20 Outubro 2017
“A obediência de Maria e Isabel é ‘potência consciente’, própria de quem não sofre o inevitável, mas, ao contrário, ‘torna-se obediente’, chegando ‘a querer a vontade divina’.”
A opinião é do monge italiano Enzo Bianchi, fundador da Comunidade de Bose, em artigo publicado por La Repubblica, 19-10-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Devemos a Northrop Frye e ao seu já célebre “O código dos códigos. A Bíblia e a literatura” a fundamentada consciência de como a Escritura santa para judeus e cristãos se tornou, ao longo dos séculos, chave de inspiração e de interpretação não só da literatura, mas também de toda a cultura “ocidental”: a parte preponderante do patrimônio artístico, iconográfico, literário e cultural, em sentido lato, dos países marcados pela tradição judaico-cristã é simplesmente incompreensível se forem ignorados os seus textos fundadores.
Mas, justamente por causa desse vínculo indissolúvel, o contrário também é verdade: conhecendo e frequentando os tesouros da cultura desses países é possível, até mesmo para quem não se professa crente, obter, a partir da leitura dos textos bíblicos, profundas intuições espirituais.
Uma esplêndida prova disso é o livro de Massimo Cacciari Generare Dio [Gerar Deus], com o qual se inaugura, da melhor forma possível, a coleção Icone, da editora Il Mulino. Inspirando-se em alguns quadros – as Anunciações de Simone Martini e Lippo Memmi, Piero della Francesca e Beato Angelico; duas Nossas Senhoras com o menino de Andrea Mantegna e outras duas de Giovanni Bellini (imagem acima); uma Pietà do próprio Bellini e uma Deposição da Cruz de Rogier van der Weyden; até a celebérrima Trindade de Masaccio – Cacciari relê a figura de Maria de Nazaré, aquela que “escolhe conceber o menino que a escolhe” para retomar, com Cacciari, as palavras de Wystan H. Auden.
(Foto: divulgação)
O filósofo, de fato, também valoriza releituras poéticas do mistério da encarnação, para sondar o sentido do inédito “gerar Deus”: não só graças a Dante, mas também a Luzi e Hölderlin, a Rilke e Rebora, a reflexão de Cacciari assume os traços de uma revisitação do dado evangélico com os olhos, o coração e a mente de séculos de pensamento ocidental.
O percurso começa na casa de Nazaré, onde o anúncio do Arcanjo Gabriel à juveníssima Maria – narrado pelo Evangelho de Lucas – tem traços de uma densidade humana inalcançável pela correspondente aparição em sonho de um anjo a José, como descrita no Evangelho de Mateus.
Portanto, são três as cenas evocadas por Cacciari, duas tiradas dos Evangelhos e uma derivada principalmente da pintura: a Anunciação, justamente, que toma como sua anotação a Visitação de Maria a Isabel; a deposição da cruz ou “pietà”, significativamente recolhida no capítulo dedicado a La Croce di Maria [A Cruz de Maria]; e – colocadas entre as cenas que precedem o nascimento e as que se seguem à morte de Jesus – as imagens de Maria com o menino entre os braços, tão humanas nas pinturas itálicas e tão diferentes da majestade hierática dos ícones bizantinos.
Mas a profunda compreensão do mistério da encarnação que o Ocidente – “terra que procede ao pôr do sol” – soube elaborar ao longo dos séculos permite que Cacciari mostre como os escritos apócrifos e os pensadores gnósticos dos primeiros séculos se distanciaram decisivamente dos dados neotestamentários, respeitados, em vez disso, em profundidade, por artistas posteriores em muitos séculos, aos quais não incomodou em nada retratar Maria e o menino em vestes, costumes e contextos ambientais próprios de uma época bem diferente.
De fato, se, com a interpretação gnóstica “a mulher desaparece” e, com ela, todo contexto terrestre, na releitura que Cacciari faz da tradição ocidental, “da união esponsal entre Logos e Sophia, nasce o múltiplo”, e terra e céu se encontram em um abraço em que o ícone se contrapõe ao mito.
Cacciari sabe buscar uma leitura “pneumática” de Maria, graças não só ao seu conhecimento da tradição patrística do Oriente e do Ocidente, mas também a uma sensibilidade própria de quem sabe percorrer os caminhos do quaerere Deum in aenigmate, atingindo ápices poéticos em nada estetizantes.
Essa abordagem sábia e respeitosa lhe permite interpretações ousadas, mas pertinentes, de alguns dados bíblicos, para os quais, muito frequentemente, o pensamento cristão renunciou a buscar novas potencialidades.
Assim, contra toda tentativa gnóstica de remover o escândalo do “encarnar-se” do Logos, Cacciari evidencia a eleição absolutamente inédita de Maria, “cheia de graça” (kecharitomene) que gera a graça, a charis de Deus, seu Filho, em sarx, “carne” real, humaníssima. A concepção de Jesus é fruto da sua meditação, do seu recolhimento (syn-ballein) no coração das palavras do Senhor, enquanto a nuvem luminosa a cobre e a fecunda.
Assim, a obediência de Maria e Isabel é “potência consciente”, própria de quem não sofre o inevitável, mas, ao contrário, “torna-se obediente”, chegando “a querer a vontade divina”.
Até mesmo aparentes paradoxos evangélicos revelam riquezas escondidas: o Verbo nasce como “in-fante”, criatura que não fala; assim como “a luz se encarna na sombra”; e Maria é “a próxima” do Filho que se fez próximo da humanidade, enquanto Jesus, que veio entre os seus, na realidade, está constantemente “fora... hóspede por toda a parte, nunca em casa”.
São páginas intensas, reunidas em torno de dois “ícones” principais: o do “gerar” e o do “sofrimento”, ícones como nenhum outro presentes na vida de cada ser humano, não só no seu nascimento e morte, mas também no próprio coração da existência cotidiana.
Porque não se gera apenas parindo, nem se sofre apenas morrendo: esse é o desafio de sentido que as páginas evangélicas em torno de Maria de Nazaré lançam aos homens e às mulheres de todos os tempos e, portanto, também do nosso tempo e do nosso Ocidente, tão relutantes a gerar nova vida e tão relutantes em assumir o sofrimento do duro ofício de viver.
Como cristão que faz memória e reza à Virgem Mãe, recordo a pergunta de Silesius: “De que me adianta, Gabriel, o teu salve a Maria, se não tens uma mensagem igual para mim?”.
Maria, de fato, mais do que objeto de culto, é figura exemplar: que cada um gere o Logos em si mesmo.
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Assim a arte mariana combina o Logos e a vida. Artigo de Enzo Bianchi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU