06 Abril 2018
Emilce Cuda é teóloga argentina, professora da Universidade Católica da Argentina e do Boston College. Amiga de Bergoglio, admite que “Francisco é um animal político (...) que representa milhões de pessoas no mundo”. Mas esclarece: “O Papa não fala de política; o Papa fala do Evangelho”.
A entrevista é de José Manuel Vidal, publicada por Religión Digital, 02-04-2018. A tradução é de André Langer.
Você veio a Valência para uma conferência. De modo que não veio para passar férias aqui.
Faz muitos anos que não tiro férias. Mas estou muito feliz por estar em Valência. Fui tratada muito bem. Participei de uma conferência em um fórum sobre o cristianismo, de cristãos que estão há 30 anos pensando sobre os problemas do mundo contemporâneo. Foi muito interessante compartilhar com essas pessoas – estavam reunidas cerca de 600 pessoas – e falar um pouco sobre a Teologia do Povo.
600 pessoas?
Sim, foi um sucesso.
Ou seja, a teologia ainda segue despertando interesse, mesmo nessa Espanha secularizada?
Pelo menos para essas pessoas. E penso que muito, porque hoje é muito difícil reunir em uma conferência mais de vinte pessoas, mesmo que tenhamos a estrela de rock da teologia ou da filosofia. Assim que, seiscentas pessoas é um número significativo. E todos estavam muito atentos e muito interessados na realidade latino-americana, que é, de algum modo, o contexto da teologia que o Papa Francisco promove.
Você compartilhou um painel com a Teresa Forcades.
Sim, me encontrei com ela pela primeira vez.
O que achou?
Uma mulher muito enérgica, muito inteligente, muito amável e muito querida pelo grupo de pessoas que aí estava. Todo mundo a respeita muito. Na América Latina, não a conhecemos. Eu a conheci quando fui convidada para este fórum e soube que iria compartilhar a mesa com ela; houve duas atividades na conferência que eu dei, em que houve depois um debate que fizemos juntas. Foi muito interessante porque eram duas perspectivas diferentes, sempre defendendo a visão do Evangelho, de como discernir a realidade. Mas também de duas posições diferentes, sempre católicas, mas em contextos diferentes. Traduzir uma cultura para outra é a coisa mais difícil; é fácil traduzir uma língua, mas uma cultura...
Sim, isso é mais difícil porque, além disso, sua especialidade é a teologia política e, embora não seja sua especialidade teológica, ela se lançou na arena política; portanto, ela tem experiência, embora limitada, porque não durou muito tempo. Como compaginaram essas duas visões: a sua, mais teórica, e a dela?
Bem, a minha perspectiva não é tão teórica porque, precisamente, uma particularidade que a teologia tem na América Latina, na filosofia e entre os intelectuais latino-americanos, é que trabalham no território, como dizemos. Nós não somos ratos de laboratório que estão apenas no campo da ciência, dentro das universidades. Estamos constantemente em contato com as pessoas porque trabalhamos no campo político, evidentemente, mas estamos sempre em contato com os sindicatos, no caso da Argentina, ou com as comunidades de base, no caso dos outros países latino-americanos.
Mas, no seu caso, sem participar diretamente da ação política: você não está em um partido.
Não, não.
Porque esse é o caso de Forcades.
É diferente. Parece-me que tinha que ser uma surpresa ter uma freira na política e, sobretudo – como a vi nos vídeos no Youtube –, com seu hábito. Parece-me que é uma imagem muito forte no que acreditamos ser, ainda, uma sociedade secular, porque, na minha visão, está perdendo essas características.
Vamos ao seu tema, que é um pouco a geopolítica, o Papa, a Argentina, tudo isso. Francisco é um animal político? É possível defini-lo dessa maneira?
Francisco é um animal político e todos somos animais políticos, porque a política, como disse Aristóteles, tem a ver com a palavra pública, e todas as pessoas têm uma palavra. Se não temos palavra, disse Aristóteles, somos deuses ou animais. Ou seja, somos todos sujeitos políticos. Outra coisa é se nos permitem fazer política, se permitem que nossas palavras sejam ouvidas, audíveis. Visível no espaço público.
O Papa é um sujeito político, assim como todos os seres humanos, e ele é um sujeito político forte; uma pessoa que toma decisões. Mas, além disso, é um sujeito político relevante pela autoridade que tem. É uma pessoa que hoje representa milhões de pessoas no mundo. Você sabe que na política sua palavra conta a partir dos votos que você representa. Neste caso, não estamos falando de votos; estamos falando de opinião pública. E outra coisa: um líder mundial, como o Papa está se tornando por seu discurso, seguido e apoiado por milhões de pessoas no mundo, automaticamente torna-se um sujeito político. Independentemente de se ele quer se colocar nesse lugar ou não.
Por que ainda há relutância na esfera católica à intervenção mais diretamente política do Papa? Por que não é diretamente política? Por que transcende a política? Por que ele fala de princípios, sem descer à arena?
O Papa não fala de política. O Papa fala do Evangelho e faz um discernimento baseado nos princípios evangélicos da realidade. Não parte de princípios universais e abstratos, para depois descer à realidade e corrigi-la de acordo com esses princípios. O Papa olha a realidade e tenta discernir e interpretá-la com base nos princípios evangélicos, e é isso que ele quer que todos nós façamos. Quando vai à realidade e vê o sofrimento causado pelo tráfico de pessoas, pelo trabalho escravo, pelos migrantes, pelas revoluções, pelas guerras, pela ameaça iminente que temos de paz, pela ameaça ecológica, ele intervém. Discerne sobre isso, chama à paz, à união na diferença.
Essa intervenção pode ser lida do ponto de vista secular como uma intervenção política, mas, na realidade, é a tarefa que todos os cristãos deveriam assumir, que, dogmaticamente, são colaboradores de Deus na criação. Nós cuidamos da obra de Deus, que é o mundo, e temos o direito de manifestar a nossa opinião quando vemos que sua obra está em perigo: o ser humano, a natureza, a terra. Essa é uma função de um cristão em missão, como o Papa disse, de uma Igreja em saída. Ele está promovendo uma Igreja em saída e criticando o intimismo religioso.
A tendência de privatizar o catolicismo, que somente a um cristão, a um islâmico ou a um judeu seja permitido ser religioso, recolher-se em um canto, com incenso em cada mão... isso não incomoda ninguém. Mas se uma pessoa qualquer que professa uma religião, a partir de seus princípios de crença sai, toma a palavra e denuncia, isso já incomoda. Então, qual é o critério? Isso não é religião; isso é política.
E é verdade que isso não é religião, mas é teológico porque, o que se confunde é o campo da religião com o campo da teologia. A religião é uma regra, uma relação. Mas há também um trabalho teológico, que é uma interpretação dos fundamentos da fé na política, que nem sempre são cristãos. O capitalismo, como dizia Walter Benjamin, também é uma religião: tem seus deuses, sua ideia de homem e seus princípios. E também tem um culto. As pessoas vão ao shopping center.
Certa vez vi um teólogo da libertação na Unisinos, uma importante universidade brasileira, em um congresso sobre a Teologia da Libertação, fazer algo maravilhoso; ele comparou a religião da modernidade com a religião cristã. Equiparou um shopping center a uma catedral. E eu via como o shopping substituiu a catedral; tinha as vitrines, as imagens, o comportamento das pessoas entrando, os rituais.
Então, há um comportamento religioso em todos os sistemas. Agora, a posição teológica é outra, é justamente ver quais são as crenças que dão sustentação a um sistema que, em alguns casos, acreditamos que é bom e em outros não.
Podemos rotular o Papa? Obviamente, o Papa se manifesta, como você disse, a partir da religião, mas incide na vida real e na política partindo da realidade. Todas as suas mensagens vão numa determinada direção e algumas pessoas o taxam de marxista, outras de populista. Mas é verdade que se conecta mais com o mundo, digamos mais aberto, mais em saída e mais progressista... Para rotular. Ou não podemos rotular o Papa, além de não dever fazê-lo?
Esclareço que não sou nem intérprete do Papa nem seu porta-voz. Eu pretendo dar a minha opinião como teóloga e como cristã. E como argentina, tendo sido formada no mesmo contexto. Eu penso que no século XXI, nem mesmo na política podemos rotular. Há muitos filósofos e teóricos da política que agora dizem que as categorias esquerda e direita já não fazem mais sentido.
Agora dizem: você acredita em Deus? – só para dar um exemplo e chegar ao tema da política. Se alguém diz sim, a que está respondendo? Porque a pergunta por Deus, ‘que imagem tem em sua cabeça?’: se tem a imagem de um Deus perverso, que defende pedófilos, quando eu digo sim, me aprisiona nisso. E com esquerda, direita e populismo acontece a mesma coisa. Diz-se que o Papa é populista; bom, seria preciso perguntar primeiro pelo que você entende por populismo.
Há muitas pregações sobre o populismo. Para alguns é corrupção, discurso demagógico, atender às demandas simplesmente com vistas a acessar o poder... É uma definição de populismo e não podemos dizer que não seja isso, porque, quem pode dar definições?
Seguindo a lógica do Papa, a do discernimento, não podemos defini-lo; o que podemos fazer é explicá-lo.
Mas todos nós temos a tendência de definir e rotular, porque isso nos dá segurança; isso torna o nosso caminho mais fácil. E é isso que está acontecendo com o Papa, e penso que muito.
Não acredito.
Para concluir o tema do populismo: pode-se entender por populismo o que acabei de dizer, mas também o meu caso: eu me formei com Ernesto Laclau – filósofo argentino – e ele estudou muito esse tema. Acho que é um dos que mais desenvolveu esse tema pensando em qual é a lógica daquilo que chamam, de maneira pejorativa, populismo, mas que poderíamos chamar democracia participativa.
Então, qual é a lógica desse populismo? O que eu entendo pela palavra populismo? Bem, é justamente ir à realidade, tomar como unidade de análise política a demanda popular, que é a necessidade, e ver como satisfazê-la. E a maneira correta é reconhecer essa demanda e transformá-la em um direito: fazer da necessidade um direito. Um partido político, ou um movimento que parte da realidade, ouve-a, procura satisfazer a demanda popular, a demanda da necessidade. É isso que na América Latina entendemos por populismo; aquilo que se rotula como progressista, de esquerda...
E essa seria a tendência do Papa?
Na minha opinião, essa é a tendência do Papa. Por exemplo, nos últimos discursos que fez na América Latina, ele insistiu: “Ouçam, não fiquem o tempo todo falando”.
Há uma diferença entre falar, que é nomear, definir, determinar... e ouvir. E a partir do ouvir, tratar de entender e solucionar mais que definir. A posição do Papa é esta última: ouvir a demanda popular. Mas, para isso, é preciso ouvir em vez de dizer por que; do contrário, colocamos a ideia acima da realidade. E o Papa diz que a realidade está acima da ideia.
A ideia é o que tenho na cabeça, e com esse imaginário defino o que é democracia, o que é populismo. Mas colocar-se no lugar do falar é colocar-se no lugar do poder, e o Papa permanentemente chama para ouvir. Além disso, a introdução do último livro sobre as homilias de Bergoglio, que Antonio Spadaro acaba de publicar em espanhol, é maravilhosa porque, em vez de uma introdução, ele fez uma entrevista com o Papa. E embora Spadaro diga: “Eu não vou interferir, como outros fazem, selecionando fragmentos do que Bergoglio disse, mas vou apresentar todas as homilias desde a época em que Francisco ainda era Bergoglio”, há, sim, uma tendência a interpretar quando se coloca como prólogo uma entrevista. O livro chama-se Em sus ojos mi palabra (Nos seus olhos está a minha palavra). O que isso significa? Bem, quando Bergoglio parava para falar com o povo, não foi com uma ideia preparada, para incuti-la na cabeça das pessoas como deveria ser a realidade. Ele diz: “Eu ia e parava na frente dessas pessoas, olhava para elas, e em seus olhos eu encontrava a palavra; eram elas que me davam a palavra”.
E note que ele não disse “eu as ouvia”, mas “olhava para elas”. Se voltarmos ao começo desta entrevista, quando você me pergunta sobre política, eu disse: “a política é palavra pública”. E quem está em necessidade e na miséria, não tem palavra pública. Então, seu dizer não está em uma palavra falada, mas em outra linguagem: a dos gestos, do olhar, das músicas e em sua arte popular; é preciso ouvir e olhar outra linguagem.
Inclusive dá um passo a mais, além dos gestos, que consiste em implicar-se no concreto: em Cuba, na Colômbia, na Síria... Na minha opinião, há uma mudança na geopolítica do Vaticano que o levou a se envolver nas coisas concretas.
Sim. E acho isso fantástico. Eu penso que é o que um cristão precisa fazer: ser sal da terra, fermento na massa. Estar no meio. Mas quero marcar essa diferença: não é ir para o meio do povo ou imiscuir-se nos problemas internacionais com uma ideia preconcebida, para tentar ordenar as coisas de acordo com a minha ideia. Porque há muitos que se imiscuem, os Estados Unidos por exemplo.
A questão é: quando eu me imiscuo, a partir de onde eu faço isso? Eu posso ouvir a realidade do outro para tentar aliviar seu sofrimento, independentemente do mérito, porque estamos em uma sociedade na qual o direito parece um prêmio ou um mérito previamente realizado. O que o Papa está dizendo é que as coisas não funcionam assim, que para atender à necessidade do outro, o outro não precisa ter nenhum mérito; sua única dignidade de pessoa é suficiente para ser ouvido e o seu sofrimento possa ser satisfeito.
O modo de o Papa intervir na política internacional não é o modo de intervenção da conquista. É ouvir e atender, independentemente do discurso da direita ou da esquerda: como posso trazer paz a esse povo? Como podemos nos sentar e conversar?
É muito interessante quando ele fala com os bispos em Lima. Não estou tão interessada na parte do discurso – que, certamente, foi muito interessante –, mas nas respostas às perguntas que se seguiram. E uma das perguntas que lhe fizeram foi sobre a política. E aí Francisco se entusiasma. Eu convido as pessoas para entrarem na página do Vaticano, no ponto 1h26 do vídeo do discurso, onde encontrarão sua definição de política: disse que é “negociação”. E nessa negociação temos que ver, ouvir, balancear... Parece-me que no plano internacional, essa posição do Papa é nova; é a Igreja que toma partido.
Isso o levou a tornar-se um líder com autoridade moral consolidada em todas as partes do mundo. Mesma nas mais remotas.
Sem dúvida, é o que chamamos em filosofia de “auctoritas”. É uma palavra que tem autoridade moral. E é curioso porque ele a tem dentro e fora do catolicismo. Inclusive dentro e fora do cristianismo. Se quisermos usar as categorias tradicionais, há muitos líderes de esquerda – que não se autodenominam de crentes – agnósticos ou ateus que, no entanto, estão apoiando Francisco. E há muitas pessoas dentro do catolicismo que criticam Francisco. Isso é interessante porque a autoridade do Papa hoje é uma autoridade que vai além da obediência religiosa. É uma autoridade que tem a ver com sua palavra como sujeito, como alguém que também faz parte da nossa comunidade.
Como você vê a relação do Papa, que parece que também está mudando, com a China?
Eu penso que – não sei, porque não falo com o Papa – há uma boa disposição por parte do Vaticano, há um apoio. A situação é complicada. Um grupo de teólogos está indo agora para a China para um encontro de 24 pesquisadores, em nível internacional, para falar da teologia latino-americana. E essa é uma maneira de abrir portas. O que quero dizer é que não há resistência.
Mas caminha-se rumo a uma normalização.
Aparentemente sim. O fato de que a universidade nos chame, é um sinal.
A relação com Putin e Trump é mais complicada para Francisco?
Eu penso que para Francisco não há nada que seja complicado. Penso que ele sempre está pensando no povo. E essa é a diferença. Se não fizer ‘barulho’...
Às vezes nos perguntamos por que o Papa vai a Cuba e fala sobre essa coisa e não outra. Ou porque vai para a Bolívia e não menciona determinada coisa. Porque vai para o México e não... A novidade do Papa é que não toma partido por uma das partes, mas, politicamente, em cada caso, tenta encontrar soluções. Eu não poderia associá-lo nem a Trump, nem a Putin. Penso que está sempre olhando para o povo e a necessidade em cada caso, independentemente de seus líderes.
Ele continua sonhando com a Pátria Grande?
Sim. Ele diz isso.
Em que sentido seria, para ele, uma Pátria Grande? Uma Confederação da América Latina? Como isso se daria na prática?
O princípio da unidade na diferença. Eu esclareço que isso não é algo que este Papa inventa; é a fórmula trinitária. É o fundamento que nós, cristãos, acreditamos que todas as instituições na terra devem ter. A chamada união sem confusão. Porque existe outro tipo de união, que é a união totalitária, onde se perdem todas as identidades; se não há identidades, todos passamos a ser iguais, mas não há diferenças.
A união na diferença é uma união sem confusão. Cada qual segue mantendo sua identidade, mas caminham juntos para o mesmo objetivo. O problema é quando essas diferenças são acentuadas demais, quando se acaba lutando por uma identidade particular e, finalmente, perde-se o rumo, porque se dilui a verdadeira frente da luta, que é o bem comum do povo e a felicidade de todas as pessoas. Como conseguir que cada qual possa manter sua identidade e caminhar juntos para um bem comum, mas que ao mesmo tempo não se converta em uma luta até a morte em defesa de identidades particulares; porque isso não acrescenta nada ao conjunto.
Podemos aplicar isso à Espanha no contexto atual.
Não posso falar muito sobre a Espanha porque estou aqui há apenas alguns dias. Não poderia dar uma opinião sobre isso. Mas, isso sim, me chamou a atenção a diferença de idiomas. Você sabe que na América Latina fala-se o espanhol em todos os países, exceto no Brasil, e mesmo assim nos entendemos. A América Latina tem um problema: que não se fala idiomas. É inclusive raro encontrar estudantes universitários que falem duas ou três línguas.
Na Espanha acontece a mesma coisa.
Mas no resto da Europa isso não acontece. Eu tenho trabalhado na Noruega e um trabalhador, que veio de algum país do leste, falava tranquilamente quatro ou cinco línguas. A necessidade, a mobilidade, o cruzamento de fronteiras leva-os a falar outras línguas porque, do contrário, não conseguem sobreviver até o dia seguinte.
Na América Latina, como todos falamos a mesma língua, o espanhol, e entendemos o português, nos entendemos. Estamos falando de um continente inteiro. Quando venho à Espanha e participo de uma reunião, vejo que alguns falam valenciano, outros catalão, outros basco... sim, isso me chama a atenção, porque eu venho de um continente que praticamente fala duas línguas similares. É muito estranho. Pense em como construir a partir disso um país se cada um fala um idioma diferente. “Não será Babel?...”. Bem, percebi que não, que é muito saudável cuidar da particularidade de cada cultura e ao mesmo tempo entender que são parte do conjunto.
É o mosaico; o poliedro de que fala o Papa. Mas sem quebrá-lo, porque se você o joga e o quebra...
Desconheço as razões de cada uma das partes, motivo pelo qual não vou emitir uma opinião, porque não estou em condições de fazer isso.
Mas na América Latina, sim: o que eu estava perguntando é como a Pátria Grande toma forma na mentalidade do Papa.
A Pátria Grande na América Latina é um projeto que também não anularia as diferenças particulares, porque não estamos falando em fazer um único país. Tivemos alguns organismos internacionais, que continuam a existir, mas que estão muito fragilizados. A ideia era chegar a essa visão de uma Pátria Grande que tinha a ver com a integração de certas coisas.
Algo como a União Europeia?
Pelo que se pensou até alguns anos atrás, sim. E integrar não apenas o comércio. Há uma coisa muito interessante, que é a legislação trabalhista. Não se deve integrar e abrir as portas apenas para o comércio; você também precisa ter a capacidade de socializar a conquista de direitos. Por exemplo: o Brasil e a Argentina têm um código de direito trabalhista onde existe a possibilidade de fazer convênios coletivos, para que o sindicalismo faça sentido. Mas o resto da região não tem isso; o convênio coletivo não é reconhecido e as manifestações ou as reivindicações dos trabalhadores são rapidamente criminalizadas com a prisão ou com a demissão.
Fazer uma Pátria Grande não implica ter uma única bandeira e um nome; implica poder atravessar fronteiras para fazer migrar essas habilidades, obter uma unificação daquelas conquistas que foram boas em alguns países e que podem ser transferidas para outros, como a unidade em relação ao direito trabalhista. Eu digo isso porque sempre se pensa no comércio. E não é só o comércio.
Ou os modelos de educação; a Argentina tem um sistema de educação que vai completar 100 anos, em que a educação pública é gratuita: ninguém precisa pagar para estudar em uma universidade pública argentina. Isso é uma luta, uma conquista e um modelo que pode ser exportado para outros países. Assim como o Brasil terá outras, muitas e importantes, para transferir para a Argentina, o Chile, a Bolívia, os povos originários... O Papa, quando falou com os povos indígenas, disse: devemos ouvi-los; eles têm um projeto, um modo de organização, uma alternativa: ouçamos.
Há propostas. A ideia de uma Pátria Grande, pelo menos naquilo que se ouve de quem está trabalhando para isso, tem a ver não com a liquefação das identidades, mas com a transferência de conquistas.
O Papa está muito preocupado com a guerra; ele fala continuamente sobre a guerra em capítulos. E, ultimamente, fala muito sobre a possibilidade de uma guerra nuclear. Você acha que ele está preocupado porque acredita que algo assim realmente poderia acontecer?
Eu não sei que informações o Papa tem. Mas ele está preocupado com a paz. É um tema central em seu discurso; entender a paz e o que isso significa.
Diante da ameaça, por exemplo, de distúrbios nas sociedades em conflito, as pessoas dizem: “é melhor que os militares estejam nas ruas”. As pessoas confundem, às vezes, a tranquilidade e a segurança com a paz social. Elas preferem uma paz augusta, uma paz que se mantém sob a mira de uma pistola e assegure a integridade física. E a paz é mais do que isso; ela tem a ver com a paz social e a justiça social: não haverá conflito quando as desigualdades puderem ser niveladas.
A paz, no discurso do Papa, deve ser medida a partir de muitos lugares. Não apenas no modo de guerra, que não sabemos o que será porque podemos falar da guerra de trincheiras na Primeira Guerra Mundial, da total na Segunda Guerra Mundial, da guerra de focos na Guerra Fria... Pois não sabemos qual será a manifestação de uma III ou IV Guerra Mundial. O monstro das 10 cabeças – como diz o mito grego – sempre aparece de uma maneira nova. Mas, entender que, para prevenir essa guerra, a primeira coisa que devemos procurar é a paz social, porque é aí que o nível da conflitividade social pode ser reduzido.
Quando as pessoas que se encontram na necessidade absoluta saem às ruas isso é visto como um crime, alguém mão dura, colocamos mais polícia, o Exército (como no Rio de Janeiro). As pessoas estão pensando em uma guerra nuclear que pode eclodir ou não, mas há uma ameaça iminente de que eu saia à rua, ou qualquer um dos meus filhos, e leve um tiro na cabeça porque alguém está totalmente fora de controle por causa do consumo de drogas. E o que eu faço com esse drogado? Eu mato ele? Eu o tranco em uma cadeia, ou gero trabalho e abro fontes para que as pessoas necessitadas não precisem recorrer aos circuitos da droga para levar o pão para casa? Se eu puder ter trabalho, todos esses problemas vão se resolvendo. Portanto, a paz é muito mais do que impedir um ataque nuclear; é garantir a justiça social.
Você acompanhou a viagem do Papa ao Chile?
Sim.
“Pinchó”? [Fracassou?]
O que isso significa?
Se fracassou?
Temos que ver que canto ouvimos. Eu diria que não devemos ouvir o suave canto das sereias. Com os jesuítas, aprendi que o mal existe, que a tentação é permanente e que alguém cai em tentação porque o mal se traveste de bem. E o canto das sereias é a música da imprensa. O canto da mídia hegemônica que propõe a agenda do debate.
E um relato hegemônico.
Mas, acima de tudo, o debate; eles põem na agenda o problema da pedofilia no Chile, de que o Papa está acobertando um bispo que por sua vez acoberta... São todas suposições. Não havia provas, de acordo com a Igreja. Mas, para além desse problema concreto, que é um problema que atrai e que é grave, além disso, se houve (não quero que se pense que estou fazendo a defesa [da pedofilia], porque me parece algo repugnante), gostaria de destacar que com essa manobra procurou-se anular, invisibilizar e desviar 99% do discurso que o Papa fez nesses países. Todos falavam da questão dos abusos, mas ninguém ecoava os discursos proferidos por Francisco aos povos originários ou o que ele disse aos bispos.
O problema com essas questões é que elas são iscas: cantos de sereias que nos distraem e todo o nosso foco permanece nesse problema e, enquanto isso, todo o resto fica apagado.
Você quer dizer que a grande mídia, no Chile e em outros lugares, silencia o que não lhe interessa – o mais substancial, o essencial do Papa – e joga essas iscas para que a opinião pública se distraia?
Dizer o essencial é muito. Eu acredito que se toma partido. Seria ingenuidade pensar que alguém é totalmente neutro. Nem mesmo eu. Os meios de comunicação são funcionais a um setor ou outro e selecionam os fatos que confirmam sua posição e suas hipóteses. Se eu, como meio de comunicação, seleciono o discurso que Francisco fez aos povos originários e o torno público, coloco as pessoas contra a minha posição política. Não posso deixar de cobrir a visita do Papa, porque, são técnicas de marketing, em um evento dessas proporções obrigo a imprensa a fazer a minha cobertura. A imprensa não pode evitá-lo, mas pode selecionar, fragmentar o que foi dito para que se ajuste aos seus interesses.
Falemos da Argentina, que é sua pátria. Para quando é a tão desejada viagem do Papa? Por que você acredita que ele não está dando o passo? Parece que não está em condições, dizem alguns...
Eu não sei, mas acho que talvez quebre uma regra: a de que os argentinos são narcisistas e egocêntricos.
O que não é verdade, certo?
Claro que não (risos).
Em vez de pensar que não vai à Argentina porque tem problemas políticos, ou porque não quer tirar uma foto com o atual presidente Mauricio Macri, ou porque apoia Cristina... por que não pensar que tem outras prioridades? Por que não pensar que há outros lugares no mundo que hoje precisam de uma visita com mais urgência do que a Argentina?
Eu imagino que a agenda do Papa está bastante apertada. Eu não acho que ele tenha cinco minutos sobrando. Eu penso que tem prioridades.
Não sei as razões que fazem com que Peru, Chile, Bolívia e Cuba tenham sido mais prioritários para o Papa do que a Argentina, mas acredito que se foi a esses países, e não à Argentina, não foi por causa de uma briga visceral com os candidatos políticos argentinos, mas por uma prioridade a nível internacional.
A Argentina é muito agressiva com o Papa. Durante a viagem do Papa ao Chile, a mídia que se opõe a uma política mais progressista, fez uma cobertura que beirava o desrespeito.
Os bispos argentinos inclusive chegaram a se queixar.
Foi uma falta de respeito, o que a política não deve perder. Pode-se discutir argumentos e sentar em uma mesa para defender seus princípios e atacar os argumentos do outro, mas não a pessoa. Na verdade, a mídia argentina foi desrespeitosa. E diria o mesmo se tivessem dito isso de qualquer outro líder religioso.
Isso afeta as pessoas? Porque uma coisa é a elite política, midiática, e outra coisa é o povo. Francisco seria bem recebido em sua terra natal?
Sem dúvida. Ele é absolutamente amado pelo povo, e não apenas pelos cristãos. Mas essa técnica de criminalizar o adversário é muito típica dos setores conservadores. Hannah Arendt dizia: “A violência começa quando a palavra termina”. Isso acontece em casais quando um dos dois – geralmente é o homem e por isso temos tantas agressões de gênero – com suas palavras não consegue vencer o debate e começam os ataques. É um modo que fala de uma impotência para lidar com a situação.
Os meios de comunicação e os jornalistas que chegaram ao ponto de atacar pessoalmente o Papa não estão falando mal do Papa, mas de sua própria impotência e de sua própria incapacidade para se movimentar no campo da palavra e da política e de tratar um adversário como tal. Parece-me que foi uma atitude de baixíssima qualidade por parte daqueles que o atacaram.
Você acredita que as reformas do Papa na frente interna e o que projeta na frente externa são irreversíveis? Pode haver um recuo nessa dinâmica reformista?
Como saber. A história é um processo em que se avança e se retrocede não sei quantos passos. Haverá mudanças? Sim, haverá. Quantas dessas mudanças permanecerão após Francisco? Alguns dizem 30%. Laclau dizia que depois de uma década de governos populares na América Latina, inevitavelmente viria uma direita agressiva e que se perderia 70% das conquistas. Mas que cerca de 30%, necessariamente, permaneceriam.
É o que está acontecendo agora mesmo.
Sim. E também dizia que o caminho era a batalha cultural; esses 30% fazem uma resistência ao nível da cultura, o que é muito. Acredito que com Francisco, como com qualquer outro processo, se o medirmos em termos políticos, pode acontecer a mesma coisa. Obviamente, isso pode mudar, mas nunca absolutamente: algo vai permanecer. E o interessante sobre esse Papa é que esse algo não vai ser apenas entre os fiéis; este Papa vai entrar para a história porque sua mudança será na cultura dentro e fora do cristianismo.
O papel das mulheres está indo muito devagar em suas reivindicações com o Papa Francisco: dar maior protagonismo, dignificar o papel da mulher na Igreja?
É uma questão complicada porque, às vezes, pedem ao Papa coisas como se ele fosse um monarca absoluto. E a Igreja, como instituição, não é uma monarquia absoluta.
Teoricamente, sim.
Eu sempre procuro fazer uma diferença entre a Igreja como corpo místico, formado por todos os fiéis, e a Igreja como uma instituição a mais do mundo civil. E como toda instituição, tem sua forma de governo; há coisas que podem ser mudadas e outras não. Há coisas que para mudá-las, é preciso convocar um concílio. Embora não seja o caso para o que está me propondo. Mas quero dizer que se pedem muitas mudanças ao Papa e não é tão fácil. No plano político, a mesma coisa acontece em torno da Igreja.
No caso das mulheres, eu entendo que mulheres foram chamadas para trabalhar em dicastérios no Vaticano, algo que não acontecia antes. Até mesmo uma estilista foi levada para reuniões no Dicastério da Cultura.
Ontem, Donatella Versace se apresentou em Roma.
Pode-se dizer que este não é o espaço para as mulheres que queremos. Também não queremos que as mulheres sejam uma questão de cotas.
Bem, por aí se começou civilmente. Por que não também eclesiasticamente?
Eu acredito que é uma mudança lenta, e, além disso, é uma coisa que tem a ver com tudo na sociedade.
Mas a Igreja teria que dar um exemplo, certo?, também nisso. É uma instituição exemplar que diz aos demais como se comportar, e aí me dá a sensação de que falha.
Temos muito a contribuir. Não creio que o Papa seja contra as mulheres. Talvez seja cuidadoso com movimentos extremos. Na América Latina, todos os movimentos políticos em defesa dos direitos são associados à chamada ideologia de gênero. Existe uma mistura muito grande. A Igreja, daqui a pouco, terá que abrir a porta. É inevitável por várias razões: primeiro, porque, se falamos de unidade na diferença, as mulheres têm muito a contribuir.
E vou lhe dizer mais: no século XXI, a política está mudando; assim como não se pode mais falar de esquerda e direita, também estamos caminhando para outro modo de linguagem, que é a linguagem simbólica. O povo fala essa língua sem palavras. E para fazer política hoje, no século XXI, devemos ouvir a linguagem do povo, que é simbólica. E esta linguagem é a linguagem das mulheres. Pensemos no que eram os oráculos; o que eram as sibilas? Eram mulheres que faziam discursos incompreensíveis e depois precisavam de um homem, que era o sacerdote, para interpretá-las. Agora, o que isso significa? Que a mulher não sabe o que diz? A resposta é que ela lida com uma linguagem simbólica.
Neste século, com a presença do que chamam de populismo, as mulheres são mais capazes que os homens para decodificar a linguagem simbólica. Então, parece-me que é necessário que a Igreja tenha mulheres, mas não apenas por uma questão de cotas, mas porque as mulheres podem ter outra sintonia em relação, por exemplo, à demanda social. Parece que hoje precisa haver mulheres por uma questão de cotas. Isso por um lado.
Por outro lado, na América Latina, e eu penso que no mundo, há um problema muito forte, que é a agressão: os golpes, as mortes, os crimes, os assassinatos... Por uma questão de empatia, a Igreja vai ter que colocar priorizar mais o reconhecimento da mulher, porque essa questão é muito séria; muitas mulheres estão morrendo diariamente. No mês de janeiro, atearam fogo em uma estudante da universidade. Foi o marido, na frente de seus filhos. Ele a queimou viva porque não queria que ela fosse à universidade. Esse é o ponto de gravidade.
A questão de dar espaço às mulheres é importante por muitas razões e isso vai além da ideologia de gênero. Estou colocando casos que vão além do que possam pensar a esquerda e a direita. Estamos falando de vidas.
Na América Latina, muitas mulheres, na base, dentro da Igreja, fazem um trabalho muito grande. Eu diria: bom, e acima? O fato é que acima não estão em lugar nenhum, nem na Igreja, nem nas empresas.
Mas menos na Igreja do que nas empresas. Mesmo nos partidos, onde, pelo menos, as cotas são cumpridas.
Para terminar: com o que está se ocupando agora? Tem algum projeto? Está trabalhando em algum livro?
Ainda está bastante em alta o último livro que escrevi, intitulado Para ler Francisco. Teologia, ética e política (Ed. Manantial, 2016).
Sim, nós o publicamos.
E agora estou trabalhando justamente neste tema: o populismo e a Teologia do Povo. Parece-me interessante poder dar uma explicação sobre o populismo que venha da teologia. E que se vejam as semelhanças que há entre isso que se chama de populismo, mas que é uma maneira de fazer política a partir dos movimentos sociais, e que na Argentina foi muito forte, e o que surge como Teologia do Povo. Ambos estão relacionados, porque a Igreja trabalhou muito com os sindicatos nos anos 70. Penso que pode ser uma boa contribuição e espero terminá-lo logo.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
“Francisco sempre está pensando no povo”. Entrevista com Emilce Cuda - Instituto Humanitas Unisinos - IHU