26 Janeiro 2018
"Quando o Papa erra devemos ficar quietos? As críticas fortalecem mesmo os conservadores? E o compromisso dos cristãos com as vítimas? Deve ser relativo?", questiona Mauro Lopes, editor do blog Caminho pra Casa, em artigo publicado por OutrasPalavras, 22-01-2018.
Escrevi uma avaliação crítica da viagem de três dias do Papa Francisco ao Chile (Viagem de Francisco ao Chile: decepção e fiasco) que sofreu severas censuras de amigos e amigas, críticas diretas e indiretas de alguns teólogos e um silêncio com tom de reprovação de muita gente progressista dentro da Igreja. Senti-me estimulado a continuar no assunto, por acreditar que há, aqui, uma questão-chave para pensar o cristianismo hoje e sob o pontificado de Bergoglio.
As críticas à crítica foram basicamente de três ordens: 1) o artigo baseou-se em notícias falsas (“fake news”); 2) as fontes das notícias não eram confiáveis (“inimigos” do Papa); 3) e, a que me pareceu a mais constante e relevante: o artigo seria um desserviço ao pontificado de Francisco e fortaleceria os conservadores, os católicos e hierarcas que se opõem às reformas do Papa. Para esta última visão, deve ser evitada qualquer crítica a Francisco, pois ela teria o condão de enfraquecê-lo no embate com os restauracionistas.
As duas primeiras acusações (“fake News” e “fontes não confiáveis”) parecem-me desprovidas de base. Os dois vaticanistas citados (vaticanistas são jornalistas que moram em Roma e acompanham o dia a dia dos papas), Elisabetta Piqué (do La Nación) e Andrea Tornielli (do Vatican Insider) são próximos do Papa e abertamente apoiam Francisco –ambos escreveram livros onde não escondem seu entusiasmo[1]. Além deles, as principais fontes do artigo são o site católico espanhol Religión Digital, o maior site católico progressista em língua espanhola e que lidera uma campanha mundial de apoio ao Papa, além do site do Instituto Humanitas Unisinos, o IHU Online, dos jesuítas brasileiros, o principal portal católico progressista do país. Não são interessadas em plantar “fake news” contra Francisco ou não confiáveis.
A última crítica é a que merece uma avaliação mais serena e um pouco mais aprofundada. Não se trata de uma visão teológica, mas política, uma maneira de enxergar a relação com o Papa à luz do embate de poder com os conservadores no interior da Igreja.
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Para enfrentá-la, vale a pena antes de tudo, ver, voltar os olhos para o contexto e os principais fatos da viagem.
O Papa Francisco decidiu –sim, foi uma decisão dele- viajar ao Chile sabendo que visitaria uma Igreja em profunda crise. Os dados do Latinobarómetro divulgados pouco antes de sua viagem são incisivos: no Chile o Papa tem a pior avaliação em toda a América Latina, recebe uma nota de 5,3 contra a média de 6,8 e muito longe do Paraguai (8,3) e Brasil (8), as notas mais altas. Em toda a região, é no Chile onde há maior desconfiança em relação á Igreja Católica: apenas 36% dizem confiar na instituição, o pior resultado latino-americano, contra a média de 65% na região.
Os dados foram divulgados às vésperas da viagem, mas a realidade era e é plenamente conhecida por Francisco: de combativa e ao lado dos chilenos, a Igreja local, depois da avassaladora intervenção de João Paulo II nos anos 1980, tornou-se apoiadora de uma das ditaduras mais sanguinárias do continente, a de Pinochet, afastou-se do povo, alinhou-se aos ricos, tornou-se profundamente clericalizada e por fim, esmerou-se por décadas em encobrir sacerdotes abusadores e pedófilos. O Chile foi um dos países onde o modelo de Igreja Wojtyla/Ratzinger foi implementado com mais inteireza –e, se depois dos dois papados, a Igreja em todo o mundo estava imersa em grave crise, no pequeno país a situação é de um desastre lastimável.
A Igreja chilena ainda respira o clima inquisitorial dos tempos de João Paulo II e Bento XVI. Os sacerdotes vinculados à teologia latino-americana continuam a ser perseguidos tenazmente. Um dos principais teólogos do país, o jesuíta Jorge Costadoat, foi proibido de continuar a ensinar na Universidade Católica do Chile, onde lecionou por mais de 20 anos, pelo arcebispo de Santiago, dom Ricardo Ezzati, em pleno papado de Francisco –em 2015, o que levou a protestos e abaixo-assinados que chegaram a Roma.
Esta é a Igreja que Francisco decidiu visitar, com plena consciência de tudo o que lá aconteceu e acontece. O que esperavam aqueles que o admiram e apoiam? Uma chacoalhada no status quo eclesial local, um posicionamento ao estilo de seus seguidos reptos à Cúria romana, do qual o exemplo mais vigoroso é o discurso de Natal de 2015, onde listou o “catálogo” das “doenças curiais”.
Não houve nada disso no Chile. O Papa manteve seu tom pastoral, apontando para uma Igreja em saída, defendeu os pobres, condenou o clericalismo, esteve com os mapuche, reuniu-se com algumas vítimas de abusos do clero local… Mas os chilenos, com justa razão, queriam mais. Não tiveram.
O resultado foi o que se viu. Protestos, frieza, ausências.
A presença na missas campais foi muito abaixo das expectativas e das estruturas armadas para receber o povo, exceto pela da capital. A celebração na Base de Maquehue, em Temuco, teve uma audiência de cerca de 200 mil pessoas – metade do número inicialmente projetado; na de Campus Lobito não passaram de 50 mil pessoas, embora o lugar pudesse suportar 350 mil pessoas; no Encontro com os Jovens, realizado no Santuário de Maipú, e diante do panorama vivido em Temuco, os bispos chilenos apressaram-se a estender o convite a pessoas de todas as idades, sem sucesso.
Os mapuches frustraram-se quando o Papa limitou-se a falar em paz e reconciliação e não deu uma palavra firme pela devolução das terras que lhes foram brutalmente arrancadas ao longo a história deste povo vítima um verdadeiro genocídio pelo Estado chileno.
Houve até mesmo repressão policial durante a visita, sem que o Papa ou a Igreja tivessem protestado. A Marcha dos Pobres, com 250 pessoas, convocada por movimentos sociais e que pretendia ir até a missa campal de terça-feira em Santiago, foi dissolvida violentamente pela polícia, que prendeu mais de 20 pessoas. O episódio ecoa tristemente a repressão brutal que sofreu outra manifestação com 250 sem teto durante a visita de João Paulo II ao país, em 1987. Na ocasião, morreu um jovem de 26 anos, Patricio Juica. A repressão atingiu os fiéis que participavam da missa, ferindo 600 pessoas. A Conferência dos Bispos Chilenos, já controlada pelos conservadores, emitiu uma nota culpando os manifestantes e afirmando que os policiais eram vítimas.
Mas a grande decepção com a viagem foi o comportamento do Papa em relação ao tema que é uma ferida aberta na relação do povo chileno com a Igreja local: os casos de abuso sexual e pedofilia perpetrados por sacerdotes, em especial o caso que se tornou seu símbolo: o da dupla Karadima/Juan Barros.
O padre Fernando Karadima, de 87 anos, abusou sexualmente de mais de 75 crianças e jovens. Ligado à direita empresarial e política, foi afastado pela Igreja apenas em 2011, depois de anos de denúncias, respondidas com silêncio, apoio ao padre pela hierarquia local e seus colegas clérigos e condenações aos denunciantes. Ele, porém, continua como sacerdote e vive em situação de conforto em residências eclesiais.
Um de seus apoiadores foi o bispo Juan Barros. Ele era nada menos que o bispo castrense, chegando a ser investido como general de brigada do Exército (!) quando, em 2015, Francisco nomeou-o bispo de Osorno (no sul do país).
Houve protestos expressivos no Chile contra a nomeação, especialmente da comunidade de Osorno, mas eles foram ignorados por Roma.
Pois Barros esteve presente na missa campal no Parque O’Higgins, na última terça (16) e tratado com deferência por Francisco. O fato foi considerado um escândalo e um desrespeito às vítimas de abusos e abriu uma série de questionamentos ao Papa, sob o argumento de que suas palavras de solidariedade aos abusados e suas famílias não correspondem aos fatos e ações do Vaticano.
A comunidade de Osorno conseguiu entregar uma carta ao Papa através do presidente da Câmara dos Deputados, Fidel Espinoza, em que lhe pedem para reverter a nomeação episcopal de Barros -a situação da Igreja chilena é tão lamentável que a comunidade católica de Osorno precisou recorrer a um político para entregar a carta. Houve mais: as vítimas de Karadima não foram convidadas para o encontro do Papa com pessoas que sofreram abusos de sacerdotes.
O ponto culminante foi a inacreditável defesa que Francisco fez do bispo Barros, ao final da viagem afirmando que ele seria vítima de calúnias, exigindo que se apresentassem “provas” contra ele e chamando os fiéis de Osorno de “surdos” e “tontos” por exigirem a remoção de Barros.
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O tamanho do equívoco de Francisco pode ser medido pela reação daqueles que, sob perseguição da hierarquia chilena, apoiam-no cotidianamente no país.
O Conselho Editorial do site Reflexión y Liberación, respeitado internacionalmente, lamentou: “Todo esse episódio, sem dúvida, marcou e turvou a agenda da visita apostólica do Papa Francisco ao Chile”.
Em seu editorial, Reflexión y Liberación fez questão de publicar uma foto emblemática do envolvimento da hierarquia chilena com os casos de abuso –veja logo abaixo. Há quatro padres abençoando Karadima (ajoelhado) num dos salões da paróquia de El Bosque, onde foram cometidos os crimes pelo padre abusador. Todos os que abençoam foram, ao longo dos anos, nomeados bispos por João Paulo II e hoje são homens fortes da Igreja chilena. São eles (da esquerda para a direita): Horacio Valenzuela, Juan Barros, Andrés Arteaga e Tomislav Koljatic:
O sacerdote jesuíta e teólogo chileno Iván Navarro escreveu que o Papa “instalou novamente a distância e a frustração com sua acusação de calúnia às vítimas” e acrescentou: “Uma parte importante do país e de católicos nos sentimos ainda doloridos. Não concebemos um catolicismo autoritário, não dialogante, que faz defesas corporativas. Não nos representam bispos pouco transparentes e processos pouco claro. As vítimas novamente desacreditadas, uma diocese de Osorno dividida e a esperança de um Papa diferente notavelmente arranhada”.
Jorge Costadoat, o teólogo jesuíta mais perseguido pelos hierarcas no Chile e um apoiador de Francisco de primeira hora, sobre quem já escreveu dois livros, afirmou sua “frustração” e “perplexidade” e escreveu com tristeza: “a muitos sua visita nos deixou um sabor muito amargo”.
A comunidade de leigos da diocese de Osorno, que luta pelo afastamento do bispo Barros, divulgou um comunicado que se abre com um lamento doloroso: “O duro juízo que o Papa Francisco emitiu em Iquique causou desconcerto, frustração e dor em meio a uma comunidade já impactada pelos reiterados casos de abuso sexual e encobrimento dos crimes denunciados em todo o mundo”.
O jornalista católico Luis Badilla, que escapou da morte no Chile de Pinochet e vive há 42 anos na Itália, onde é editor do site Il Sismografo , afirmou que a postura do Papa foi um “erro” de tremendas repercussões e revelou já há notícias de que a ala conservadora da Igreja chilena, sentindo-se fortalecida pela postura de Francisco iniciou uma ofensiva “sobre aquela parte do mundo eclesial local, frágil, assustado e hesitante, que tenta reviver os destinos dessa Igreja tão sofrida e ferida, em crise e declínio há algumas décadas”.
O equivoco do Papa é tão flagrante que foi condenado até pelo cardeal de Boston, Sean O’Malley, coordenador da Pontifícia Comissão para a Tutela dos Menores, encarregada dos casos de abuso sexual na Igreja. Ele divulgou uma nota na qual reconhece: “É compreensível que as declarações do Papa Francisco… causaram muito sofrimento às vítimas de abuso sexual cometidos pelo clero ou qualquer outro criminoso”. Sobre a afirmação do Papa sobre pretensas calúnias e sua exigência de provas, Sean O’Malley foi taxativo: “Palavras que transmitem a mensagem de que ‘se você não consegue provar o que reivindica, ninguém vai acreditar em você’… relegam as vítimas a um exílio de descrença”. Não é à toa que o título da nota pública da comunidade de Osorno tenha sido: “O Papa não nos escutou, o cardeal O’Malley sim”.
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Agora, vale retornar à questão: as críticas a Francisco são um desserviço ao pontificado de Francisco e fortalecem os conservadores, os católicos e hierarcas que se opõem às reformas do Papa? Qualquer crítica ao Papa deve ser evitada qualquer, pois ela teria o condão de enfraquecê-lo no embate com os restauracionistas?
Esta visão é de caráter essencialmente político, e não teológico. Diz respeito à disputa de poder no interior da Igreja.
Por tratar-se de uma visão essencialmente política, creio que é pertinente uma analogia. Tomem-se duas das maiores referências da Igreja brasileira e latino-americana, Carlos Alberto Libânio Christo, o frei Betto (dominicano) e frei Leonardo Boff (franciscano). Ambos, nomes centrais na Teologia da Libertação, foram entusiasmados defensores da eleição de Lula (2003) e do governo do PT –na verdade, os dois estão implicados com a origem do partido que nasceu, em parte, no bojo da dinâmica da Igreja popular nos anos 1970/80. Estiveram e estão na linha de frente contra o golpe e apoiam a candidatura de Lula agora em 2018.
Ambos não se furtaram a críticas duras aos equívocos dos governos do PT (veja também aqui e aqui). “O partido cometeu um equívoco fatal: aceitou, sem mais, a opção de Lula pelo problemático presidencialismo de coalizão. Deixou de se articular com as bases, de formar politicamente seus membros e de suscitar novas lideranças” escreveu Boff. Frei Betto, que deixou sua posição no governo Lula em dezembro de 2004, foi rigoroso: “Trocamos um projeto de Brasil por um projeto de poder. Ganhar eleições se tornou mais importante que promover mudanças através da mobilização dos movimentos sociais. Iludidos, acatamos uma concepção burguesa de Estado, como se ele não pudesse ser uma ferramenta em mãos das forças populares, e merecesse sempre ser aparelhado pela elite.”
Eles foram traidores do PT?
Há duas questões aqui:
Será que de fato as críticas ao PT (ou, no caso, agora, ao Papa), fortalecem seus adversários? Os golpistas no Brasil ficaram fortes por causa de críticas pontuais aos governos Lula e Dilma ou porque houve um silêncio cúmplice às medidas que fortaleciam exatamente os segmentos reacionários ao longo dos anos. Criticar o massacre aos indígenas nos 13 anos do PT por acaso fortaleceu os fazendeiros ou o que os fortaleceu foi a aliança petista com eles? Criticar a nomeação de Joaquim Levy para a Fazenda enfraqueceu ou governo ou o apoio a ele fortaleceu os banqueiros e seus aliados? Na verdade, a história recente demonstra o contrário da tese de quem defende que não deve haver críticas. O golpe prosperou no Brasil pelo fortalecimento da direita no interior do aparelho de Estado e nas mídias de massa (fartamente patrocinadas pelos governos do PT) e não pela crítica a estes fatos. Veja-se o Chile: o Papa deixou o país e, depois de suas críticas às vítimas, a hierarquia chilena parte para o ataque contra os teólogos, leigos e comunidades que –elas sim- defendem uma Igreja em saída.
Qual o lugar dos cristãos? Um dos principais teólogos latino-americanos, Jon Sobrino (ele mesmo perseguido pela Cúria romana anos a fio) escreveu um belo livro[2] sobre aquela que é essência do cristianismo que tem como subtítulo: “Ensaio a partir das vítimas”. Jesus passou pela terra ao lado das “vítimas deste mundo” (p. 13), nunca seduzido pelas promessas e anúncios do Templo. O caso do Chile coloca a todo o cristão uma questão: ao lado de quem eles devem estar? Das vítimas ou de seus algozes? O fato de o Papa ter se posicionado neste caso ao lado dos algozes, numa viagem na qual se somaram erros sobre erros deve levar-nos a trair o compromisso crucial com as vítimas? A postura do cardeal O’Malley dá uma boa indicação de um caminho que se mantém nas pegadas do Mestre.
O risco que se corre, ao silenciar em situações como a vivida durante a passagem de Francisco pelo Chile, é aquele apontado por Sobrino: “Espero que não acabemos por nos perguntar ‘o que é feito das vítimas’”.
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[1] Elisabeta Piqué escreveu Papa Francisco, vida e revolução, São Paulo, Texto Editores, 2014. Andrea Tornielli escreveu Francisco – a vida e as ideias do papa latino-americano, São Paulo, Planeta, 2013, e Francisco, o nome de Deus é Misericórdia, uma longa entrevista com O Papa, lançado no Brasil pela Planeta, 2016.
[2] Sobrino, Jon. A fé em Jesus Cristo – Ensaio a partir das vítimas. 1ª ed. Petrópolis: Vozes. 2000. 512 p.
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O Papa deve ficar isento de críticas? O caso do Chile - Instituto Humanitas Unisinos - IHU