19 Abril 2017
A Páscoa é a "festa mais solene" do calendário da Igreja.
Mas esta comemoração anual da paixão, morte e ressurreição de Jesus Cristo - estendida por um período de três dias da Semana Santa, conhecida como Tríduo Sagrado - na verdade acontece todos os domingos.
O comentário é de Robert Mickens, publicado por Commonweal, 17-04-2017. A tradução é de Luísa Flores Somavilla.
"Por tradição apostólica, que tem a sua origem no próprio dia da Ressurreição de Cristo, a Igreja celebra o mistério pascal todos os oito dias, no dia do Senhor ou domingo."
Isso está no documento do Concílio Vaticano II (1962-65) sobre a liturgia, Sacrosanctum Concilium.
O documento observa que "devem os fiéis reunir-se" aos domingos "para que, ouvindo a palavra de Deus e participando na Eucaristia, celebrem a memória da Paixão, Ressurreição e glória do Senhor Jesus". (SC, 106)
O Concílio declarou claramente que a Eucaristia é a fonte e ápice da vida cristã e de toda a sua atividade.
E em sua provisão sobre a vida e o ministério sacerdotal, o Vaticano II diz que é impossível construir uma comunidade cristã verdadeiramente "a menos que [ela] seja baseada e centrada na celebração da mais sagrada Eucaristia" (Presbyterorum Ordinis, nº 6).
Por isso a necessidade de sacerdotes, mais propriamente conhecidos como presbíteros; pessoas ordenadas e sancionadas pelas autoridades da Igreja (os bispos) para presidir a liturgia eucarística, a missa.
Mas há uma grave escassez de presbíteros ordenados em quase todas as partes do mundo na Igreja, exceto em alguns países da África e da Ásia. E essa "crise vocacional" não é novidade. Seus primeiros sinais começaram a aparecer antes mesmo do surgimento do Concílio Vaticano II.
Mas Paulo VI (papa entre 1963 e 1978) sufocou qualquer discernimento sério sobre como responder efetivamente ao problema quando proibiu os padres conciliares de questionar o celibato sacerdotal obrigatório ou deliberar sobre a possível ordenação dos chamados viri probati - homens casados de virtude comprovada.
Na verdade, o Concílio nunca teve uma discussão séria sobre a questão mais ampla e importante dos ministérios (em geral) na Igreja ou sobre como discernir, reconhecer, distinguir e verificar os diferentes carismas (dons espirituais) que Cristo concede ao Santo Povo de Deus.
"A uns ele constituiu apóstolos; a outros, profetas; a outros, evangelistas, pastores, doutores, para o aperfeiçoamento dos cristãos, para o desempenho da tarefa que visa à construção do corpo de Cristo", diz São Paulo (Ef. 4: 11-12).
O diaconato, o presbiterato e o episcopado são manifestações limitadas, ainda que necessárias, desses carismas. E ao longo dos séculos a autoridade da Igreja tentou circunscrever todos esses dons nessas Ordens Sagradas. E, ao fazê-lo, pode ter limitado e/ou resistido ao trabalho do Espírito Santo.
Na década seguinte ao Vaticano II, muitos teólogos e até mesmo alguns bispos tentaram manter a discussão ao mesmo tempo em que exploravam algumas questões que iam além ou nunca haviam sido mencionadas no Concílio.
No entanto, tudo isso foi interrompido repentinamente pouco depois da eleição do Papa João Paulo II, que rapidamente impôs uma dura disciplina a toda a hierarquia a partir dos escritórios centralizadores em Roma.
Acabou a discussão sobre a possibilidade de ordenar os viri probati. Não havia mais nenhum questionamento sobre a obrigação do celibato. Sacerdotes mulheres? Esqueça disso e de seu trabalho na Igreja (ou mesmo seu pertencimento nela), nem se toca no assunto.
Então, em 1990, o Papa polonês e seus auxiliares no Vaticano muniram o Sínodo dos Bispos para reforçar consistentemente o paradigma tridentino do sacerdócio e seu modelo de formação do seminário sem questioná-lo. O ethos e a estrutura básica da formação sacerdotal e do ministério, que remontam ao século XVI, ganharam nova roupagem com a semântica contemporânea e o leve tempero de uma pedagogia psicológica e sociológica atualizada.
O documento que João Paulo II emitiu dois anos depois para recapitular aquela assembleia sinodal, Pastores Dabo Vobis, era assustadoramente retrógrado e inclusive apoiava a reabertura dos seminários no ensino médio, a maioria dos quais estavam fechados havia muito tempo, por bons e sensatos motivos.
No entanto, a crise vocacional continuou. Por mais que houvesse um crescimento constante, embora modesto, no número de seminaristas durante o pontificado de João Paulo II, não foi o suficiente para substituir um clero que envelhecia - ou acompanhar o crescente número de católicos.
O que aconteceu depois é bem conhecido. Os bispos começaram a fechar ou juntar paróquias. E logo ficou claro que as comunidades centradas na Eucaristia, que o Concílio Vaticano II dizia serem imperativas, haviam sucumbido e tornaram-se (ou, na verdade, sempre foram) comunidades centradas no sacerdote.
E, é claro, o sacerdote tinha que ser um homem - e um homem disposto a fazer uma promessa de viver o celibato e ser obediente ao seu bispo.
Sem outras possibilidades, o que os bispos podiam fazer? Não podiam ordenar homens casados ou reintegrar sacerdotes que haviam saído para se casarem. Que bispo em perfeito juízo ousaria fazer esta tentativa no longo reinado de Il Santo Subito?
Cada vez mais bispos de países onde a escassez era mais e mais grave (especialmente nos Estados Unidos, na Austrália e em partes da Europa) começaram a "importar" sacerdotes estrangeiros. Alguns destes clérigos vinham de dioceses na Índia e na África, lugares que Roma saudou como sendo "abençoados" com várias vocações. Mas outros eram homens jovens de países (como na América Latina) onde a proporção entre sacerdotes e pessoas ainda era maior do que nos lugares de fora do país que os recrutavam.
Há varias questões complexas ligadas a essas "importações" que precisam ser cuidadosamente discutidas. Qual é a sua verdadeira motivação para abandonar o seu país de origem, especialmente os que advêm de países pobres ou subdesenvolvidos? O quanto estão dispostos e conseguem se adaptar a uma nova cultura? E também há as questões normais que devem ser feitas a qualquer um que acredita ser chamado ao sacerdócio - sua maturidade psicossexual, compromisso de servir e não ser servido, e assim por diante.
Às vezes, importar sacerdotes funciona, mas, em muitos casos, não.
Na semana passada, o arcebispo Tommaso Valentinetti, de Pescara-Penne, teve que suspender um sacerdote da Índia incardinado em sua diocese na região central da Itália. O Padre Edward Pushparaj, 40 anos, foi ordenado há apenas quatro anos.
Os paroquianos haviam reclamado ao arcebispo durante várias semanas que o padre estava constantemente criticando o Papa Francisco. As coisas ficaram feias no Domingo de Ramos, quando Pe. Pushparaj usou sua homilia na Festa da Paixão do Senhor para atacar o Papa. Alguns fiéis chegaram a sair da igreja protestando e gritando: "Você deveria ter vergonha!"
De acordo com o arcebispo Valentinetti, ele estava usando o velho discurso anti-Francisco dos "círculos clericalistas e pseudotradicionalistas".
O que é mais preocupante nesta história é que ele obviamente não foi bem instruído antes de ser ordenado. Uma simples pesquisa sobre o contexto, que poderia facilmente ser feita na Internet, já poderia ter colocado uma pulga atrás da orelha imediatamente.
O fato é que realmente não faltam vocações para o serviço sacerdotal.
Pushparaj foi para o seminário em sua cidade natal no sul da Índia, onde começou com catorze anos. Ele continuou estudando filosofia e teologia, mas depois interrompeu seu caminho rumo ao sacerdócio - por cerca de seis anos.
"Deus queria que eu continuasse minha formação fora do seminário", disse ele em uma entrevista gravada em janeiro de 2013, poucas horas antes de o arcebispo Valentinetti lhe ordenar diácono.
Pushparaj veio para a Itália no outono de 2008. Por quê? "Deus me queria aqui", disse ele de novo.
Como recém-chegado de trinta e um anos de idade, ele se juntou aos Beneditinos Olivetanos na cidade de Ferrara, ao norte da Itália, e depois se mudou para outro mosteiro em Bolonha. Ele disse que um padre idoso de Pescara-Penne, que já havia falecido, foi quem o levou a ir para a arquidiocese.
Nenhum bispo está além da crítica - nem mesmo o bispo de Roma. Mas os sacerdotes não têm o direito de usar a homilia durante a celebração da Eucaristia - principalmente durante a Semana Santa - para alfinetar o Papa!
Mas mesmo se o Pe. Pushparaj fosse um grande devoto do Papa Francisco, há algo errado em seu perfil ou o modo como ele e muitos outros sacerdotes estrangeiros vão para lugares em que as vocações estão diminuindo. Eles são peões em uma cínica estratégia paliativa empregada pelos bispos.
O fato é que realmente não faltam vocações para o serviço sacerdotal. O que acontece é que as autoridades da Igreja se recusam a aceitar os que têm o carisma e sentem o chamado. Homens casados ou aqueles que gostariam de se casar; mulheres em qualquer categoria; aqueles que por qualquer razão não querem firmar um compromisso de vida com o ministério, mas estariam dispostos a servir por um tempo - todos estes são desqualificados como candidatos.
Isto tem de ser repensado, porque uma Igreja que insiste em ficar presa à regra não divina do celibato obrigatório quando há uma escassez de sacerdotes tão severa priva o Santo Povo de Deus da Eucaristia pela qual está sedento. Isso não apenas é uma injustiça, mas também pode ser um ato de oposição ao Espírito Santo.
O Papa Francisco assinalou que está disposto a permitir a ordenação, pelo menos, dos viri probati. Mas pessoas próximas a ele, como os cardeais Walter Kasper e Christoph Schönborn, dizem que o Papa quer que as conferências episcopais nacionais tomem a iniciativa.
De fato, Francisco foi muito claro em sua exortação apostólica, Evangelii Gaudium, de que não é o papel do magistério papal dar "uma palavra definitiva ou completa sobre todas as questões que dizem respeito à Igreja e ao mundo".
Ele disse: "Não convém que o Papa substitua os episcopados locais no discernimento de todas as problemáticas que sobressaem nos seus territórios. Neste sentido, sinto a necessidade de proceder a uma salutar ‘descentralização’.” (EG, 16).
Francisco está implorando aos bispos e a todos os fiéis para que se unam para reformar e renovar a Igreja.
"Convido todos a serem ousados e criativos nesta tarefa de repensar os objetivos, as estruturas, o estilo e os métodos evangelizadores das respectivas comunidades", diz ele (EG, 33).
Mas muitos bispos parecem não conseguir fazer o que o Papa está pedindo, especialmente em relação ao sacerdócio. Por muito tempo eles tiveram medo de ponderar sobre qualquer mudança nos critérios que o paradigma tridentino impôs sobre como a Igreja identifica e seleciona seus presbíteros.
E é uma amarga ironia que o agora-santo Papa João Paulo II - o mesmo que iniciou seu pontificado dizendo: "Não tenha medo!" - tenha sido quem incutiu esse temor nos bispos (e todos os que buscavam tornar-se parte do episcopado) ao proibir qualquer discussão ou discernimento, qualquer ato criativo ou ousado para explorar possíveis mudanças.
Mas é exatamente isso o que o Papa Francisco está pedindo: soluções ousadas e criativas para todos os problemas que inibem o ministério e a missão da Igreja. E a crise das vocações é uma das principais.
Apesar de o Papa ter cutucado, muitos bispos permanecem paralisados pelo medo. Eles e muitos sacerdotes permanecem imobilizados no clube clerical de seu celibato, fraternidade ou casta exclusivamente masculina.
Mas nem todos.
Há aqueles para quem o pontificado de Francisco oferece encorajamento e permissão para se posicionar. E pode ter certeza de que pelo menos um deles deve levantar a voz quando o Papa convocar o Sínodo dos Bispos em outubro de 2018 para discutir os jovens e o discernimento vocacional.
Talvez seja um funcionário do Vaticano como o Cardeal Kevin Farrell. Ou talvez seja novamente um líder da Igreja de língua alemã ou alguém da América Latina.
Pode ser inclusive que o apelo profético a uma solução criativa e audaciosa para a crise venha de um religioso dos Estados Unidos, alguém como o Cardeal Joseph Tobin de Newark.
Ou talvez... só talvez, virá de um futuro cardeal, como Robert McElroy em San Diego.
Quem será impelido pelo Espírito Santo a se pronunciar?
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Quem vai se pronunciar para resolver a crise das vocações? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU