07 Mai 2018
“Maio de 68 foi o espasmo brilhante que testemunhou o esgotamento das energias utópicas das revoluções do século passado e abriu um caminho para a imaginação, não para novas revoluções”, escreve Tarso Genro, ex-governador do Rio Grande do Sul – PT – em artigo publicado por Sul21, 07-05-2018.
Aos dezoito anos, em 1965, li um pequeno volume publicado pela Zahar em 1964, titulado “Três Táticas Marxistas”, de Stanley Moore. Ali descobri uma simplificação teórica sedutora, não só a respeito das intricadas questões da teoria marxista como súmula da revolução – simplificação que me acompanharia por um largo tempo de vida militante – mas também que me ajudaria na movimentação, nem sempre cordial, dos debates filosóficos da esquerda pensante.
O autor apontava como as ”três táticas” (na verdade seria melhor dizer três estratégias para o socialismo), as que se apoiavam nas teses marxianas da tendência à “miséria crescente” que desgastaria a legitimidade do sistema capitalista, levando-o a sua derrocada, as que se fundamentavam na disputa dos “sistemas concorrentes” entre o capitalismo e a suposta superioridade do socialismo soviético, e a terceira “tática”, que concebia – dada a eterna “crise final” do sistema do capital – o transcrescimento de uma “revolução permanente”, que acabaria, por saltos, em definitivo com a sociedade opressora.
Lembrei-me deste livro e da segurança emocional – traduzida em empáfia juvenil – que me causou a sua leitura, porque ele se ligou ao choque cultural e político que me causou – alguns anos depois- a revolução de Maio de 68, que agora completa 50 anos. Quando aquele movimento cresceu tentei enquadrar o que chamávamos de “nova revolução proletária em andamento”, numa das hipóteses táticas analisadas por Moore. Era uma vã tentativa de classificar a força demolidora dos fatos em andamento, principalmente em Paris, na tese da “revolução permanente”, ou na disputa entre os “sistemas concorrentes”, ou ainda num derradeiro apelo à emergência da “miséria crescente”.
Meu objetivo era, a partir da opção por uma das táticas, sustentar que se erguia no horizonte a luz da nova revolução mundial, já prevista, desta feita num país capitalista de proa, depois da gloriosa exceção da Petrogrado de Lenin e Trotsky. O “Quartier Latin” traria o verdadeiro marxismo “às falas”, afinal ali estavam Sartre e Simone de Beauvoir misturados ao legado de Politzer e da Resistência comunista à ocupação nazista. A revolução faria as pazes com a civilização na sua ponta mais avançada, como queria Marx.
Para o meu desespero epistemológico, todavia, nenhuma das teses “táticas” conseguia enquadrar o que ocorria naquele maio insano para a burguesia francesa e, no mínimo libertário e anarco-democrático, para juventude francesa e depois mundial. A movimentação não vinha do revolucionarismo “permanente”, cuja eficácia exigiria a força de uma vanguarda proletária, que dirigisse e operasse a estabilidade de um novo poder ditatorial de classe, nos moldes trotskistas, que inclusive mais tarde militarizaria os sindicatos; a suposta “revolução” também não estava se dando pelo confronto dos dois sistemas que “concorriam”, pois França renascia da ocupação nazi, com um estranho vigor capitalista, que começava a dar saúde, viço e estudos, para aquela juventude revolucionária supostamente ingrata com o General De Gaulle.
Era uma revolução que tinha como uma das suas consignas “é proibido proibir”, em que os proletários ficavam estáticos – na sua amplíssima maioria – dentro das fábricas, aguardando a linha dos seus sindicatos – indiferentes aos convites dos jovens para fazerem a revolução -; uma revolução na qual a revolta mirava mais os vetustos professores e o conservadorismo da classe média francesa, atravessada pela solidariedade com a revolução vietnamita, mas que dizia – ao mesmo tempo – “faça amor, não a guerra”. Esta revolução poderia ser tudo, mas não poderia ser propriamente enquadrada como uma revolução “soviética”, pois nesta – em qualquer hipótese das três táticas – o assalto ao poder deveria ser comandado pelo o Partido e a classe básica – esteio do novo poder – seria o proletariado fabril, não o generoso e politicamente viril, estudantado maoista e anarquista.
Maio de 68, todavia, foi o apogeu e a crise da ideia da revolução, nos moldes soviéticos. A URSS tentava, neste período – de forma artificial – ao mesmo tempo que preservar o stalinismo como uma “crua necessidade”, libertar-se dele, preparando timidamente as condições para recuperar a democracia soviética, utopia de curta duração, fulminada pelas urgências da Guerra Civil. No entanto, o fuzilamento das melhores cabeças do Partido pela Polícia de Stalin, a instauração do partido único durante um longo tempo, o sacrifício do povo trabalhador na produção, para enfrentar a besta nazista, proporcionou que a Revolução Russa salvasse o mundo do nazismo, mas o fez com a perda – nas brumas da sua história – do seu sentido impossível. Maio de 68, portanto, foi o espasmo brilhante que testemunhou o esgotamento das energias utópicas das revoluções do século passado e abriu um caminho para a imaginação, não para novas revoluções.
Gravo muitos nomes de Maio, mas quatro deles mantenho na retina da memória: De Gaulle, majestoso e autoritário, falando em nome da suposta salvação da nação burguesa contra a ideia do caos, ensejada por todas as revoluções; Daniel Cohn-Bendit, revolvendo a memória do anarquismo, para extrair dele algo que apontasse para a um novo poder estudantil-proletário, inalcançável e etéreo, como formulação revolucionária; André Malraux, antigo revolucionário chamando a ordem a se movimentar, em nome da “paz” social e da cultura; e, como efeito reflexo – dois anos depois – lembro-me da foto de Jean Paul Sarte, vendendo nas esquinas de Paris, o jornal proibido da extrema-esquerda proletária, “La Cause du Peuple”.
Em maio de 1970, este jornal maoísta tinha cassada a sua circulação, por Decreto do Ministro do Interior Raymund Marcellin, e seus diretores foram presos. Quando Sartre assumiu a direção do jornal, em solidariedade aos militantes e jornalistas que dirigiam aquela iniciativa de resistência, De Gaulle é perguntado numa entrevista, se também Sarte “seria preso”, ao que o velho General respondeu: “on ne met pas Voltaire en prison”. Estas são as minhas memórias de Maio de 68, o ano que a revolução morreu. E também renasceu, com outros horizontes, cuja definição pode estar, simbolicamente, tanto na ousadia de Sartre vendendo o “Cause de Peuple”, como na respeitosa resposta de Gaulle – reverente à cultura democrática da nação – afirmando que um país minimamente sério não põe Voltaire na cadeia.
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Maio e a ideia da Revolução - Instituto Humanitas Unisinos - IHU