20 Dezembro 2017
Austen Ivereigh é certamente o maior conhecedor, em nível mundial, da biografia e da vida de Jorge Mario Bergoglio, que há cinco anos é pontífice da Igreja Católica com o nome de Francisco. Com ele falamos sobre o livro, recém publicado pela editora Jaca Book (Jorge Mario Bergoglio. Una biografia intelettuale), de outro grande autor e conhecedor de papa Francisco, o filósofo italiano Massimo Borghesi. Os dois autores enriquecem-se mutuamente: o primeiro apresentou de uma forma exaustiva a história do Papa Francisco, o segundo, seu pensamento. Entre as muitas críticas que são feitas ao Santo Padre, consta também a de não ter uma "preparação intelectual" suficiente para conduzir uma igreja com mais de um bilhão de fiéis. Falamos com o escritor e jornalista britânico, para quem o Papa Francisco "não é apenas um capítulo, ou um parêntese, na história em evolução da Igreja. É parte de uma mudança de era".
A entrevista é de Roberto Graziotto, publicada por Il Sussidiario, 14-12-2017. A tradução é de Luisa Rabolini.
Austen Ivereigh, é possível falar de um encontro "ideal" de sua biografia Tempo di misericordia. La vita di Jorge Mario Bergoglio e da biografia intelectual de Massimo Borghesi para aprofundar a figura do Papa Francisco?
O professor Borghesi gentilmente cita minha biografia muitas vezes e me contou que seu grande livro não teria sido possível sem o meu, o que é uma grande honra. O que ele quer dizer é que no livro The Great Reformer eu identifico o que tem principalmente influenciado a mentalidade e a formação de Jorge Mario Bergoglio, incluindo determinados pensadores. Mas eu não tinha nem o tempo nem o conhecimento para segui-los e desenvolvê-los. Isso é o que Borghesi é tão eminentemente qualificado para fazer, que eu posso pensar a poucos outros em melhor posição para tal propósito. Ele apresentou uma maravilhosa viagem no pensamento do nosso Papa: não apenas o que ele pensa, mas como pensa. Não há melhor maneira para compreender Francisco.
Que imagem do Papa é refutada ou contestada e por que, por outro lado, essa imagem é hoje tão forte?
Como Borghesi afirma no início do livro, é um mito comum entre muitos opositores do Papa que Francisco não seja de alguma forma um pensador sério ou importante, ao contrário do grande filósofo João Paulo II ou do magistral teólogo Bento XVI. Mesmo aqueles que admiram o papa muitas vezes falam dele como um pastor, um homem de sentimentos e fascínio ou mesmo um gênio estratégico, mas não de alguém cujas ideias devem necessariamente ser levadas a sério. Borghesi mostra o quão errado é esse ponto de vista. O fato de Francisco não ter um background acadêmico formal não tira o fato de que seja um pensador profundo e sistemático. Como explica o próprio Borghesi, a simplicidade das maneiras e da comunicação do Papa é uma simplicidade que vai além da complexidade. Ela pode ser tão direto apenas porque uma longa reflexão preparou as suas declarações.
Guzmán Carriquiry Lecour escreveu, a respeito do livro de Borghesi, que "este é um estudo muito importante que examina um aspecto essencial, muito negligenciado, para a compreensão do atual Pontífice: o da gênese e desenvolvimento de seu pensamento". O senhor compartilha essa opinião?
Eu concordo totalmente! - e o prefácio de Professor Carriquiry é muito interessante nesse sentido, porque ressalta as razões dessa negligência: não só a leitura equivocada que eu acabei de mencionar, e o desejo de Francisco de se comunicar diretamente e humanamente, mas porque as grandes influências sobre ele - como a da filósofa argentina Amelia Podetti e do visionário uruguaio Alberto Methol Ferré - são gigantes em seus países de origem, mas praticamente desconhecidas no exterior. Com exceção de alguns expoentes da Teologia da Libertação, os intelectuais católicos latino-americanos foram ignorados na América setentrional e na Europa. Não mais!
O senhor considera que Borghesi esteja certo ao enfatizar a importância da "dialética" leitura de Inácio (Gaston Fessard, K.-H. Krumbach) para entender a gênese do pensamento de Bergoglio?
No centro da exposição de Borghesi está o desenvolvimento do pensamento de "reconciliação" de Francisco, que nasce de uma tradição de pensamento católico em resposta à dialética hegeliana. Esse é o fio condutor, como descrito por Borghesi, que une o pensamento bergogliano, formando um "núcleo conceitual original". Ele realizou um excelente trabalho de arqueologia intelectual, removendo uma série de estratificações, mostrando que os jesuítas franceses da década de 1950 - em especial Gaston Fessard - foram cruciais no desenvolvimento deste pensamento. Os Exercícios Espirituais de Santo Inácio são naturalmente estruturados para manter o crente em uma tensão de oração entre as polaridades, ou seja, entre os polos que parecem puxar em direções contrárias. Basicamente esse é o tipo de pensamento ao qual nos incita a Encarnação: a reconciliação do que, sem o benefício da Graça, parece ser contraditório. Isso não se inicia com Inácio e não se limita aos jesuítas - na verdade, a obra de Bergoglio foi sobre a dialética de Romano Guardini - mas fica claro que ter aquele "SJ" após o seu nome predispõe a esse tipo de pensamento.
O Papa enviou a Borghesi algumas gravações em que ele responde a perguntas sobre a gênese de seu pensamento. Correspondem as respostas do Pontífice maduro ao que o senhor estudou da vida de Bergoglio? O que gostaria de dizer sobre isso?
As respostas dadas por Francisco me fascinaram porque mostram um novo lado do Papa; fizeram-me pensar em um idoso professor universitário que pacientemente respondia às perguntas curiosas de seu aluno brilhante, usando uma linguagem totalmente apropriada para um contexto intelectual. Francisco compartilha com Borghesi até mesmo o nome da tese em que trabalhou por quatro anos, uma teoria que conformou seu discernimento como líder da Igreja. "A oposição polar como estrutura do pensamento cotidiano e proclamação cristã" era o seu título provisório. Fiquei realmente animado em conhecer essa tese, porque eu sabia por minha própria pesquisa que Bergoglio é um pensador tanto complexo como prático; em outras palavras, o seu pensamento era projetado para ser aplicado ao serviço do Reino, um meio para um fim apostólico. Mas, enquanto eu percebia isso, e podia ver os resultados, chegou o livro de Borghesi para ajudar-me a entender aquele pensamento. E eu acho que foi realmente emocionante, como tropeçar em um tesouro no meio de um campo. Eu suspeito que a grande escavação de Borghesi levará a muitas outras descobertas menores.
Uma das acusações feitas ao Papa é de ser marxista. Pela leitura de Borghesi parece, ao contrário, que Francisco tenha feito sua uma leitura crítica do fenômeno político argentino que leva o nome de Juan Domingo Perón, porém sem nenhuma concessão a um peronismo ideológico. O que o senhor pensa?
Quem acusa Francisco de ser marxista só revela uma profunda ignorância. Quem pensa que essa forma de pensamento dialético seja hegeliana não conhece nem Hegel, nem os grandes pensadores católicos, como Adam Möhler ou Romano Guardini, cujas dialéticas são uma recusa a Hegel. Seria como acusar Leão XIII de ser marxista porque promoveu os sindicatos e os salários justos. O peronismo, por outro lado, é uma verdadeira influência. Mas não é uma crítica a Borghesi afirmar que seu livro lança pouco de luz sobre essa influência, porque o peronismo não é, em si, uma escola de pensamento ou mesmo um pensamento sistemático, que é o objeto de Borghesi. Como eu defendo no The Great Reformer, o peronismo moldou Bergoglio de duas maneiras: uma, porque emergiu do húmus da tradição cultural distintiva da América Latina e foi, portanto, "do povo"; em segundo lugar, porque Perón era um líder brilhante e um estrategista, que ofereceu a Bergoglio e a outros nacionalistas católicos de sua geração um modo de ser político que transcendia tanto o liberalismo como o coletivismo.
Quanto à adoção acrítica do marxismo por parte da teologia da libertação, parece-me compreender em Borghesi que já o então provincial dos Jesuítas e depois arcebispo de Buenos Aires, em diálogo com Alberto Methol Ferré, distanciava-se dela em favor de uma teologia do povo latino-americano e de uma fidelidade incondicional à Igreja universal e petrina.
O âmago da diferença entre a teologia da libertação e a teologia do povo não é a opção pelos pobres, ou mesmo a noção de libertação histórica, mas a atenção para a cultura e a história. Methol Ferré, Dom Lucio Gera e outros membros do grupo de peritos do Conselho Episcopal Latino-americano (CELAM) acreditavam que os seguidores da teologia da libertação tivessem aceitado muito acriticamente os paradigmas marxistas e tecnocráticos da sociologia da modernização, que em sua opinião não correspondiam à específica tradição cultural e histórica da América Latina. A lealdade a Roma era parte dessa posição. Mas isso não significa que eles não fossem críticos nos confrontos do Vaticano, e em especial de seu centralismo.
Com a filósofa argentina Amelia Podetti, Bergoglio aprende a superar criticamente também Hegel. Porque este é um ponto decisivo no pensamento do futuro Papa?
Borghesi mostra que a maior influência de Podetti sobre Bergoglio foi a de mostrar-lhe a importância da periferia como um locus de novas perspectivas e sínteses criativas. Podetti, que vinha de uma família de católicos e intelectuais nacionalistas, acreditava que a América Latina tinha um papel vital no futuro no mundo como uma civilização cristã "moderna" capaz de transcender as dialéticas individualista-coletivista, liberal-totalitária, leste-oeste.
Os textos de Bergoglio são "apenas" ocasionais (para o bicentenário da Argentina, para o início de um ano letivo, etc.). Borghesi não está exagerando quando sugere a ideia de um sacerdote, bispo e Papa, em diálogo com os grandes expoentes da teologia e da filosofia do século XX (Gaston Fessard, Henri De Lubac, Romano Guardini, Hans Urs von Balthasar) sobre temas altamente filosóficos como a diferença entre Gegensatz (oposição) e Widerspruch (contradição)?
Concordo com Borghesi sobre o fato que temos em Bergoglio um pensador e líder de uma igreja cujo engajamento sistemático com esses gigantes da tradição católica moderna produziu uma leitura surpreendentemente criativa e profética das realidades contemporâneas na Igreja e no mundo. A distinção entre Gegensatz - eu traduzo como "contraste" - e Widerspruch (contradição) é o âmago desse pensamento. Francisco gosta de dizer que a diversidade é divina, mas a divisão é diabólica e que a ação do Espírito Santo cria uma "diversidade reconciliada", que imagina como um poliedro em contraste com a uniformidade de uma esfera. Como podemos manter juntos os contrastes de forma a permitir que o Espírito Santo crie a partir deles uma síntese que os transcenda sem destruí-los? Em outras palavras, como podemos evitar que contrastes dinâmicos saudáveis entrem em contradição? Essa é a tarefa no coração de toda instituição ou corpo: é a grande tarefa que o nosso mundo enfrenta. Não acredito que possamos subestimar o poder desse pensamento. Essa é a missão da Cristandade no coração do mundo.
Borghesi vê em Methol Ferré e Augusto Del Noce pensadores que não identificam uma contradição última entre o pensamento católico e a modernidade. O que essa interpretação tem a ver com o fato de que Francisco está em diálogo com todos, com as grandes religiões não-cristãs, com as outras confissões cristãs e com o pensamento secular?
Sim, eu diria que Methol Ferré e Del Noce oferecem um modelo de engajamento crítico com a modernidade que transcende as polaridades de assimilação/recusa. No caso dos modernistas e dos tradicionalistas, a modernidade é que domina: no primeiro caso, porque se torna o modelo que você aspira, no segundo caso porque se torna o modelo que você recusa. Mas em ambos os casos, a modernidade é determinante. O modelo de Bergoglio-Methol, que se inspira na história do exemplo do humanismo barroco da América colonial espanhola, é gerador de cultura mais do que estar sujeito a ela. É o caminho do Concílio Vaticano II: evangelizamos o mundo cuidando dele, cuidando-o e orientando-o; reformamos a Igreja para torná-la mais capaz de evangelizar a modernidade. Nem o fundamentalismo nem o liberalismo são capazes de evangelizar. Somente no diálogo - que significa compromisso e discernimento - criamos o espaço para que o Espírito Santo atue. E não há parte, nem ninguém, que esteja excluído desse diálogo.
É correta a análise do cardeal Ouellet e de Borghesi quando identificam nos seguintes princípios, expressos, por exemplo, também na Evangelii gaudium, o coração do pensamento do papa Francisco: "o tempo é superior ao espaço"; "a união prevalece sobre o conflito"; "a realidade é mais importante do que a ideia" e, por fim, "o todo é superior à parte"?
Eu costumava pensar que os chamados "quatro princípios" da Evangelii gaudium, que Bergoglio havia desenvolvido em 1980, formassem o núcleo de seu pensamento, mas agora percebo – graças a Borghesi - que é na aplicação desses princípios às polaridades de Guardini que encontramos o "coração" de seu pensamento. Acho que posso expressá-lo dessa forma: o coração do pensamento de Francisco é a capacidade de trazer, na oração, as diferenças dinâmicas deste mundo e permitir ao Espírito Santo de forjar novos percursos criativos. No âmago desse empreendimento existe o respeito pela integridade dos pólos. A "conversão pastoral" a que Francisco está guiando a Igreja significa viver melhor na tensão do universal (verdade objetiva, lei, doutrina) e do particular (as circunstâncias particulares das pessoas, a atenção que Deus dispensa ao indivíduo). Ser mais misericordiosos não significa estar menos comprometidos com a verdade. Mas o fato de que tantas pessoas pensem assim - como testemunha a hostilidade despertada pela Amoris laetitia - mostra o quanto a nossa Igreja precise dessa conversão.
Por fim, o que dizer a respeito do julgamento de Philip Jenkins, um dos principais especialistas mundiais em religião, repetido novamente há apenas algumas semanas: a Igreja Católica está indo ao encontro da maior transformação em muitos séculos e não apenas de mudanças superficiais?
O ponto de Jenkins era geo-eclesiástico. Os dados demográficos mostram que a Europa não é mais o centro da Igreja, e o rico norte não é mais a norma para o catolicismo. O futuro pertence à periferia. A luz se difundirá cada vez mais da Galileia para Jerusalém. É por isso que o papado de Francisco não é apenas um capítulo, ou um parêntese, na história em evolução da Igreja. É parte de uma mudança de era.
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Ivereigh: Borghesi revela o pensamento "escondido" do Papa Francisco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU