24 Março 2017
Antonio Menacho, jesuíta espanhol, amigo e companheiro de formação e trabalho, escreve a respeito do legado do jesuíta Luís Espinal, por ocasião do aniversário de seu assassinato, no dia 21 de março de 1980, em artigo publicado no sítio do Apostolado Social da Conferência de Provinciais Jesuítas da América Latina, 23-03-2017. A tradução é do Cepat.
Eis o artigo.
Ainda não se escreveu uma verdadeira biografia sobre Luís Espinal. Houve muitas publicações centrando-se em diversos pontos de sua personalidade, de seu trabalho e seu compromisso como crítico de cinema, como professor de jornalismo e de ética da comunicação e, sobretudo, sua liberdade de espírito sabendo-se perseguido e com sua vida posta a preço... Muito é o material para uma biografia plena e confiável, mas ainda não apareceu o autor interessado e disponível.
Só podemos agora nos fixar nos traços mais destacáveis de sua rica personalidade. Serve para manter e animar a lembrança de um cristão e jesuíta cuja memória continua sendo muito viva no povo simples da Bolívia, que fez de sua vida, sua memória e seu túmulo um verdadeiro santuário: “Vox populi, diriam na Igreja primitiva, vox Dei”.
Por isso, acredito que Luís Espinal é recordado não só, nem primordialmente, por sua tortura e seu martírio, mas, sobretudo, porque quis e soube se identificar com os sofrimentos do povo, com uma luta incansável pela justiça, pela liberdade e pela paz, sempre distante de tudo o que fosse violência. Antes que os jesuítas expressassem sua missão como “o serviço da fé e a promoção da justiça”, Luís Espinal já era testemunha dessa meta vivida em sua vida diária.
De Luís Espinal se escreveu primordialmente sobre os doze anos (1968-1980) que esteve na Bolívia. Doze anos em que vivia uma situação muito diferente da atual. Anos próximos ao fim do Concílio, Medellín e Puebla com sua mensagem de compromisso da Igreja com o mundo e o mundo dos pobres, ditaduras militares na Bolívia e em várias nações da América Latina, e anos em que surgiu com força a teologia da libertação. Circunstâncias muito diferentes das atuais, inclusive, pensando na primavera eclesial que é preconizada pela figura e o carisma do papa Francisco.
O profetismo de Lucho Espinal não pode ser compreendido sem localizá-lo nesse contexto. É necessário valorizar sua liberdade profética de expressão, em circunstâncias nas quais as liberdades em geral estavam bloqueadas pelos governos ditatoriais.
A personalidade de Lucho Espinal já estava bem formada quando chegou a Bolívia, e as circunstâncias da Bolívia a colocaram à prova.
Olhando em conjunto sua vida, vemos que a maior parte dela se deu na Companhia de Jesus. Nasceu em Sant Fructuós, muito perto de Manresa, em uma região muito influenciada pelos jesuítas. Estudou os últimos cursos de seu bacharelado em um internato de aspirantes a ingressar na Companhia. Um jesuíta professor seu naqueles anos, quando soube da notícia de sua morte, recordava que, nos anos de estudante o chamavam “Luís um jovem todo coração”.
Um companheiro de seus anos de estudante jesuíta escreveu: “nós, seus companheiros, percebíamos em Espinal uma profunda vivência espiritual, uma rica interioridade, sua disponibilidade para servir e ajudar aos demais. Era sério, melhor, reservado, algo tímido, exigente consigo mesmo, mas amável com os demais, alegre, vitalista, engenhoso, com fino sentido de humor”.
Seu primeiro destino na Companhia foi como professor de humanidades dos mais jovens companheiros jesuítas. Sua sensibilidade estética e humanista já era, então, manifesta a seus superiores.
Estudou teologia em tempos nos quais se colocava em questão a teologia escolástica, em contraste com as correntes teológicas que animaram a alma do Concílio Vaticano II. Nesses anos, fundou-se, precisamente na Faculdade em que ele estudava, a revista Seleciones de Teología, ainda hoje existente, na qual Luís Espinal teve uma notável participação na equipe fundadora.
Encerrada a teologia, estudou jornalismo e audiovisuais em Bérgamo (Itália). Encerrados os estudos, começou a trabalhar entre outras atividades na Televisión Española; mas seus programas, sobre temas candentes da realidade social, foram submetidos a uma censura que Lucho não quis aceitar. Renunciou a esse trabalho e pediu para ser destinado a Bolívia.
Nos doze anos em que viveu na Bolívia, houve oito governos militares, com dois breves espaços de alguns meses de presidentes civis. O longo governo do general Bánzer (1971-1978) foi forçado a convocar eleições livres graças a uma massiva greve de fome que Luís Espinal apoiou e da qual participou. Expressou sua experiência de 22 dias de greve em um de seus mais significativos escritos.
Nesses vaivéns da vida da Bolívia, ouviu-se a voz de Espinal na rádio Fides (dos jesuítas), nos jornais Presencia e Última Hora, e no semanário Aquí, que dirigiu por dois anos até o seu martírio.
Sua voz foi a voz dos pobres, que clamava por justiça, sempre a partir de uma postura cristã e uma grande liberdade de espírito, denunciando as injustiças e as brutalidades que eram cometidas.
Era consciente do efeito que suas palavras causavam nos donos do poder e sabia que estava ameaçado de morte. Seu ditado, nos anos da juventude, que “havia nascido para ser santo ou para ser bandido”, foi uma profecia que se cumpriu na noite em que, após várias horas de torturas espantosas, foi arrematado com balas. Sua morte causou uma grande comoção popular. Dezenas de milhares de pessoas o acompanharam na tarde de seu enterro. Seu túmulo é visitado diariamente: sempre cheio de flores.
Luís Espinal, além de suas centenas de artigos e editoriais, publicou vários livros sobre cinema, fez curtas-metragens e colaborou em vários filmes. Deixou também uma série de orações breves, com as quais encerrava a programação diária na Rádio Fides. Foram imprimidas dezenas de edições com o título “Orações a queima-roupa”. Nelas se mostra a espiritualidade profunda, a sensibilidade aprimorada para detectar a dor, a pobreza e os sofrimentos da humanidade e sua profunda maneira de se dirigir a Deus e a Jesus. É a melhor demonstração que chegou à meta de “encontrar a Deus em todas as coisas”, conforme Santo Inácio apresenta como ideal a seus seguidores.
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O legado do jesuíta Luís Espinal - Instituto Humanitas Unisinos - IHU