18 Janeiro 2017
Antes de Amazonas, Roraima e Rio Grande do Norte, havia o Maranhão. E antes ainda, há pouco mais de dez anos, eram as prisões do Espírito Santo que dominavam as manchetes por causa de rebeliões que terminavam com mortes brutais - incluindo decapitações -, colocando em evidência a superlotação, a falta de estrutura e os problemas de gestão das cadeias do Estado.
A reportagem é de Camilla Costa, publicada por BBC Brasil, 17-01-2017.
Para driblar a falta de vagas, contêineres eram usados como celas dentro de unidades prisionais à época, criando ambientes tão quentes e insalubres que acabaram apelidados de "micro-ondas". Uma situação que chegou a ser denunciada por ativistas e juristas a organismos internacionais de defesa de direitos humanos.
O caos acelerou o início de uma reestruturação do sistema prisional, que, segundo o governo estadual, foi a principal responsável pela redução do número de mortes nas prisões do Espírito Santo. Em 2016, nenhum assassinato foi registrado.
"Arquitetura prisional" é uma das expressões mais usadas pelo secretário de Justiça, Walace Tarcísio Pontes, ao explicar para a BBC Brasil como o Estado passou de exemplo de crise a exemplo de gestão.
O governo investiu cerca de R$ 500 milhões na reforma e construção de presídios. Eram 13 unidades em 2005 e são 35 em 2017, com mais três previstas para o próximo ano. Mas o mais importante, segundo Pontes, é a forma como foram construídas.
"Hoje, não temos mais o 'cadeião', aqueles quadriláteros em que você jogava um monte de gente, com vigilância nos muros. O espaço das prisões não permitia que o Estado implantasse políticas públicas", disse.
As prisões capixabas agora seguem um modelo arquitetônico criado nos Estados Unidos, no qual os detentos ficam divididos em três galerias de celas que não se comunicam.
Os edifícios também têm salas específicas onde os presos podem ter aulas - escolas funcionam em 29 unidades - e participar de oficinas profissionalizantes, além de espaços para atendimento médico.
De acordo com Pontes, a nova estrutura permitiu que o governo aumentasse o controle sobre o dia a dia e implantasse iniciativas de ressocialização que ajudam a diminuir a tensão nos presídios.
O rigor no tratamento dos detentos, no entanto, ainda é criticado por juristas do Estado, que apontam ocorrências de maus-tratos, violação de direitos e problemas causados pela superlotação.
O Espírito Santo reduziu drasticamente seu deficit de vagas entre 2003 e 2014, mas ainda é um dos que mais prende no país.
"Há avanços, sem dúvida. Não temos situações graves como em outros Estados hoje em dia. Mas não é o paraíso que estão pintando", disse à BBC Brasil o advogado e pesquisador da Universidade Vila Velha (UVV) Humberto Ribeiro Jr., que é membro da Comissão Estadual de Combate à Tortura.
O controle das cadeias, segundo o secretário de Justiça, passa pela oferta de assistência material, educacional, jurídica e de saúde aos detentos - ideia que, admite, não é sempre apoiada pela população, apesar de estar prevista na lei brasileira.
"As pessoas têm que entender que o problema não se resolve no tacape e que as soluções não aparecem da noite para o dia", diz.
Mas, além da oferta de assistência, Pontes defende também um controle rígido sobre as interações dos presos, inclusive com seus familiares.
"Proibimos que a família envie malotes com objetos para os detentos, por exemplo. Agora, o Estado dá um kit de higiene. Senão, além de causar fragilidade pela introdução de coisas que você não tem controle dentro do sistema, você cria moedas de troca. No início isso deu muito problema, convulsionou muito as prisões, mas não permitimos", afirma.
"Hoje, temos pouco mais de 70% das nossas unidades com assistência de saúde dentro delas. Queremos universalizar ao longo desse ano. Mas isso ajudou muito. Um preso com dor de dente inicia uma rebelião. Uma comida estragada tensiona o sistema."
Os governos dos últimos anos também implantaram programas de educação e capacitação profissional dos detentos. Hoje, segundo a secretaria, o Estado tem cerca de 3,5 mil presos estudando nas unidades, com o mesmo currículo da rede pública.
Além disso, cerca de 2,5 mil trabalham, seja em fábricas instaladas dentro das prisões de regime fechado, seja saindo das unidades de regime semiaberto para retornar no fim do dia.
"Precisamos de mais parceiros para oferecer cursos e de mais empresas querendo contratar os detentos. O que não falta é preso que quer trabalhar, mas não temos vagas suficientes para todos. Eles disputam as que são oferecidas", afirmou Pontes.
"Conheci os presídios antes das reformas por dentro e também os conheço hoje. Houve uma melhora muito grande. Não há como discutir", contou à BBC Brasil o advogado Clécio Lemos, professor de Direito Penal e criminologia na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) e coordenador estadual do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais.
Mesmo assim, avalia ele, o controle da violência nas prisões do Estado ocorre mais pelo endurecimento do tratamento dos presos do que pelas iniciativas de ressocialização.
"O Estado está usando um regime de controle tão forte que acaba realmente dificultando muito a existência de rebeliões, mas isso não quer dizer que os presos vivem muito melhor."
"As celas, além de serem superlotadas, não têm ventilação. Cansei de visitar presos que até têm colchonetes, mas não conseguem dormir neles por causa do calor.
Deitam no chão, porque fica mais fresco. Têm apenas uma hora de banho de sol por dia. Não consigo chamar de modelo um sistema que deixa uma pessoa num cubículo por 23 horas", afirma.
Para o pesquisador Humberto Ribeiro Jr., o tratamento dos presos mostra que o Estado não tem uma "gradação de execução penal adequada", mesmo após a reformulação.
"Todos os presos são tratados como presos de segurança máxima. Houve redução de visitas e a maior parte delas só pode ocorrer pelo parlatório (por telefone, em que preso e visitante ficam separados por um vidro), mesmo com familiares e advogados. Há um sistema bastante rigoroso até para presos provisórios", afirma.
Ele admite que as iniciativas elencadas pelo secretário de Justiça são benéficas, mas afirma que o que mantém o sistema estável ainda é a "mão pesada".
"Há experiências muito positivas, mas que atingem 10 ou 20 presos num universo enorme. O nosso sistema ainda não é estruturado para a humanização dos detentos. É construído para o controle deles com mão pesada. Isso entra em completa contradição com o discurso de ressocialização", afirma.
Ribeiro Jr. cita casos como o ocorrido em 2013, em que detentos sofreram queimaduras graves após serem forçados a sentar-se nus durante horas na quadra de esportes de uma unidade; a morte de um preso por tortura policial em 2015 e, em 2016, greves de fome feitas por presidiários para denunciar maus-tratos.
"Um determinado preso de uma determinada unidade teve um tratamento equivocado, bruto ou até criminoso por parte de um determinado agente", disse o secretário de Justiça, em resposta às duras críticas.
"A secretaria reconhece que isso aconteceu e não compactua de forma nenhuma com esses casos. Mas rotula-se como se nós estivéssemos agindo de forma arbitrária ou torturando presos. Esquecem que são 20 mil presos por dia. As possibilidades de problemas são muito grandes", acrescentou.
"Estamos investindo em um viés humanizador, mas por vezes temos que atuar com o rigor necessário. Há unidades em que a necessidade de controle é maior, e o Estado não abre mão de mandar lá dentro. Brigamos muito pela manutenção dessa autoridade."
Segundo Pontes, parte da reformulação no Estado incluiu a extinção da figura do carcereiro e a criação de uma escola penitenciária para qualificar os funcionários das prisões, agora chamados de "inspetores prisionais".
"Antes a maioria deles eram funcionários nomeados, sem qualquer qualificação. Hoje, a maioria são concursados."
Para Ribeiro Jr. e Lemos, a reformulação das prisões se torna ineficiente diante do aumento contínuo da população carcerária no Estado.
"O Espírito Santo continua tendo um número grande de presos provisórios. No último relatório do Depen (Departamento de Execução Penal do Ministério da Justiça), aparece como um dos Estados onde o encarceramento mais cresceu."
Pontes admite que o encarceramento em massa é o principal obstáculo ao funcionamento adequado dos presídios. Atualmente, o Espírito Santo tem um deficit de aproximadamente 2,5 mil vagas.
"O que nós fazemos é dar cumprimento à lei de execução penal. Eu pessoalmente acho que o encarceramento tem sido muito grande, mas dificilmente, a nível de Estado, podemos fazer algo sobre isso", afirma.
Em 2015, o Espírito Santo foi o segundo do país, depois de São Paulo, a adotar as audiências de custódia, em que o acusado preso em flagrante é levado a um juiz no prazo de 24 horas. O juiz avalia a legalidade e a necessidade da prisão, além de eventuais maus-tratos.
"As audiências qualificam a porta de entrada porque só vai entrar no sistema aquele cidadão que está oferecendo um risco à sociedade", diz Pontes.
Ribeiro Jr. diz que, desde que foram adotadas, as audiências permitiram a liberação de cerca de 50% dos presos em flagrante no Estado. Mesmo assim, segundo ele, o número dos que entram nas prisões ainda é alto demais.
"Sem as audiências, estaríamos em uma situação insustentável."
De acordo com o secretário, projetos em parceria com o Judiciário para acompanhar os ex-presidiários após o cumprimento da pena - que os ajudam a fazer documentos e encontrar trabalho - também podem contribuir para desinchar as cadeias ao diminuir a possibilidade de reincidência no crime.
"Temos que fazer a ampliação de vagas, mas continuar trabalhando na qualificação da porta de entrada e no acompanhamento dos presos que saem, sob pena de o Estado não parar nunca de construir prisões", afirmou.
"O Espírito Santo tem avançado vagarosamente, mas há muito o que fazer. A diferença que nós temos é que a gente achou um rumo, estamos alguns passos à frente dos demais, mas temos uma caminhada muito longa para equilibrar o sistema ainda."
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Como o Espírito Santo conseguiu zerar mortes em prisões - e o que ainda não funciona em seu sistema - Instituto Humanitas Unisinos - IHU