28 Junho 2017
“É função da exegese analisar a aporia sem presumir de resolvê-la. Interpretar e sofrer o sentido do enigma, do escândalo das palavras de Deus que se contradizem, entre violência, justiça e misericórdia, amor. É isso o que faz toda a tradição rabínica e mais tarde cristã: como manter junto o oposto, o que na Bíblia é contradição irreconciliável, sem redutivas harmonizações e sínteses conciliadoras”, afirma Massimo Cacciari, filósofo italiano, em entrevista publicada por Esodo, abril-junho 2017. A tradução é de Luisa Rabolini.
Segundo ele, “é necessário o esforço de estudar e compreender, de viver a contradição porque precisa permanecer a diferença escandalosa de quem acredita na palavra de Deus. Não é possível avançar insistindo em "emendas", "laicizações" e "eticizações". Será que Kierkegaard nasceu em vão?! O escândalo da fé deve ser enfrentado com grande coragem. E por ser justamente tal, que interessa vitalmente inclusive à filosofia, que só pode ser não-crente”.
“O problema hoje é a tendência a afastar as contradições, a adoçar as diferenças escandalosas – conclui Cacciari. Quem pensa, no entanto, não deve anulá-las e pacificá-las, procurar apenas o acordo, o que é comum, mas deve dialogar nas diferenças, que desafiam. Apenas isso permite ao pensamento avançar, seja teológico como filosófico. É do escândalo, do que suscita perplexidade e angústia ao mesmo tempo, que se origina tanto a exegese da Revelação, como o diaporein do filósofo”.
Como é a relação com a Bíblia de quem não acredita que ela tenha a autoridade de Deus? Existem diferentes formas de leitura, mas qual o significado que tem para o filósofo a compreensão desta que é, para o crente, a palavra de Deus?
A Bíblia é o nosso grande código. Ignorá-la significa ignorar a história e a cultura do Ocidente, significa não entender o nosso presente. É o grande código que o Ocidente tem utilizado em todas as suas formas, literatura, arte, filosofia.
Para todos, crentes e não, vale como vale a necessária leitura científica dos textos que compõem a Bíblia, tradução ruim que esconde a pluralidade dos livros. O conceito de pluralidade é vital para todo o nosso discurso.
O não crente, que não acredita que são a palavra de Deus, que relação tem com esses livros? Existem várias formas de abordagem, além daquela mencionada no início. É uma constante fonte de sugestões, de problemas, de provocações, um convite permanente para pensar, para a discussão sobre as questões básicas de teor teológico e filosófico.
O não crente não pode deixar de se sentir continuamente provocado a refletir por esses livros, assim como acontece com outras grandes obras clássicas de filosofia e da literatura: o livro de Jó é tão provocador como uma tragédia grega. São verdadeiros "clássicos".
Mas há um problema. Muitos não crentes leem esses textos como alimento para o pensamento e não podem ignorar essa fonte. É inevitável que assim seja. Mas o não crente deve questionar-se sobre a questão básica de seu significado - e esse é o âmago da questão - porque não se pode ignorar que a tradição desses textos fundamenta-se na leitura daqueles que acreditam que essa palavra é a palavra de Deus. Não pode ser desconsiderada tal diferença, que a tradição vive e transmite esses livros como a palavra de Deus e não apenas como textos literários, embora grandes, e mesmo considerando-os os mais sublimes.
Para o filósofo isso não é indiferente, porque a leitura do texto torna-se parte da natureza do próprio texto, de seu constituir-se, de sua transmissão no tempo. O não crente não pode fingir que esse problema não existe: depara-se com um texto lido como a palavra de Deus e, portanto, como "Revelação".
Como pode o não crente confrontar-se com este ponto de vista? Quais são as consequências para a sua própria busca?
A questão certa seria perguntar quais as consequências de reconhecer que quem elaborou, guardou, transmitiu e vivenciou esse texto, fez isso por seu caráter "revelado" e não apenas como produção humana e, portanto, que essa palavra "tornou-se divina" e, por ser acreditada e vivenciada como tal, tornou-se constitutiva primeiro de um povo, e depois de toda uma civilização. Mesmo o não crente quando lê esses textos não pode ignorar a exegese teológica e sua contínua interpretação. A tradição exegética, de fato, não é adicionada, mas é inerente ao próprio texto, especialmente nesse tipo de livros que têm caráter histórico, nasceram e se transformaram, estão no devir de diferentes contextos. A contínua interpretação é interna à própria Bíblia.
No entanto, é difícil ‘tematizar’ essa abordagem. Crentes e não, filósofos e teólogos, limitam-se ao diálogo entre diferentes interpretações, mas geralmente não ‘tematizam’ esse problema, difícil de enfrentar porque mostra o que divide, a diferença radical e, ao mesmo tempo, exige o empenho de todos em seu próprio âmbito. O próprio crente muitas vezes coloca entre parênteses essa dificuldade e procura o diálogo redutivo sobre o que é comum, sobre a palavra humana comum compartilhada, sobre os valores éticos e humanos que certamente estão presentes na Bíblia, mas que de modo algum podem esgotar seu significado.
Para a tradição judaico-cristã esses livros foram, sim, formando-se ao longo do tempo, mas sempre foram lidos como Revelação. Isto é o essencial. Todos os livros da Bíblia têm esta característica, desenvolveram-se, transformaram-se ao longo do tempo, mas sempre como revelação de Deus na palavra humana. A palavra humana que a transmite não pode assumir um valor autônomo.
O que é, então, a relação entre um teólogo e um filósofo? A ideia mais difundida hoje é de que o terreno comum seja o texto bíblico como palavra humana, com um valor ético e antropológico talvez único, mas ressaltando entre parênteses sua natureza específica.
O teólogo, em minha opinião, não pode ser não crente, enquanto é possível existir um discurso do filósofo sobre a teologia. Mas o que comporta na minha leitura saber que esses livros foram todos constituídos como palavra de Deus? É uma questão que não diz respeito a mim como filósofo, mas apenas ao teólogo, ao crente? Claro que, mesmo para o crente, permanece o mistério, o enigma. Há uma palavra em que Deus manifesta-se clara e diretamente. É sempre o Deus escondido, incognoscível, indizível, mas que fala e chama à escuta. Existem muitas leituras crentes, mas todas sempre acreditam que essa é a palavra de Deus. Mesmo a escuta e a transmissão escritas são exegese, interpretação. E todas as leituras subsequentes também seguem esse padrão.
Essa exegese criativa é parte da natureza da Bíblia, que se molda e se constitui continuamente no tempo exegeticamente e de forma pluralista e contraditória. E o não crente não pode ignorar isso. Mas é preciso ir até à raiz. Não é possível fazer confusão: ou se acredita que é a palavra de Deus, revelada, ou não. É, uma diferença radical, originária, que distingue aqueles que acreditam ou não na palavra, que eu não posso assumir como palavra de Deus, mas assumo como uma palavra que se constituiu como tal através da fé de que seja a palavra de Deus. Podem ser discutidos os caminhos dessa elaboração. O crente deve justificá-la, mas não pode ser diluída a diferença na raiz. É Palavra de Deus manifestada em palavras humanas, mas é sempre palavra de Deus para quem acredita que tal seja.
É Revelação ou não? Quando se afirma que tudo pode ser resolvido na tradição e na exegese, isto é o que pensam os não crentes. Perdendo toda diferença termina-se na "paz" do Anticristo! Todas as diferenças são vinculadas a um pensamento único, a uma única forma de exegese: tudo é divino-nada divino; todos concordam "em substância", porque não há mais nenhuma "substância". Ao contrário, é preciso reivindicar com força as nossas diferenças.
É claro que há uma busca comum, uma base científica comum, e que não pode haver uma leitura dogmática, fundamentalista, literal. É claro que a respeito de tudo isso há formas de entendimento. Mas essa palavra de Deus no ser história, na condição e na palavra humana, é também revelação?
Ou a história absorve em si todo elemento revelador? Essa é a diferença entre a leitura que pode fazer um não crente a aquela do crente. Se o crente diz que tudo é revelação, que inclusive a minha palavra pode sê-lo, toda diferença desaparece. Ao invés disso, o crente pensa que aquela palavra historicamente narrada, Logos, seja a palavra de Deus.
No Evangelho, fala-se que o Logos, o Cristo, é Deus, não apenas que é sua palavra.
A história e o humano não absorvem, não esgotam a revelação. Não é tudo a mesma coisa. Dizer que Cristo é Deus e Homem-Deus é diferente de dizer que ele é totalmente homem.
A Bíblia é a palavra de Deus mesmo quando trata de coisas que nos escandalizam? Que contrastam com a mentalidade e a cultura atual? Um pensamento "leigo", que também é aceito entre os teólogos, apela para a eliminação, por exemplo, das passagens que apontam um Deus violento.
Será possível afirmar com toda segurança que quando o relato de uma vontade violenta de Deus nos causa escândalo, trata-se de pessoas simples que não entenderam, ou até mesmo que mentem sobre ter "escutado Deus" - pessoas que ao contrário, em outros momentos, exaltamos como autênticos profetas? Como é aceitável uma exegese desse tipo? E então por que não publicar uma "Bíblia castigata", como foi feito na Idade Média e não apenas com Ovídio? É função da exegese, creio eu, analisar a aporia sem presumir de resolvê-la. Interpretar e sofrer o sentido do enigma, do escândalo das palavras de Deus que se contradizem, entre violência, justiça e misericórdia, amor. É isso o que faz toda a tradição rabínica e mais tarde cristã: como manter junto o oposto, o que na Bíblia é contradição irreconciliável, sem redutivas harmonizações e sínteses conciliadoras. O próprio Jesus afirma que não veio para mudar um milímetro da Lei, mas para executar uma autêntica exegese. Para levá-la, de alguma forma, para além de si própria. O próprio Jesus é a exegese da inteira Bíblia, mas afirma que não quer mudar uma vírgula. No entanto, a transformação é certamente radical. E isso é também um sinal de contradição escandalosa, que não deve ser simplificada.
É necessário o esforço de estudar e compreender, de viver a contradição porque precisa permanecer a diferença escandalosa de quem acredita na palavra de Deus. Não é possível avançar insistindo em "emendas", "laicizações" e "eticizações". Será que Kierkegaard nasceu em vão?! O escândalo da fé deve ser enfrentado com grande coragem. E por ser justamente tal, que interessa vitalmente inclusive à filosofia, que só pode ser não crente. De outra forma, a única alternativa seria a gnóstica: o Deus da primeira Aliança não é o Deus de Jesus. Afinal, o único Evangelho da Verdade permanece, então, o de Paulo. E estamos a um passo das raízes mais profundas do antissemitismo.
Crentes e não gostariam, contudo, que a palavra de Deus fosse clara: porque tudo parece "confuso" ou se torna uma leitura fundamentalista, literal, ou que tende a procurar junto com isso a palavra que para mim é mais verdadeira hoje, sem distinções. Em que sentido orienta-se a sua análise?
Deve ser mantida presente a contradição, não resolvida, entre o ser palavra de Deus - aquela revelada na Bíblia - e o ser palavra humana. Não é afinal um texto de literatura, caso contrário seriam traídas a experiência e a tradição de fé de quem construiu, considerou, e continua a fazê-lo, esses livros como palavra de Deus para ser vivida e transmitida como tal. E, portanto, é traído o Logos de Deus, que constitui o seu povo nessa tradição. Mesmo para o não crente, então, não é literatura, não é tragédia grega ou o Ulisses de Joyce. Quem pensa que pode lê-lo por esse prisma, entende que o está traindo.
A exegese teológica e a leitura filosófica são diferentes. A primeira é parte intrínseca dessa tradição, porque pressupõe que exista um Logos, enquanto a filosófica refere-se a esse texto como a um grande código da nossa civilização, fato que, no entanto, irá causar-lhe um problema.
Para uma leitura filosófica isso comporta, uma vez constatada a diferença radical entre crer e não nesta palavra, o problema da relação com a teologia, de uma forma que necessariamente coloca-se no plano diferente da fé (caso contrário, tornar-se-ia teologia). Comporta a necessidade de se confrontar com o problema de Deus e com o significado desse nome. Implica não ignorar a autoridade de fé presente nos textos, comprometida, nessa tradição viva, concreta, histórica, a entender todas as palavras escandalosas, todas as contradições escandalosas, não eliminando o que perturba. Uma autoridade, portanto, a ser interpretada.
Eu reconheço a existência do problema, que não se trata apenas de literatura, porque advirto uma auctoritas de quem têm uma fé verdadeira, coisa que não percebo nos filósofos que comentam a Bíblia.
Evidentemente aqueles que têm fé acreditam que essa autoridade vem de Deus. Caso contrário, tudo se torna cultura, uma leitura como outra qualquer. Para o humanismo de hoje, não aquele histórico em que eram fortes a presença da teologia e a tentativa de harmonizá-la com a filosofia, tudo é palavra humana. Tudo é produto imerso na dimensão puramente humana e o divino torna-se uma metáfora do sublime, do inefável. Cristo torna-se humano, e não totalmente humano e totalmente Deus. Existem hoje poderosas tendências histórico-culturais que vão no sentido de um humanismo universal, que envolvem também os filósofos, mas uma filosofia deixa de ser tal quando cessa de procurar a sua própria verdade, de superar as limitações do humanismo porque a verdade como tal deve necessariamente exceder o devir humano.
Que filosofia seria se não fosse movida por essa instância, por esse Eros, mas se limitasse apenas a acompanhar o devir histórico? Esse humanismo radical em que vivemos acabaria por destruir a teologia, mas também ameaça a filosofia. Na busca e na interpretação contínua o filósofo pode "com-petir" (buscar ao mesmo tempo, ndt) com o teólogo no esforço da exegese, sugerindo novas ideias, abrindo diferentes perspectivas.
Mas a diferença radical precisa ser mantida firme. O Deus bíblico tenta, seduz, coloca em discussão, desafia, entra em conflito: esta é a abismal diferença com o Islã. Maomé simplificou a mensagem judaico-cristã, da qual deriva. Para ele, os homens não são capazes de suportar as contradições, os desafios que os Livros contêm. Aquela Palavra plural deve ser reduzida ao Uno para se tornar compreensível. Para que seja possível prestar-lhe obediência.
Eis então um Livro, uma Língua, um Profeta. Operação impossível para a civilização judaico-cristã. Mas isso torna maximamente árdua justamente a obediência, abre para um exame crítico, para o próprio ateísmo!
Na Igreja Católica, com aspectos especiais mesmo agora, há uma tendência para transformar o cristianismo em "humanismo", um princípio ético. Este é o perigo de algumas interpretações do papa Francisco?
Quando a religião institucionaliza-se, torna-se ética, doutrina histórica. No entanto, o cristianismo nunca eliminou o escândalo interno à Palavra, nunca revisou o seu código. O Papa Francisco coloca o tema da Misericórdia além do humano, como uma manifestação da palavra divina. Em outras ocasiões, no entanto, parece buscar uma adaptação ao humanismo, ao século. Muitas dessas atitudes fascinam os chamados "laicos". O ‘encantamento’ deles pelo Papa é um sinal perigoso. É uma situação compreensível: ao mesmo tempo em que esse papa é totalmente consoante com a grande tradição jesuítica, ele não pretende enfrentar nenhuma questão através do confronto direto, mas as contorna, deixa-as, de certa forma, para trás. Não porque nutra algum tipo de confiança na conversão alheia, mas justamente porque tem uma verdadeira fé na Providência, gratia capaz de orientar e guiar, e que, no final, sempre vence. Não se trata, portanto, de uma superficial e instrumental Anpassung, adaptação, mas de fé nos inescrutáveis desígnios do Senhor. O Papa Francisco deveria, talvez, alertar contra uma determinada interpretação da "Laudato si” no sentido do Deus sive natura, da identificação de Deus com a natureza divinizada, e ainda mais de leituras ecológicas do "Cântico" franciscano. Para Francisco de Assis Louvado sejas, meu Senhor, através das criaturas que são louvadas enquanto louvam a ti, manifestam a ti, não para si mesmas.
O problema hoje é a tendência a afastar as contradições, a adoçar as diferenças escandalosas. Quem pensa, no entanto, não deve anulá-las e pacificá-las, procurar apenas o acordo, o que é comum, mas deve dialogar nas diferenças, que desafiam. Apenas isso permite ao pensamento avançar, seja teológico como filosófico. É do escândalo, do que suscita perplexidade e angústia ao mesmo tempo, que se origina tanto a exegese da Revelação, como o diaporein do filósofo.
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O não crente e a Bíblia. Entrevista com Massimo Cacciari - Instituto Humanitas Unisinos - IHU