30 Outubro 2017
Faz seis meses que Ricardo, 33 anos, e Liliane da Silva, 28, decidiram se unir a outras famílias em uma ocupação de um antigo edifício da rua Vitorino Carmilo, no centro de São Paulo. As contas não fechavam. Ela faz bicos de costura e recebe 240 reais do Bolsa Família. Ele trabalha numa padaria — de maneira informal — e recebe 2.000 reais por mês. Mas com o aluguel de 1.000 em um quarto e sala e a pensão de 300 para a ex-mulher de Ricardo, pouco sobrava para sustentar quatro crianças entre um e oito anos. “O aluguel e o gás a gente pagava em dia, mas faltava comida. Às vezes tinha que cortar feijão, carne, tomate...”, conta ele, que há um ano e meio perdeu o emprego em outra padaria — onde ganhava ainda menos, uns 1600 reais — e ficou sem trabalho durante seis meses. Naquela época passaram a comprar só arroz e batata — “o mais barato” — e a depender da ajuda de família e doações de cesta básica. E ainda hoje dependem de que seus quatro filhos tomem café da manhã e almocem nas creches e escola municipais que frequentam diariamente.
A reportagem é de Felipe Betim, publicada por El País, 28-10-2017.
As dificuldades enfrentadas pela família de Ricardo e Liliane refletem a realidade de milhares de famílias da capital paulista — e do Brasil — que, ainda que se alimentem, vivem assombradas pela fome. Uma realidade que se atenuou nos anos de bonança econômica, o que fez com que o Brasil deixasse o Mapa da Fome da ONU em 2014. Mas que nunca sumiu. “A fome em São Paulo é a insegurança alimentar. Ou seja, aquela pessoa que não tem o que comer em quantidade e qualidade adequada para o seu bom desenvolvimento. Mas isso é fome. É diferente daquela pessoa extremamente desnutrida quase morrendo. Mas uma pessoa que não tem capacidade de se desenvolver é tão sério quanto”, explica a nutricionista Isabel Marçal, gerente da ONG Banco de Alimentos, que recolhe mensalmente cerca de 50 toneladas de comida que ainda está própria para o consumo, mas que não será comercializada, e distribui a entidades como creches e asilos, combatendo o desperdício. “No primeiro caso, quando alguém está quase morrendo, você tem que tomar uma medida emergencial. Já a fome em São Paulo é a fome que incapacita da mesma maneira, mas nem sempre é visível a olho nu”, acrescenta.
O debate sobre a fome na capital voltou com força nas últimas semanas, após o prefeito João Doria (PSDB) lançar o programa Alimento Para Todos e prometer distribuir um granulado feito de farinata, uma espécie de farinha composta por alimentos próximos de sua data de validade ou que não seguem os padrões de comercialização. Chegou a anunciar que o produto, que foi batizado pelos críticos do prefeito de "ração humana", chegaria como complemento alimentar nas refeições dos centros de acolhida de pessoas em situação de rua e, já em outubro, nas merendas de crianças da rede municipal de ensino — o que pegou de surpresa da própria secretaria de Educação e contrariou as regras municipais e federais que regulam a alimentação escolar, segundo noticiou a Folha de S. Paulo. “A alimentação nas escolas paulistanas é reconhecida internacionalmente pela sua qualidade. Se continuar a ser fomentada, com orgânicos e a retirada de produtos industrializados, ela é muito boa. Será que realmente é necessário entrar com o complemento?”, questiona Vivian Zollar, conselheira do Conselho Regional de Nutrição, um dos organismos que criticou a decisão do prefeito. A rejeição foi tanta, e não apenas por parte de especialistas e nutricionistas, que mães com filhos matriculados no ensino público chegaram a se manifestar na avenida Paulista na última quinta-feira. Doria acabou recuando, segundo admitiu nesta quarta-feira para jornalistas. A posição de sua gestão, ele garante, é a de "aguardar", para não transformar o tema em "uma polêmica interminável". "Há sempre um cuidado muito grande na área de educação e assistência social. Estamos avaliando com cuidado, mas não haverá nenhuma decisão para que a farinata seja distribuída neste momento", afirmou. Assegurou, entretanto, que "o produto é bom".
Flávia Rondão, 38 anos, ficou assustada com a possibilidade de que seu filho Vitor Hugo, de um ano e quatro meses, começasse a comer a farinata na creche, onde fica de 7h30 até 17h30. Ainda mais porque ele nasceu prematuro e possui uma série de restrições alimentares. "A alimentação dele na creche é super controlada, então para mim é uma tranquilidade. Eu economizo com ele estando lá e isso para mim é importante. Quando ele chega eu só faço a janta, ou então ele come um mingau, um miojo, uma bolacha ou toma um leite... E deita e dorme", conta. Mãe e filho vivem um pequeno quarto no mesmo edifício ocupado do centro, na Vitorino Carmilo, porque pagar as contas ficou impossível. Flávia ganha um salário de 1.200 reais por mês em uma fábrica de produtos para pet shop e viu o aluguel subir de 900 para 1.700 reais no final do ano passado. Ainda que dividisse os gastos com sua madrinha, conta ter passado dificuldades durante uns cinco meses, antes de finalmente decidir ir para a ocupação com as outras famílias. "Já cheguei a não ter o leite do meu filho, cheguei a não ter comida para comer. A gente apertou de um jeito, apertou de outro, porque não queríamos sair de lá. Cortei muita coisa", explica.
Zollar, do Conselho Regional de Nutricionista, explica que uma situação comum nas famílias é a de "fome oculta". "São indivíduos que até estão com peso adequado ou com excesso de peso, mas por conta da qualidade ruim do que come, acaba tendo carência específica de alguns nutrientes”, argumenta. Já a assistente social e ativista Viviane Almeida argumenta que as pessoas da base da pirâmide, mal remuneradas ou beneficiadas por programas sociais, já não conseguem acessar todos os alimentos da cesta básica. "São famílias que vêm consumindo produtos de baixa qualidade: salsicha, bolacha recheada, miojo... Temos um processo de desnutrição, de fome, mascarada pela obesidade. Que é um problema muito sério que não discutimos".
A iniciativa de Doria também revelou a falta de dados e pesquisas detalhadas sobre a fome tanto em São Paulo — como admitiu a Prefeitura — como no resto do país. Em 2014, o IBGE apontou de forma genérica que, ano anterior, 1,5 milhões de pessoas do Estado de São Paulo, e 7,2 milhões em todo o país, se encontravam em situação de insegurança alimentar grave (veja os dados completos abaixo). “Mas não temos hoje nenhum tipo de estudo grande, que seja recente e representativo, que mapeia o estado nutricional dos brasileiros. Há estudos de 15 anos atrás que diziam que estávamos diminuindo a desnutrição e migrando para o excesso de peso. Precisamos conhecer onde estão as populações de risco e quais são suas deficiências”, argumenta Zollar, que garante que o organismo no qual trabalha recomendou que a Prefeitura realizasse um estudo antes de aplicar seu programa contra a fome, “para saber onde estão os problemas e quais são os problemas, para não tentar resolver algo que não se conhece”. Já o gestor ambiental Andre Ruoppolo Biazoti, que trabalha junto ao Conselho Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional de São Paulo, escreveu o seguinte em sua página no Medium: "Possuímos uma carência imensa de dados a respeito da insegurança alimentar no município. Afinal, onde estão as populações mais vulneráveis que passam fome ou estão desnutridas? Onde estão os desertos alimentares da cidade, os locais onde o alimento natural e fresco não chega nas prateleiras? Não se sabe".
Ainda que não haja um mapa da fome de São Paulo, alguns dados ajudam a ilustrar a condição de vulnerabilidade de determinados grupos. Só a ONG Banco de Alimentos, por exemplo, é responsável pela alimentação de 22.000 pessoas todos os dias, segundo dados internos. Já a Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social possui mais de mil serviços que oferecem, diariamente, 367.152 refeições gratuitas, entre café da manhã, almoço e jantar. Também entrega cerca de 2.500 cestas básicas por mês nos 54 Centros de Referência da Assistência Social. E os 52 restaurantes populares do programa Bom Prato, do Governo de Geraldo Alckmin (PSDB), alimenta 86.000 pessoas todos os dias em todo o Estado.
Em frente a um desses restaurantes, no centro de São Paulo, está Andrei Santos, que há seis anos mora na rua. Precisa que alguém lhe dê um real para que possa pagar por um prato bem servido de arroz, feijão, salada, legumes, carne, farinha de mandioca e pão, além de um suco e uma laranja de sobremesa. “Venho todos os dias, mas não são todos os dias que tenho dinheiro”, conta o rapaz, de 30 anos. Geralmente ganha uns 10 reais diariamente catando latinha, que podem ser usados tanto para comprar um lanche antes de dormir como para consumir alguma droga. Caso contrário, depende da solidariedade ou de restos de comida. Inclusive quando consegue comer no restaurante do Governo, aproveita as sobras que outras pessoas deixam em seus pratos. “Minha rotina de alimentação é todo dia, de manhã, de tarde e de noite. Aqui em São Paulo não tem como ficar sem comer. Cidade grande, né, cara”.
Para o padre Júlio Lancelotti, da Pastoral do Povo da Rua, São Paulo "tem muita comida e não falta acesso". O que sim existe, ele diz, "é uma alimentação não adequada, a ingestão de proteínas não suficientes, uma questão nutricional que tem que ser vista". Ele conta, por exemplo, que muitos moradores em situação de rua "têm diabetes ou outros problemas de saúde, mas nos centros de acolhida a alimentação é igual pra todos". Ele ainda critica a afirmação de Doria de que o pobre não teria hábito alimentar e sim fome, e que portanto aceitaria qualquer coisa para comer. "Dizemos que uma pessoa que come caviar, champignon, camarão tem cultura alimentar. Mas uma coisa que eles [as pessoas que vivem na rua] gostam muito é de farinha de mandioca no feijão, porque muitos vieram do Nordeste. E isso lembra da comida da mãe e da avó deles. Isso é cultura alimentar", argumenta o padre. Ele garante que "o povo da rua gosta muito de cozinhar" e defende que abrigos tenham "cozinhas comunitárias".
Ao seu lado, Marcelo é taxativo: "Eu posso estar com fome, mas se me derem dobradinha eu não como não. Mesmo com o melhor tempero", diz. Morador das ruas da Mooca, na zona leste de São Paulo, ele conta que muitas vezes almoça no refeitório do centro comunitário São Martinho de Lima, um dos lugares onde a Prefeitura oferece café da manhã e almoço grátis — são mais de 800 refeições todos os dias. Em outras ocasiões, aproveita os restos da feira de quinta ou as sobras de carne que um restaurante do bairro para cozinhar, um hábito que diz cultivar apesar de ter suas panelas roubadas com certa frequência. "Mas às vezes somos obrigados a comer o que tem, né? Porque está com fome. Só que eles [a sociedade] infelizmente não ajudam como tem que ajudar. Tem umas entidades que agem certinho, mas a maioria não age como tem que agir. E aí eu preciso comer e vou reclamar pra quem? Pro Lula? Não tem como eu fazer uma reclamação que eles não vão acreditar na minha sensibilidade, entendeu?"
A Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA), usada pelo IBGE desde 2004, classifica os lares de acordo com o grau de segurança alimentar. A último Pesquisa Nacional de Amostras de Domicílios (PNAD), feita em 2013 e divulgada em 2014, mostrou com a situação de milhões de lares brasileiros:
Grau 1 - Segurança Alimentar: Acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente. Não há preocupação quanto ao acesso de alimentos no futuro. Neste nível estavam 50,5 milhões de domicílios (77,4% dos pesquisados), nos quais moravam 149,4 milhões de pessoas. No Estado de São Paulo, a prevalência sobe para 88,4% das moradias.
Grau 2 - Insegurança Alimentar Leve: Preocupação ou incerteza quanto a disponibilidade de alimentos no futuro em quantidade e qualidade adequadas. Neste nível estavam 9,6 milhões de moradias (14,8%), nos quais moravam 34,5 milhões de pessoas.
Grau 3 - Insegurança alimentar moderada: Redução da quantidade de alimentos entre os adultos ou ruptura nos padrões de alimentação devido a falta de alimentos. Ainda assim, a alimentação de crianças é preservada. Neste nível estavam 3 milhões de lares, (4,6%), nos quais moravam 10,3 milhões de brasileiros.
Grau 4 - Insegurança alimentar grave: É a redução da quantidade de alimentos entre as crianças ou quando alguém fica o dia inteiro sem comer por falta de dinheiro. Ou seja, fica com fome. Neste nível estavam 2,1 milhões de moradias, (3,2%), nas quais viviam 7,2 milhões de brasileiros. No Estado de São Paulo, 1,5 milhões de pessoas se encontravam nesta situação.
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Comer e viver assombrado pela subnutrição mesmo assim: mapa da fome em São Paulo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU