06 Junho 2017
“Enquanto a Igreja no Brasil virou as costas aos pobres, ordenou mais padres e responsabilizou a Teologia da Libertação pela perda de fiéis, o que se assistiu foi uma sangria sem precedentes na história. Até agora não houve qualquer movimento explícito de reflexão sobre esta questão crucial por parte da hierarquia católica no Brasil”, escreve Mauro Lopes, jornalista, em artigo publicado no blog Caminho prá Casa. 05-06-2017.
Segundo ele, “o que tem acontecido, em parte por conta do fiasco, em parte pela liderança do Papa Francisco, é um estremecimento da aliança entre os moderados, que comandam a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e os grupos conservadores e carismáticos. Há sinais, ainda tímidos, de uma reconstrução da aliança entre os moderados e os progressistas, herdeiros da Teologia da Libertação”.
Houve três razões, nenhuma delas efetivamente teológica, que moveram o combate à Teologia da Libertação no Brasil e na América Latina a partir de 1978, início do pontificado de João Paulo II e durante todo o papado de Bento XVI, até 2013 – 35 anos, portanto. O presente artigo, apesar de mencionar as três, tem foco em duas delas e apresenta pesquisas recentes segundo as quais: i) ambas basearam-se em argumentos fraudentos; ii) o governo conservador da Igreja Católica no Brasil nesse período foi um rotundo fracasso.
As três razões:
1. A primeira tem fundo político-ideológico: demonizou-se a Teologia da Libertação como se fosse uma adesão ao marxismo e/ou comunismo, enquanto os dois papas e seus apoiadores eram e são arraigadamente capitalistas e defensores do direito à propriedade e à acumulação irrestrita de riquezas. A Igreja no Brasil virou as costas aos pobres como sujeitos da ação pastoral para fazer deles, no máximo, objeto de um olhar piedoso. O artigo não se deterá sobre este assunto.
2. A segunda razão foi eclesiológica (de ecclesia, Igreja) e vincula-se ao tema do poder: os dois papas, João Paulo II e Bento, a Cúria romana e a maioria da hierarquia católica no Brasil e América Latina consideram os leigos (pessoas que não são ordenadas sacerdotes) cidadãos de segunda categoria na Igreja. Defendem que a autoridade e o poder devem concentrar-se integralmente nas mãos da hierarquia. Para eles, todo o poder emana do clero e em seu nome será exercido – para implementar essa visão, amealharam apoio entre em sem número de leigos temerosos e oportunistas. É o que se chama clericalismo. As experiências das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e dos conselhos de leigos nas paróquias horrorizaram os conservadores, que as desarticularam. Para os defensores do clericalismo, uma Igreja circular, não hierárquica, romperia “o mistério”, tornando-a secular, banal, pois as pessoas comuns demandariam ritos de conotação mágica e subserviência à autoridade. Para os conservadores, a solução seria a obediência irrestrita dos leigos à hierarquia e investimentos que garantissem ordenação de mais padres e a abertura novas paróquias. A estratégia mostrou-se equivocada, como você verá nas pesquisas, mas serviu para concentrar o poder da Igreja nas mãos dos hierarcas.
3. A terceira motivação para a campanha de ódio e aniquilamento contra a Teologia da Libertação foi pragmática: os conservadores alegavam à época (segunda metade dos anos 1970) que os princípios, opções litúrgicas e prática pastoral de leigos, padres e teólogos vinculados de alguma maneira a esta corrente estavam afugentando os fiéis e esvaziando as igrejas.
O combate à Teologia da Libertação traduziu-se numa campanha sistemática de perseguição a cardeais, bispos, padres, freiras, teólogos e ativistas leigos nas paróquias e comunidades promovidas por Roma, com iniciativas similares da hierarquia local (veja, sobre isso, esclarecedora entrevista do padre Paulo Sérgio Bezerra ao blog, aqui). Vários gestos de João Paulo II e Bento XVI indicaram os novos rumos da Igreja, na contramão do Vaticano II, e autorizaram as campanhas. Alguns deles: os processos e punições nos anos 1980 e 1990 Leonardo Boff da Congregação para a Doutrina da Fé, dirigida por Joseph Ratzinger, a divisão da Arquidiocese de São Paulo, em 1989, com o objetivo de enfraquecer dom Paulo Evaristo Arns, a repreensão pública ao padre Ernesto Cardenal, aliado dos sandinistas na Nicarágua, por João Paulo II, em 1983; as seguidas repreensões ao arcebispo de San Salvador, dom Oscar Romero, sinalizando ao clero ultraconservador e aos militares do país que estava desautorizado pelo Papa, num claro sinal verde à campanha contra ele, até o assassinato por paramilitares durante a celebração da missa, em 1980.
Como se deu o governo da Igreja no Brasil nesses 35 anos? O primeiro passo foi o rompimento dos os moderados, pressionados por Roma e por seu desejo de fazer carreira na instituição, com os progressistas ligados de alguma forma à Teologia da Libertação. O segundo foi a composição de uma nova aliança dos moderados com dois segmentos: os conservadores “tradicionalistas” e a corrente “carismática”, os neopentecostais da Igreja Católica (cujas expressões mais barulhentas foram a Renovação Carismática Católica e a Canção Nova). Hoje é possível constatar que os restauracionistas, como qualifica o Papa Francisco (aqui), inimigos abertos ou velados do Concílio Vaticano II, campo que reúne tanto conservadores como carismáticos, vivenciam os primeiros sinais da crise de sua hegemonia de 35 anos, com a primavera em Roma.
Com a primavera, salta aos olhos o fracasso retumbante do governo de mais de três décadas: 1) a perda de fiéis católicos tornou-se uma torrente e 2) a Igreja deixou de ser protagonista, tornando-se mero objeto decorativo no sistema de dominação dos ricos do continente – mesmo em sua função de controle social/moral dos pobres, os conservadores viram sua influência ser transferida em boa medida para as correntes neopentecostais protestantes, das quais o pentecostalismo católico (os “carismáticos”) é uma cópia mal acabada.
O que aconteceu durante os 35 anos de hegemonia conservadora/carismática?
Veja a evolução do número de católicos no país desde 1872[1]:
Há um processo de redução da presença católica no país constatada pelas pesquisas desde fins do século 19. Ela apresenta uma pequena aceleração ao longo dos anos 1970 que se torna uma curva acentuada a partir da instalação do ciclo conservador/carismático: o percentual de católicos declarados nos censos despenca a uma velocidade brutal a partir dos anos 1980, caindo de 88,96% para 68,43% ao final da primeira década do século 21.
No ritmo atual, estima-se que num prazo entre 10 anos (DataFolha) e 20 anos (IBGE) o número de católicos será superado em pelo de evangélicos no Brasil, conforme as projeções realizadas por José Eustáquio Diniz Alves no portal EcoDebate – aqui e aqui.
A grande aposta da aliança moderada/conservadora/carismática de que o pentecostalismo católico seria barreira para a perda de fiéis mostrou-se uma ilusão. Conforme anota Paulo Fernando Carneiro de Andrade, a “estratégia pastoral de incentivar grupos carismáticos e os padres cantores com a espetacularização da fé em detrimento das Comunidades Eclesiais de Base não parece ter tido o sucesso esperado”. O pentecostalismo católico, cópia mal acabada daquele de origem protestante (por motivos que não cumpre desenvolver aqui) instalou uma “porta giratória” no catolicismo pela qual muitos saem e poucos retornam, pois, ao fim e ao cabo, “acabou por reforçar o conteúdo de verdade religiosa que se possa atribuir aos pentecostalismos evangélicos”.
Por isso, há uma constatação que se torna imperativa e tem sido escamoteada pela Igreja no Brasil: “os dados do Censo não permitem que se continue a sustentar uma acusação comum em muitos ambientes na década de 1980 de que teria sido a pastoral das Comunidades Eclesiais de Base e dos grupos de reflexão bíblico a responsável pela diminuição relativa dos católicos e aumento dos evangélicos”.[2]
Ao combater a descentralização do poder na Igreja e o protagonismo dos leigos e leigas, com destaque para o combate à liderança feminina, a aliança entre moderados, conservadores e carismáticos construiu um discurso segundo o qual o crescimento da Igreja institucional teria como consequência direta o incremento no número de católicos. Dito de outro modo: para eles, a falta de padres e paróquias seria responsável pelas dificuldades de enraizamento dos católicos.
Portanto, tratar-se-ia de implementar um projeto de criação de paróquias e ordenação de padres em larga escala para ampliar o número de católicos. A tese revelou-se um fiasco, pois a crise do catolicismo no país não é institucional, mas cultural: as pessoas olham para cardeais e bispos encastelados nas arquidioceses e padres nas paróquias e não enxergam verdade, autenticidade. Quem tem afirmado isto seguidamente é ninguém menos que o Papa Francisco.
Ao cruzarem os dados do Censo 2010 do IBGE com pesquisas do Centro de Estatística Religiosa e Investigação Social (Ceris), Carlos Alberto Steli e Rodrigo Toniol constataram que nas mais de três décadas de hegemonia conservadora à sangria de fiéis correspondeu um aumento ímpar da estrutura clerical (sacerdotes, diáconos e paróquias). Veja o quadro: é significativo que apenas uma dimensão do perfil eclesial no Brasil tenha encolhido, o de mulheres religiosas (freiras e monjas), que compuseram a linha de frente da Teologia da Libertação na base da Igreja e foram alvo dos ataques machistas e misóginos típicos do clericalismo[3].
O crescimento da estrutura clerical no país não se deu apenas em números absolutos. Há um enorme salto na proporção sacerdotes por habitante. Enquanto em 1980 – início da ofensiva conservadora- havia 8.347 fiéis para cada sacerdote, este número passou para 5.570 em 2010!
Portanto, enquanto a Igreja no Brasil virou as costas aos pobres, ordenou mais padres e responsabilizou a Teologia da Libertação pela perda de fiéis, o que se assistiu foi uma sangria sem precedentes na história. Até agora não houve qualquer movimento explícito de reflexão sobre esta questão crucial por parte da hierarquia católica no Brasil. O que tem acontecido, em parte por conta do fiasco, em parte pela liderança do Papa Francisco, é um estremecimento da aliança entre os moderados, que comandam a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e os grupos conservadores e carismáticos. Há sinais, ainda tímidos, de uma reconstrução da aliança entre os moderados e os progressistas, herdeiros da Teologia da Libertação.
Notas:
[1] Neri, Marcelo. Coordenador. Novo Mapa das Religiões. Rio de Janeiro, FGV, CPS, 2001.
[2] Andrade, Paulo Fernando Carneiro de. O Censo de 2010 e as religiões no Brasil: reflexões teológicas em uma perspectiva católica, in O Censo e as Religiões no Brasil. Bingemer, Maria Clara Luccchetti e Andrade, Paulo Fernando Carneiro de, orgs. Rio de Janeiro, 2014. Editora PUC-Rio e Editora Reflexão. P. 118.
[3] Steil, Carlos Alberto. Toniol, Rodrigo. O catolicismo e a Igreja Católica no Brasil à luz dos dados sobre religião no Censo de 2010, in O Censo e as Religiões no Brasil. Bingemer, Maria Clara Luccchetti e Andrade, Paulo Fernando Carneiro de, orgs. Rio de Janeiro, 2014. Editora PUC-Rio e Editora Reflexão. P. 19-25.
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Perseguição à Teologia da Libertação baseou-se em duas fraudes, indicam pesquisas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU