30 Agosto 2017
“A proposta de Francisco é muito exigente. Seria mais fácil ou cômodo aplicar normas de maneira rígida e universal, querer que tudo seja “preto no branco” (305), ou partir de algumas convicções gerais e derivar conclusões inamovíveis sem levar em conta a complexidade da realidade e a vida concreta das pessoas. Mas essa rigidez cômoda pode ser uma traição ao coração do Evangelho”. A análise é de Víctor Manuel Fernández, arcebispo e reitor da Universidade Católica Argentina, em artigo publicado na revista Medellín, agosto de 2017, e reproduzido por Religión Digital, 27-08-2017. A tradução é de André Langer.
Após vários meses de intensa atividade dos setores que se opõem às novidades apresentadas no capítulo oitavo da Amoris Laetitia – minoritários, mas hiperativos –, ou de fortes tentativas para dissimulá-las, a guerra parece ter entrado em um ponto morto. Agora convém parar para reconhecer o que concretamente Francisco nos deixa como novidade irreversível.
Se o que interessa é conhecer como o próprio Papa interpreta o que ele escreveu, a resposta está muito bem explicitada em seu comentário sobre as orientações dos Bispos da Região Buenos Aires. Os bispos, após falarem sobre a possibilidade de que os divorciados em nova união vivam em continência, admitem que “em outras circunstâncias mais complexas, e quando uma declaração de nulidade não pôde ser obtida, a mencionada opção pode não ser de fato viável”.
Em seguida eles acrescentam que, “no entanto, um caminho de discernimento é igualmente possível. Caso se chegue a reconhecer que, em um caso concreto, há limitações que atenuam a responsabilidade e a culpabilidade (cf. 301-302), particularmente quando uma pessoa considerar que cairia em uma posterior falta prejudicando os filhos da nova união, a Amoris Laetitia abre a possibilidade para o acesso aos sacramentos da Reconciliação e da Eucaristia (cf. notas 336 e 351).
Francisco enviou-lhes imediatamente uma carta formal dizendo que “o texto é muito bom e expressa plenamente o sentido do capítulo VIII”. Mas é importante notar que ele acrescenta: “Não há outras interpretações” (carta de 05 de setembro de 2016). Portanto, não é preciso esperar outra resposta do Papa.
Poder-se-ia questionar o fato de que o Papa esclareça sua interpretação em uma carta a um grupo de bispos. Na verdade, isso já aconteceu outras vezes. Para dar um exemplo, lembremos de um incidente que envolve a interpretação do Concílio Vaticano I. Os bispos alemães responderam ao chanceler Bismark, que defendia que o concílio tinha definido um centralismo romano que enfraquece a autoridade episcopal. Com sua resposta, os bispos rejeitaram essa interpretação do Concílio.
Pio IX referendou a interpretação desses bispos com uma carta (12-03-1875) e com a audiência de 15-03-1875 (DH 3112-3117). Em uma nota da Lumen Gentium 27 cita-se a carta de Pio IX aos bispos alemães, mediante o que se confirma sua autoridade hermenêutica.
Evidentemente, uma carta do Papa não tem o mesmo valor de uma encíclica, mas, como vemos, pode ter uma grande importância prática decisiva para explicitar a interpretação correta de um texto de maior importância. Se o Papa recebeu um carisma único na Igreja a serviço da interpretação correta da Palavra divina – o carisma dado a Pedro para atar e desatar e para confirmar na fé os seus irmãos –, isso não pode excluir sua capacidade para interpretar os documentos que ele mesmo escreveu.
A proposta de São João Paulo II aos divorciados em nova união para conviverem em perfeita continência, como requisito para o acesso à comunhão eucarística, já era uma novidade significativa. Muitos resistiram a esse passo. Ainda hoje alguns não aceitam aplicar essa proposta porque consideram que dá margem para o relativismo. Por outro lado, devemos notar uma novidade posterior na linguagem de Bento XVI. Enquanto São João Paulo II pedia que “assumam o compromisso de viver em plena continência” (FC 84), Bento XVI propunha-lhes, mais delicadamente, “esforçar-se” para viver “como amigos” (SC 29b).
Francisco reconhece a possibilidade de propor a perfeita continência aos divorciados em nova união, mas admite que possa haver dificuldades para praticá-la (cf. nota 329). A nota 364 abre a possibilidade de administrar-lhes o sacramento da Reconciliação mesmo quando sejam previsíveis novas quedas. Francisco questiona ali os sacerdotes que “exigem dos penitentes um propósito de emenda claro, sem sombra alguma, fazendo com que a misericórdia se esfume debaixo da busca de uma justiça supostamente pura” (ibid). E ali mesmo retoma uma importante afirmação de São João Paulo II, que sustentava que mesmo a previsibilidade de uma nova queda “não prejudica a autenticidade do propósito”.
Contra esta cuidadosa precisão de São João Paulo II, alguns parecem exigir uma espécie de controle estrito do que os outros fazem na intimidade. É preciso parabenizar de coração aqueles que conseguem viver em perfeita continência, enriquecendo de diversas maneiras sua convivência cotidiana. Mas isso não significa ignorar que outros encontram sérias dificuldades para viver a perfeita continência.
Quando se fala da necessidade de evitar o escândalo, é preciso observar que isso só ocorre quando as pessoas “ostentam” sua situação como se fosse correta (cf. 297). Caso contrário, o escândalo também aconteceria quando o primeiro matrimônio tiver sido declarado nulo, já que provavelmente muitos que os virem se confessar e comungar não saibam da nulidade. Se vamos ao caso, também não poderiam saber se vivem como irmãos ou não. A falta objetiva não é “manifesta” na medida em que não pode ser confirmada de fora, e todos merecem o benefício da dúvida. Deixemos este assunto – de fato inverificável – para a intimidade do discernimento do fiel com seu pastor.
A grande resistência que este tema provoca em alguns grupos indica que esta questão, para além da importância da sexualidade, rompe uma estrutura mental rígida, muito concentrada nos temas da sexualidade, e obriga a alargar as perspectivas. Por isso, Francisco pede que os pastores ajudem os fiéis “a assumir a lógica da compaixão com os fracos e a evitar perseguições ou julgamentos demasiado duros ou impacientes” (308).
A Amoris Laetitia retoma um ensinamento de Santo Tomás de Aquino sobre a aplicação dos princípios gerais: “Quanto mais se desce ao particular, tanto mais aumenta a indeterminação” (304). Francisco não afirma que as leis morais gerais não possam alcançar todas as situações, nem que sejam incapazes de imperar a decisão da consciência. Pelo contrário, disse que “apresentam um bem que nunca se deve ignorar nem descurar”. No entanto, “na sua formulação, não podem abarcar absolutamente todas as situações particulares” (ibid.).
É a formulação da norma que não pode abarcar tudo e não a norma em si mesma. E isso não vale apenas para as leis positivas, mas também para o nosso modo de formular a lei natural em suas diversas expressões. Nesta linha manifestava-se a Comissão Teológica Internacional, no Pontificado de Bento XVI: “A lei natural não deveria ser apresentada como um conjunto já constituído de regras que se impõem a priori ao sujeito moral, mas é, antes, uma fonte de inspiração objetiva para o seu processo, eminentemente pessoal, de tomada de decisão”.
A norma absoluta em si não admite exceções, mas isso não implica que sua breve formulação deva ser aplicada em todos os sentidos e sem nuances a todas as situações. O “não matar” não admite exceções. No entanto, deixar lugar à seguinte pergunta: tirar a vida em defesa própria deve ser incluído na expressão “matar” proibida pela norma? Tomar um alimento alheio para dar de comer a um filho com fome deve ser incluído na expressão “roubar” proibida pela norma? Ninguém teria dúvidas de que seria legítimo perguntar se esses casos concretos estão realmente incluídos nas formulações delimitadas pelos preceitos negativos “não matar” ou “não roubar”.
Por essa razão, também é permitido perguntar se os atos de uma convivência more uxorio devem cair, na sua totalidade, no preceito negativo que proíbe “fornicar”. Digo “na sua totalidade”, porque não é possível defender que esses atos sejam, em todos os casos, gravemente desonestos em sentido subjetivo. É na complexidade das situações particulares, como diria Santo Tomás, onde “aumenta a indeterminação”. De fato, não é fácil tratar de “adúltera” uma mulher que sofreu maus-tratos e foi desprezada por seu esposo católico e que obteve refúgio, ajuda econômica e psicológica de outro homem que a ajudou a criar os filhos da união anterior e com o qual ela teve novos filhos e convive há vários anos.
A questão não é se essa mulher não sabe que a convivência com esse homem não responde às normas morais objetivas. É mais que isso. Alguns procuram simplificar o assunto dessa maneira ao dizer que, segundo Francisco, “o sujeito poderia não estar em pecado mortal porque, por diversos fatores, não está ciente de que sua situação é um adultério”. E eles questionam que não faz sentido falar de discernimento se “o sujeito permanece, indefinidamente, inconsciente de sua situação”. Mas Francisco disse explicitamente que “os limites não dependem simplesmente de um eventual desconhecimento da norma” (301).
A questão é muito mais complexa e inclui pelo menos duas considerações básicas. Primeiro, se uma mulher que sabe da existência da norma, realmente pode entender que não abandonar esse homem – de quem não pode exigir por enquanto uma continência total e permanente – é realmente uma falta gravíssima contra a vontade de Deus. Segundo, se ela realmente pode, neste momento, tomar a decisão de abandonar esse homem. É ali que a formulação limitada da norma é incapaz de expressar tudo.
Em todo caso, a proposta específica e principal de Francisco, em sintonia com o Sínodo, não está nas considerações sobre a formulação da norma. Por que, então, essa questão faz parte da sua proposição? Porque ela exige muito cuidado na linguagem que se utiliza para qualificar as pessoas fracas. Para ele as expressões ofensivas como “adúltero” ou “fornicador” não deveriam ser deduzidas necessariamente das normas gerais na hora de se referir às pessoas concretas.
Mas sua ênfase está posta antes na questão da eventual diminuição da responsabilidade e da culpabilidade. Os condicionamentos podem atenuar ou anular a responsabilidade e a culpabilidade diante de qualquer norma, mesmo frente aos preceitos negativos e às normas morais absolutas. Isso torna possível que nem sempre se perca a vida da graça santificante em uma convivência “more uxorio”.
Francisco considera que, mesmo conhecendo a norma, uma pessoa “pode estar em condições concretas que não lhe permitem agir de maneira diferente e tomar outras decisões sem uma nova culpa. Como bem expressaram os Padres Sinodais, “podem existir fatores que limitam a capacidade de decisão” (301). Fala de sujeitos que “não estão em condições de compreender, apreciar ou praticar plenamente as exigências objetivas da lei” (295). Em outro parágrafo reafirma essa ideia: “Em determinadas circunstâncias, as pessoas encontram grandes dificuldades para agir de maneira diversa” (302).
Além disso, recorda que São João Paulo II reconhecia que em determinados casos “o homem e a mulher, por motivos sérios – como, por exemplo, a educação dos filhos – não podem cumprir a obrigação da separação” (FC 84; AL 298). Observemos que São João Paulo II reconhecia que “não podem”. Bento XVI foi ainda mais contundente ao dizer que em alguns casos “se verificam as condições objetivas que tornam realmente a convivência irreversível” (SC 296).
Isto se torna particularmente complexo, por exemplo, quando o homem não é católico praticante. A mulher não está em condições de obrigar a viver em perfeita continência alguém que não compartilha todas as suas convicções católicas. Nesse caso, não é fácil para uma mulher honesta e piedosa tomar a decisão de abandonar esse homem que ela ama, que a protegeu de um esposo violento e que a libertou de cair na prostituição ou no suicídio. Os “motivos sérios” que São João Paulo II mencionava, ou as “condições objetivas” que Bento XVI indicava, são ampliados. Mas interessa, sobretudo, o fato de que, abandonando esse homem, ela deixaria sem pai e sem um ambiente familiar os filhos pequenos da nova união.
Não há dúvida de que, neste caso, a capacidade de decisão com relação à continência sexual apresenta, pelo menos por enquanto, graves condicionamentos que diminuem a culpabilidade e a imputabilidade. Portanto, exigem muito cuidado na hora de emitir juízos somente a partir de uma norma geral. Francisco pensa especialmente na “situação das famílias caídas na miséria, penalizadas de tantas maneiras, em que as limitações da vida se fazem sentir de forma lancinante” (AL 49). Diante destas famílias, é preciso evitar “impor-lhes um conjunto de normas como se fossem uma pedra, tendo como resultado fazê-las sentirem-se julgadas e abandonadas” (ibid.).
O Papa, fiel às possibilidades reais e limitadas abertas pelo Sínodo – e mesmo contra as propostas de moralistas progressistas –, preferiu manter a distinção entre pecado objetivo e culpa subjetiva. Portanto, mesmo que se possa afirmar com toda clareza e contundência que as relações sexuais dos divorciados em nova união constituem uma situação objetiva de pecado grave habitual, isso não implica que necessariamente exista pecado grave em sentido subjetivo, ou seja, culpa grave que prive da vida da graça santificante.
“A Igreja possui uma sólida reflexão sobre os condicionamentos e as circunstâncias atenuantes. Por isso, já não é possível dizer que todos os que estão em uma situação chamada ‘irregular’ vivem em estado de pecado moral, privados da graça santificante” (301).
Já está amplamente assumido – inclusive no Catecismo – que “a imputabilidade e a responsabilidade de uma ação podem ficar diminuídas ou suprimidas pela ignorância, inadvertência, violência, medo, hábitos, afetos desordenados e outros fatores psíquicos ou sociais” (CCE 1735).
No entanto, para Francisco, não são as circunstâncias concretas que determinam a moralidade objetiva. Que os condicionamentos possam diminuir a culpabilidade não significa que aquilo que está objetivamente mal passe a ser objetivamente bom. Basta ler a seguinte frase: “Por causa dos condicionamentos ou dos fatores atenuantes, é possível que uma pessoa, no meio de uma situação objetiva de pecado – mas subjetivamente não seja culpável ou não o seja plenamente – possa viver na graça de Deus” (305).
Ou seja, continua a ser uma “situação objetiva de pecado”, porque continua existindo uma proposta clara do Evangelho sobre o matrimônio, e esta situação concreta não a reflete objetivamente. Francisco, assim como o Sínodo, defende a existência de verdades objetivas e normas universais, e nunca defendeu o subjetivismo nem o relativismo. O projeto de Deus é o matrimônio entendido como união indissolúvel, e este ponto não foi posto em dúvida nem no Sínodo nem em seu pontificado.
Por outro lado, Francisco nunca afirmou que alguém pode comungar a menos que esteja na graça de Deus. Mas, como acabamos de ver, nem sempre é suficiente que haja uma falta objetiva grave para que alguém fique privado da graça santificante. Portanto, pode haver um caminho de discernimento aberto à possibilidade de receber o alimento da Eucaristia.
Isso só é possível caso se aceitar um modo diferente de apresentar as consequências da norma. Esta não admite exceções quanto à qualificação objetiva a partir de um preceito moral absoluto, mas admite, isso sim, um discernimento quanto às suas derivações disciplinares. Embora a norma seja universal, no entanto, “uma vez que o grau de responsabilidade não é igual em todos os casos, as consequências ou efeitos de uma norma não devem necessariamente ser sempre os mesmos” (AL 300). “E também não devem ser sempre os mesmos na aplicação da disciplina sacramental, dado que o discernimento pode reconhecer que, em uma situação particular, não há culpa grave” (nota 336).
A pergunta que surge é a seguinte: isso pode ser discernido no diálogo pastoral? O Papa acredita que sim, e é isso que abre caminho para uma mudança na disciplina. A grande novidade de Francisco está em admitir que um discernimento pastoral no âmbito do “foro interno” pode ter consequências práticas na maneira de aplicar a disciplina. A norma canônica geral é mantida (cf. 300), embora possa não ser aplicada em alguns casos em decorrência de um caminho de discernimento. Neste discernimento desempenha um papel central a consciência da pessoa concreta em sua situação real perante Deus, suas possibilidades reais e seus limites. Essa consciência, acompanhada por um pastor e iluminada pelas orientações da Igreja, é capaz de uma avaliação que proporciona um julgamento suficiente para discernir sobre a possibilidade de ter acesso à comunhão.
Implica isso que podemos emitir um juízo sobre o próprio estado de graça? São João Paulo II afirmou que “o juízo sobre o estado de graça, obviamente, cabe somente à pessoa em questão, tratando-se de uma avaliação de consciência”. Mas devemos esclarecer que se trata apenas de uma certa segurança moral, a única que alguém pode alcançar antes de se aproximar da comunhão. Nunca é uma certeza, por mais que alguém tenha consciência de não ter violado nenhum mandamento. O Concílio de Trento definiu que, olhando para nós mesmos, não podemos ter certeza sobre o nosso estado de graça (cf. sessão VI, cap. 9). Falamos então dessa “segurança moral” mínima que a pessoa pode atingir após um processo de discernimento pessoal e pastoral, que não deveria basear-se apenas em uma única norma geral.
Até agora, o discernimento sobre uma culpabilidade atenuada não permitia tirar consequências no âmbito externo ou disciplinar. As consequências disciplinares da norma permaneciam inalteradas, porque se fundavam apenas em uma falta objetiva contrária a uma norma absoluta. Francisco propõe dar um passo adiante. É verdade que a norma geral não é puramente disciplinar, mas está relacionada a uma verdade teológica, como a união entre Cristo e a Igreja que se reflete no matrimônio. Mas, às vezes, tiram-se “conclusões excessivas de algumas reflexões teológicas” quando são traduzidas em uma disciplina rígida que não admite discernimento algum. Este é o ponto em que Francisco faz uma mudança em relação à práxis anterior.
Essa mudança é possível e aceitável? Pode Francisco assumir o que foi ensinado por São João Paulo II e, ao mesmo tempo, abrir uma porta que estava fechada? Sim, porque é possível uma evolução na compreensão da Igreja sobre sua própria doutrina e suas consequências disciplinares. Vejamos alguns exemplos históricos.
Em 1832, o Papa Gregório XVI, em Mirari Vos, havia dito que é uma “sentença absurda e errônea, melhor dito, um delírio, que se tenha que admitir e garantir a qualquer pessoa a liberdade de consciência” (MV 15). No Syllabus de Pio IX (1864) a liberdade religiosa é condenada como um dos principais “erros”. Mas no século seguinte, o Concílio Vaticano II modificou substancialmente estas ideais tão estabelecidas (cf. DH 2-3). Uma evolução semelhante se deu na questão da possibilidade de salvação fora da Igreja católica.
Recordemos também o caso da escravidão: o Papa Nicolau V permitiu que o rei de Portugal tivesse escravos. Alguns anos depois, a Bula Romanus Pontifex (10.13), de 1455, reafirmou a permissão. E não se trata de um tema secundário, uma vez que tem a ver com a inalienável dignidade da pessoa humana. A partir destas mudanças na compreensão da doutrina houve, como consequência, várias mudanças na disciplina.
Não obstante, há quem argumente que estas comparações não são convincentes e insiste em que qualquer evolução deve ser realizada na mesma linha do que foi dito anteriormente pela Igreja. Seria uma espécie de “fixismo” magisterial. Mas, precisamente nos exemplos que acabamos de mencionar, observa-se que a evolução não se deu “na mesma linha” do que foi dito antes, pelo menos não na questão em si. Entre admitir a escravidão e não admiti-la em nenhum caso, há uma grande evolução. A continuidade está apenas na doutrina geral sobre a dignidade humana, mas não no ponto preciso que está em questão, onde a Igreja realmente evoluiu em sua compreensão.
Do mesmo modo, entre afirmar que só um católico pode salvar-se e sustentar que existe a possibilidade de salvação fora da Igreja, não há continuidade com respeito à questão em si mesma. É óbvio que a Igreja cresce em uma melhor compreensão da proposta do Evangelho, em uma visão mais completa e em novos modos de aplicar o ensinado. Mas alguns têm muita dificuldade para admitir que algo semelhante possa acontecer em questões relacionadas à sexualidade.
A verdade é que, mesmo na práxis relacionada ao tratamento disciplinar dispensado aos divorciados em segunda união, já houve mudanças importantes ao longo do último século. Recordemos que com os mesmos argumentos com que não se aceita que eles comunguem, no passado também se aplicava a eles “a proibição dos funerais e de qualquer ofício fúnebre público”. Isso mudou, sem que caíssem todas as convicções que davam sustentação àquela práxis.
Fundado em razões que se mantém, o Código de Direito Canônico anterior (de 1917) defendia uma disciplina que o Código atual (de 1983) não mantém: “Se, desprezando a reprimenda do Ordinário, permanecem na união ilícita, devem ser excomungados ou castigados com prejuízo pessoal, de acordo com a gravidade da culpa” (cânon 2336). Isso indica a possibilidade de mudanças na prática disciplinar que não fazem necessariamente cair por terra as grandes convicções que sustentavam a práxis anterior, mas consideram de outra maneira as eventuais consequências práticas da norma geral.
A Amoris Laetitia abre a possibilidade para uma nova mudança, que não implica uma contradição com o ensinamento anterior, mas uma evolução harmoniosa e uma continuidade criativa. O prestigiado filósofo Rocco Buttiglione – e especialista no pensamento de São João Paulo II – explicou isso muito bem:
“João Paulo II, de modo algum quer anular o papel da consciência subjetiva. O lado objetivo da ação decide sobre a bondade e a gravidade do ato. O lado subjetivo da ação decide sobre o nível de responsabilidade do agente [...] O Papa Francisco não se coloca no terreno da justificação do ato, mas das circunstâncias subjetivas atenuantes que diminuem a responsabilidade do agente. Este é precisamente o equilíbrio da ética católica e distingue a ética realista de São João Paulo II da ética objetivista de alguns opositores de Francisco [...] A Familiaris Consortio, por outro lado, no momento em que formula a regra, nos diz que não tolera exceções por uma razão proporcionada. A regra, segundo a qual alguém que não está na graça de Deus não deve receber a Eucaristia, por sua própria natureza não tolera exceções. Quem receber o corpo e o sangue de Cristo indignamente comeria e beberia sua própria condenação. A regra pela qual as pessoas em graça de Deus estão excluídas da comunhão como uma pena canônica pelo contra-testemunho que deram, ao contrário, pode estar sujeita a exceções, e é isso que diz a Amoris Laetitia”.
A expressão de Buttiglione, “pelo contra-testemunho que deram”, seria melhor precisá-la dizendo: “porque sua situação não responde objetivamente ao bem proposto pela norma geral”.
Confirmamos, uma vez mais, que isso não significa rebaixar um valor objetivo. O que Francisco propõe é a situação de uma pessoa que, em diálogo com o pastor, não apresenta os atos íntimos de uma convivência more uxorio como subjetivamente honestos, ou seja, como objeto de uma opção pessoal que os legitima. Apresenta-os apenas como difíceis de evitar em suas circunstâncias concretas, mesmo quando estiver sinceramente disposta a um crescimento neste ponto. As circunstâncias podem diminuir a culpabilidade, mas não transformar um ato desonesto por seu objeto em um ato que alguém possa justificar como escolha. De fato, a própria Amoris Laetitia rejeita a atitude de alguém que “ostenta um pecado objetivo como se fizesse parte do ideal cristão” (297). Portanto, está claro que Francisco não admite que esse ato seja justificável como uma “escolha pessoal”.
A Amoris Laetitia refere-se a pessoas conscientes da seriedade de sua situação, mas com “grande dificuldade para voltar atrás sem sentir, em consciência, que se cairia em novas culpas” (298). O fato de que a culpabilidade esteja diminuída pela simples razão de que a capacidade de decisão está fortemente condicionada, não significa apresentar sua situação como um projeto pessoal conforme ao Evangelho. Por esse motivo, não se encerra o discernimento, mas ele “é dinâmico e deve permanecer sempre aberto para novas etapas de crescimento e novas decisões que permitam realizar o ideal de forma mais completa” (303). Isso segundo uma autêntica compreensão da “lei da gradualidade” (295), que convida a responder cada vez melhor a Deus confiando no auxílio de sua graça.
Se o ato segue sendo objetivamente desonesto e não perde sua gravidade objetiva, então não pode ser “escolhido” com convicção, como se fizesse parte do ideal cristão. Menos ainda poder-se-ia dizer que, por essa “escolha de vida”, se torne subjetivamente honesto. Outra coisa muito diferente é propor que, como faz Francisco, em um contexto de culpabilidade atenuada, se busque responder à vontade de Deus com uma maior entrega, possível no contexto dessa situação. Por exemplo, com uma maior generosidade para com os filhos, ou com a decisão de assumir como casal um compromisso mais intenso pelo bem comum, ou com um amadurecimento no diálogo familiar, ou com o desenvolvimento de gestos mútuos de caridade mais frequentes e intensos, etc.
Estas tentativas podem ser objetos de uma “escolha pessoal”, e são exemplos desse “bem possível” que se pode realizar nos limites da própria situação (cf. EG 44-45; AL 308). São expressões da “via caritatis”, a que sempre podem recorrer “aqueles que tiverem dificuldades para viver plenamente a lei de Deus” (306). Situando-se nessa via, a consciência também está chamada a reconhecer “aquilo que, por enquanto, é a resposta generosa que se pode oferecer a Deus [...] a entrega que o próprio Deus está pedindo no meio da complexidade concreta dos limites” (303).
Não que tudo seja a mesma coisa, ou que agora “tudo dá na mesma”. A necessidade de evitar que se dissimule a seriedade da situação, explica por que o Papa coloca alguns limites firmes no discernimento proposto. Por exemplo, ele exclui o caso de “uma nova união que vem de um divórcio recente” ou “a situação de alguém que reiteradamente falhou com seus compromissos familiares” (298). Ao mesmo tempo, ele pede que as pessoas sejam orientadas para que reconheçam sinceramente a própria verdade, especialmente no que diz respeito a “como se comportaram com seus filhos” ou com o cônjuge abandonado (cf. 300).
Há limites que o discernimento não deve ultrapassar, especialmente quando está em jogo o reconhecimento do outro, ou quando ainda há pouca clareza acerca da própria situação. Não se rebaixa o Evangelho, menos ainda suas exigências de clareza, mas há uma encarnação do Evangelho nas possibilidades concretas da complexidade humana.
Nas discussões sobre a Amoris Laetitia alguns acreditam que o Papa quer outorgar à consciência das pessoas um poder para criar a verdade e as normas a seu bel prazer. Com essa argumentação, estes opositores a Francisco procuram obrigar os demais a assumir uma determinada lógica, dentro da qual não há saída. Assim, o Evangelho fica submetido a uma espécie de matemática teológica e moral. Assumida essa estrutura mental, não resta outra opção senão aceitar toda a lógica e as consequências dessa maneira de usar a razão. É uma armadilha mortal.
Não é a lógica que Francisco propõe aos pastores da época presente (cf. 296, 312). Além disso, ele rejeita a pretensão “daqueles que sonham com uma doutrina monolítica defendida sem nuances por todos” (EG 40). Reconhece o valor da razão para refletir sobre o Evangelho, e aprecia o diálogo entre a fé e a razão. Mas isto não implica canonizar “uma” razão, uma determinada maneira de raciocinar, uma filosofia à qual devem ser submetidos o Evangelho e a Igreja inteira. O Evangelho não se encerra em uma filosofia, porque “a pregação moral cristã não é uma ética estoica, é mais que uma ascese, não é uma mera filosofia prática nem um catálogo de pecados e erros” (EG 39).
Quando se absolutiza um determinado modo de usar a razão, somente aqueles que possuem essa estrutura mental poderão interpretar a doutrina e a Revelação, e, além disso, colocam-se a si mesmos acima do Papa. Desta maneira, se perderia a visão sobrenatural da Igreja e do ministério petrino. Alguém disse que se trata de um “pelagianismo intelectual”, porque uma determinada razão ocupa o lugar do Evangelho e da ação do Espírito em sua Igreja. As Escrituras só serviriam para ilustrar a lógica própria “dessa” razão, administrada por um grupo oligárquico de éticos.
De qualquer forma, recordemos o que disse Francisco sobre a importância da consciência, por exemplo, nos seguintes textos: “Custa-nos deixar espaço à consciência dos fiéis, que muitas vezes respondem da melhor forma que podem ao Evangelho no meio dos seus limites e são capazes de realizar o seu próprio discernimento perante situações em que se rompem todos os esquemas. Somos chamados a formar as consciências, não a pretender substituí-las” (AL 37). “A consciência das pessoas deve ser melhor incorporada na práxis da Igreja em algumas situações que não realizam objetivamente a nossa concepção de matrimônio” (302).
No entanto, Francisco não indica que se abandone a consciência de cada fiel completamente entregue ao seu próprio arbítrio. O que pede é um processo de discernimento acompanhado por um pastor. É um discernimento “pessoal e pastoral” (300), que, além disso, leva muito a sério “o ensinamento da Igreja e as orientações do bispo” (ibid.) e supõe a consciência “retamente formada” (302). Não é uma consciência que pretende criar a verdade como lhe compraz, ou adaptá-la aos seus desejos. Por parte do pastor, “nunca implica em esconder a luz do ideal mais pleno nem propor menos de quanto Jesus oferece ao ser humano” (307), e tampouco “um excessivo respeito na hora de propor o sacramento” (ibid.).
Alguns sacerdotes, que tendem a cair em uma discricionalidade irresponsável ou precipitada, provocando confusões, podem ser questionados. O Papa não ignora estes riscos que devem ser evitados (cf. 300). Cada Igreja local deverá encontrar o adequado equilíbrio através da experiência, diálogo e direção do bispo.
A proposta de Francisco é muito exigente. Seria mais fácil ou cômodo aplicar normas de maneira rígida e universal, querer que tudo seja “preto no branco” (305), ou partir de algumas convicções gerais e derivar conclusões inamovíveis sem levar em conta a complexidade da realidade e a vida concreta das pessoas. Mas essa rigidez cômoda pode ser uma traição ao coração do Evangelho: “Às vezes custa-nos muito dar lugar, na pastoral, ao amor incondicional de Deus. Pomos tantas condições à misericórdia que a esvaziamos de sentido concreto e real significado, e esta é a pior maneira de frustrar o Evangelho” (311).
Embora a questão do possível acesso à comunhão de alguns divorciados em segunda união tenha provocado grande rebuliço, o Papa procurou – em vão – fazer com que este passo fosse dado de uma maneira discreta. Por isso, após desenvolver os pressupostos desta decisão no corpo do documento, a aplicação à comunhão dos divorciados em segunda união tornou-se explícita em notas de rodapé.
Este cuidado explica-se porque, para Francisco, os capítulos “centrais” da Amoris Laetitia são aqueles “dedicados ao amor”, onde nos propõe uma bela tarefa com vistas a estimular “o crescimento, consolidação e aprofundamento do amor conjugal e familiar” (89). Ele nos pede para levar adiante “acima de tudo uma pastoral do vínculo, na qual se ofereçam elementos que ajudem quer a amadurecer o amor, quer a superar os momentos difíceis” (211), uma pastoral que estimule a comunhão, a entrega generosa, os laços da ternura e a pertença mútua.
Pois, em última instância, “o amor matrimonial não se estimula falando, antes de tudo, da indissolubilidade como uma obrigação, ou repetindo uma doutrina, mas robustecendo-o por meio de um crescimento constante sob o impulso da graça” (134). Seria muito bom trabalhar mais intensamente nesta linha, frente a um mundo obscurecido pelo individualismo confortável e superficial que enfraquece e destrói os laços.
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O capítulo VIII da Amoris Laetita. O que sobra depois do temporal. Artigo de Víctor Manuel Fernández - Instituto Humanitas Unisinos - IHU