, em 2003, para o Arquivo Edgard Leuenroth, da Unicamp. Anos depois, ao me debruçar sobre os documentos, verifiquei que Jango tinha elevados índices de aprovação e grandes chances de vencer as eleições presidenciais previstas para 1965. Havia uma dúvida se ele poderia ou não se candidatar.
A reeleição era vetada, mas ele não havia sido eleito presidente, e sim vice de Jânio Quadros. Sem as pesquisas, prevaleceu a visão da mídia. À exceção do Última Hora de Samuel Wainer, todos os jornais de expressão nacional apoiaram o golpe.
Que visão era essa?
A mídia apresentava Jango como um líder fraco e sem base popular. De fato, ele não tinha a mesma habilidade de Getúlio Vargas, seu padrinho político, e chegou ao poder pelas circunstâncias do período. Jânio Quadros elegeu-se presidente em coligação liderada pela UDN, ao passo que Goulart venceu a disputa para vice pelo PTB. Eram partidos rivais. Após a renúncia de Quadros, tornou-se refém daqueles que impuseram um regime parlamentarista.
As pesquisas do Ibope desmontam, porém, a tese de que era impopular. Uma das sondagens, contratada pela Federação do Comércio de São Paulo, consultou 500 eleitores na capital paulista de 20 a 30 de março de 1964. Jango era aprovado por 72% dos entrevistados. Um levantamento nacional, sem indicação do contratante e realizado entre 9 e 26 de março, demonstrou forte anuência da população a medidas de seu governo. Nas oito capitais pesquisadas (3,4 mil entrevistas), a maioria considerava necessária a reforma agrária. O apoio variava de 61%, em Curitiba, a 82% no Rio de Janeiro.
Por que essas pesquisas demoraram tanto para vir a público?
Algumas delas talvez não tenham sido divulgadas à época por falta de tempo para tabular os resultados. O golpe ocorreu dias após o trabalho de campo. Sou tentado a acreditar, contudo, que levaram quatro décadas para vir a público por contrariar interesses dos contratantes e da mídia. Entrei em contato com representantes da Fecomércio, mas eles disseram não guardar documentos do período.
Em que medida o componente eleitoral contribuiu para o golpe?
O golpe é o resultado de um processo iniciado em 1961, quando a direita não aceitou a posse de Jango. No ano seguinte, houve forte articulação para viabilizar candidaturas de oposição ao governo Goulart nas eleições legislativas, inclusive com financiamento estrangeiro, fato denunciado pelo então deputado Plínio de Arruda Sampaio. Em 1963, por meio de plebiscito, Jango conseguiu derrubar o regime parlamentarista que lhe foi imposto como condição para assumir o governo. Surgem, então, as articulações pelo seu impeachment. No horizonte, despontava a ameaça de Jango disputar e vencer as eleições de 1965. Os militares entram nesse momento.
Jango tinha chances de vencer o pleito?
Era o favorito. Naquele mesmo levantamento nacional do Ibope, Juscelino Kubitschek figurava na liderança da corrida presidencial apenas quando Goulart não era listado como candidato. Quando se abria essa possibilidade, o cenário era outro. Das oito capitais percorridas pelo Ibope em março de 1964, Jango só tinha um porcentual de intenções de voto inferior ao de JK em Fortaleza e Belo Horizonte. Em todas as outras, liderava.
O senhor vê semelhanças entre esse período e o atual?
A história nunca se repete, ao menos não tal e qual foi no passado. Há, porém, semelhanças entre os dois golpes. Ainda em 2014, houve forte articulação da elite com de setores da mídia para evitar a reeleição de Dilma Rousseff. Uma semana antes da votação no segundo turno, a revista Veja estampou Lula e Dilma na sua capa associados ao escândalo da Petrobras. “Eles sabiam de tudo”, dizia a manchete. Era uma informação falsa, logo contestada. Uma vez reeleita, Dilma perdeu o controle de sua base. O Congresso atuou para desestabilizar seu governo, até aprovar um impeachment sem base legal, inspirado no pretexto das “pedaladas fiscais”.
Com a exceção de CartaCapital, a mídia tradicional apoiou o golpe, e depois atuou para legitimar os processos contra Lula. O ex-presidente era o favorito nas eleições deste ano. Para os promotores do golpe, não faria sentido todo o esforço para destituir Dilma se o PT voltasse ao poder. Ao menos em parte, os governos petistas retardaram o avanço da agenda neoliberal, além de promoverem a inclusão de uma parcela da sociedade com suas políticas redistributivas.
O vaticínio de Marx sobre a repetição de eventos históricos tem validade na atual conjuntura?
Talvez, mas às vezes a farsa é pior do que a tragédia. Em 1964, não dava para camuflar a natureza do golpe. Os militares tomaram o poder e instituíram, com o apoio de setores da sociedade civil, uma ditadura que perdurou 21 anos. Hoje, há um esforço para conferir um verniz de legalidade ao golpe.
Recentemente, Otavio Frias Filho, diretor de redação da Folha de S.Paulo, publicou um curioso texto para criticar os cursos universitários sobre o golpe de 2016 e defender a licitude do impeachment. Ele reconhece que os antecessores de Dilma também praticaram pedaladas, mas diz que as dela “foram em escala ao menos dez vezes maior” (nota da redação: na verdade, Dilma atuou com excessivo rigor fiscal, como demonstrou o economista Luiz Gonzaga Belluzzo em depoimento no Congresso. Para Belluzzo, foi o oposto: uma “despedalada”).
Até onde eu saiba, não importa se você rouba um banco ou um relógio, o crime é o mesmo. Devo estar errado (risos). A questão é que a narrativa do golpe está avançando mais rapidamente e de forma mais intensa, por isso o incômodo com os cursos sobre o golpe que pipocaram em todo o País e no exterior.
A manutenção do capital eleitoral de Lula é um sintoma disso?
Sem dúvida. Em janeiro, Lula figurava com 37% das intenções de voto no Datafolha. Em abril, após a sua prisão, seguia na liderança com 31%. Como a margem de erro das duas pesquisas é de dois pontos porcentuais, a oscilação foi pequena. No segundo turno, o ex-presidente continua a bater qualquer adversário. A Folha de S.Paulo preferiu, porém, estampar na manchete: “Preso, Lula perde votos; sem ele, Marina sobe e alcança Bolsonaro”. Percebe a jogada? É preciso limar o petista, mas também o Bolsonaro, um direitista radical que também não contempla os anseios da elite.
Alguma aposta sobre o resultado das eleições?
Tenho dificuldade de lançar previsões sobre o futuro, estou acostumado a analisar o passado. Arrisco-me a dizer, porém, que a prisão de Lula não é o último capítulo do golpe. Se não emplacarem um candidato alinhado com a agenda neoliberal e mais palatável do que o Bolsonaro, não me surpreenderia com outra virada de mesa.
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"A história nunca se repete, mas há semelhanças entre 1964 e 2016". Entrevista com Luiz Antonio Dias - Instituto Humanitas Unisinos - IHU