12 Mai 2015
O simples fato de dizer a expressão “teologia da libertação” ao lado de alguns católicos já era o suficiente para dar início a uma luta de nível cismático, ou pelo menos para que alguém erguesse uma bandeira vermelha de alerta em Roma.
O movimento teológico que tinha os pobres em seu centro surgiu da busca pela justiça social no seio da Igreja da década de 1960, porém sempre sendo visto pelos conservadores como uma versão irremediavelmente marxista do Evangelho.
A reportagem é de David Gibson, publicada por Religion News Service, 07-05-2015. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Pior, eles diziam que se tratava de uma ferramenta dos comunistas soviéticos, os quais estariam usando a Igreja Católica para fomentar a revolução na América Latina e alhures.
A eleição, em 1978, de João Paulo II – papa polonês que conhecia a ameaça soviética muito bem –, seguida da eleição de Ronald Reagan para a presidência dos EUA em 1980, marcou um ponto de inflexão desta batalha.
Reagan e João Paulo ajudaram a derrubar o império soviético, com o papa empreendendo uma campanha dentro da Igreja – auxiliada por seu chefe doutrinal, o Cardeal Joseph Ratzinger, que mais tarde se tornaria o Papa Bento XVI – para anular a Teologia da Libertação e silenciar a maior parte de seus apoiadores.
Hoje, no entanto, temos uma história completamente diferente – e, se escutarmos o Pe. Gustavo Gutierrez, sacerdote dominicano conhecido como o pai da Teologia da Libertação, iremos nos perguntar o porquê de todo esse alarido.
“A Teologia da Libertação, desde a primeira linha do livro até a última, é contra o marxismo”, disse Gutierrez na quarta-feira (6 de maio) num evento em sua homenagem no campus da Fordham University, em Manhattan. O livro a que se referia era a importante obra de 1971: “Teología de la liberación. Perspectivas” [1].
Para Karl Marx, o cristianismo era uma forma de “opressão”, disse ele. Mas Gutierrez, de 85 anos, disse que a obra de sua vida está comprometida com a visão de que o “cristianismo é libertação”.
Quem iria discordar disso? Certamente não o Papa Francisco, que coloca a pobreza – e os pobres – no topo das prioridades da Igreja. Francisco ignorou os rótulos de “marxista” e “comunista”, até mesmo dizendo em 2013: “Conheci muitos marxistas que são boas pessoas, então não me sinto ofendido”.
Ao enfatizar a “opção preferencial pelos pobres”, o papa ajudou a trazer a Teologia da Libertação para dentro do aceitável.
O jornal do Vaticano, L’Osservatore Romano, escreveu que, com a eleição de Francisco, a Teologia da Libertação não pode mais “permanecer nas sombras às quais foi relegada durante muitos anos”. Francisco tem um aliado em seu próprio chefe doutrinal – um teólogo alemão: o Cardeal Gerhard Müller, nomeado por Bento XVI para conduzir a Congregação para a Doutrina da Fé – CDF.
Antes de assumir a dianteira da CDF, Müller ia, uma vez por ano durante 15 anos, ao Peru, onde ensinou teologia nas regiões mais pobres e se tornou amigo próximo de Gustavo Gutierrez – além de uma espécie de convertido da Teologia da Libertação.
Com efeito, no ano passado Gutierrez participou do lançamento de um livro escrito por Müller: “Pobre para os pobres: a missão da Igreja” [2].
Eis um longo caminho desde os dias em que a Congregação que Müller preside investigava e censurava os teólogos da libertação (Gutierrez mesmo nunca foi disciplinado).
Na próxima semana, este processo de reabilitação dará um outro passo à frente quando Gutierrez participará de uma coletiva de imprensa oficial do Vaticano para lançar um importante encontro da Caritas Internationalis, braço da Igreja para as obras de caridade.
Estamos diante de uma notável mudança no rumo dos acontecimentos, de um homem diminuto que anda com a ajuda de uma bengala, que gesticula energicamente com suas mãos e fala um inglês hesitante.
Gutierrez, em certo sentido, é o Yoda do catolicismo: uma presença pequena porém sábia, que conheceu a vituperação e o exílio, e que agora pode ver a obra de sua vida reivindicada – talvez até o ponto de que o seu ensinamento sobre os pobres seja parte da arquitetura da Igreja, e não uma ameaça a suas bases.
“O nome ‘Teologia da Libertação’, talvez nós não o precisamos, me entendem?”, disse ele em uma animada discussão de 90 minutos diante de um auditório lotado. “Libertação significa salvação. A Teologia da Libertação é a teologia da salvação, isto quer dizer: comunhão. Não estou exatamente preocupado com o futuro da Teologia da Libertação”, disse. “A minha principal inquietação é com o futuro do meu povo e da minha Igreja”.
Mesmo assim, nem todos estão aceitando de bom grado este momento.
Gutierrez recordou um líder evangélico americano que veio visitá-lo e que imediatamente lhe perguntou sobre a posição da Teologia da Libertação no conflito entre israelenses e palestinos.
“Meu amigo”, respondeu Gutierrez, “o senhor acha que a Teologia da Libertação é um partido político e que eu sou o seu secretário-geral?
Esta sua resposta arrancou risadas, mas ainda assim existem alguns, especialmente na direita católica, que acreditam que a Teologia da Libertação era um complô comunista e que pessoas como Gutierrez estão promovendo uma ameaça que sobreviveu à União Soviética e à KGB.
Neste mês, o sítio eletrônico Catholic News Agency publicou uma entrevista com Ion Mihai Pacepa, que trabalhou na polícia secreta da Romênia comunista antes de desertar para os EUA em 1978. Nela, Pacepa sustentou que a Teologia da Libertação nasceu, em verdade, na “KGB e que (...) tinha um nome inventado pela KGB”.
Ainda que amplamente considerada uma afirmação fantasiosa, não foi o suficiente para impedir que alguns adotassem a tese, ou que Pacepa deixasse de apontar um dedo de culpa aos teólogos da libertação, principalmente Gutierrez: “Recentemente, dei uma olhada no livro de Gutierrez” sobre a Teologia da Libertação “e tive a sensação de que ele fora escrito na Lubyanka”, referindo-se à sede infame da KGB em Moscou.
Quando perguntado, na Fordham University, sobre tais afirmações, Gutierrez simplesmente apontou o dedo para a sua cabeça e o girou, indicando o quanto considera malucos tais dizeres. “Isso não merece dois minuto de atenção”, disse ele.
Gutierrez parece mais preocupado com Francisco e a oposição que este vem enfrentando em seu papado. Observou que os críticos frequentemente acusam o papa de ser marxista, estando angustiados com o desejo do pontífice em ter uma “Igreja pobre para os pobres” – mantra que poderia decorrer, em linha reta, de Gutierrez e de suas opiniões sobre o que se encontra no cerne da mensagem de Jesus.
“Não podemos achar que ele [o Papa Francisco] está sozinho nesta sua luta de retorno aos Evangelhos”, disse Gutierrez. “Ela deve ser uma luta nossa também”.
Notas:
[1] Ver GUTIÉRREZ, G. Teologia da Libertação. Perspectivas. São Paulo: Edições Loyola, 2000.
[2] Ver MÜLLER, G. L. Pobre para os pobres: a missão da Igreja. Paulinas, 2014.
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Fundador da Teologia da Libertação desfruta de uma reabilitação tardia sob o Papa Francisco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU