25 Novembro 2016
Visita crítica ao site-loja do “movimento”. Tal como no âmbito do consumismo predatório, não se oferecem produtos, mas status e visibilidade.
O artigo é de Fran Alavina, doutorando do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da USP, mestre em Estética e Filosofia da Arte pela Universidade Federal de Ouro Preto, UFOP, em artigo publicado por Outras Palavras, 07-11-2016.
Eis o artigo.
Este artigo se divide em dois momentos. No primeiro, que agora apresentamos, se faz a exposição do mundo de sentido histórico, ou melhor, de um momento em que os sentidos históricos são reduzidos, possibilitando o aparecimento de grupos como o MBL (Movimento Brasil Livre): trata-se da lógica da terceirização, que se faz de modo predatório no plano dos afetos políticos, ou seja, da precarização dos liames que sustentam o âmbito político.
Em momentos históricos conturbados, nos quais os termos de uma gramática política progressista e de resistência são esgarçados na medida em que são usurpados pelos discursos do retrocesso, torna-se sinuoso e difícil traçar linhas de compreensão, pois tudo parece fora dos limites da razoabilidade. Quanto mais os retrocessos buscam avançar, tudo parece cada vez mais menos razoável: tempos onde o absurdo parece ser a normalidade, exigir razoabilidade soa como desatino. Regido pelo golpismo como forma social difusa, o trágico momento da vida nacional exige um esforço continuado para que se possa entendê-lo. Este esforço para não nos entregarmos à regência do absurdo também exige novidade teórica: novos problemas não são debelados por velhos remédios. Do contrário, continuaremos com “placebos” que além de ineficazes, prejudicam a formação de um bom diagnóstico; e, sem este, não se pode iniciar qualquer bom movimento crítico.
Ora, a criatividade que possibilita a novidade teórica e que pode nos abrir novas vias de compreensão, ao que parece, pode começar em não se prender a limites rígidos entre esferas diferentes. Não se trata tanto de ter medo de misturar, mas de não isolar. “Ecletismos frouxos” são tão ruins quanto “isolacioanismos duros”. Assim, antes que possamos passar ao núcleo deste artigo, a saber, de que o MBL (Movimento Brasil Livre) enquanto organização é a expressão atual mais acabada da precarização do político, isto é, da redução da esfera pública e dos liames coletivos, deve-se compreender o mundo de sentido histórico que possibilita este tipo de organização por meio da relação com o mundo do trabalho, particularmente com a difusão do processo de terceirização. Ao fim veremos que esta organização estruturada segundo a lógica neoliberal atualmente se apresenta como entidade que presta “serviços terceirizados” ao governo: o que, por um lado, demonstra a fraqueza do governo ilegítimo; e, por outro, aponta para o avanço de caracteres fascistas.
Pensando por uma analogia, verossímil e frutífera, relacionando o mundo da política e o mundo do trabalho, tem-se que a “atividade-fim” do poder é continuar ser poder, isto é, manter-se enquanto força de domínio capaz de coagir para realizar a gestão das pessoas e das coisas. Esta gestão pode ser feita de modo multifaceado, e quanto mais, melhor é, pois quanto mais o poder exercer seu mando sem parecer fazer de modo violento, mais se reforça. Trata-se então dos meios pelos quais o poder vigente se utiliza para manter-se enquanto tal. Com efeito, nem todos os meios utilizados podem ser geridos diretamente pelo poder que, por isso, delega parte de suas atividades que, por princípio, é cabível somente a ele.
Delegar poder, ao mesmo tempo em que pode implicar um reforço do poder, pois só delega quem tem autoridade para tal, pode significar também um enfraquecimento, pois desconcentrado se enfraquece, isto é, utilizando meios que não estão mais complemente sob seu domínio, corre o risco de ser sabotado. Assim, sendo o fim do poder continuar ser poder, o meio utilizado para tal não pode enfraquecê-lo, isto é, a “atividade meio” não pode comprometer a “atividade fim”.
Em um primeiro momento, o âmbito político foi sucumbindo ao discurso neoliberal: era a fase em que a máquina pública deu lugar aos privatismos sob a égide da ideologia da gestão eficiente. O Estado assumia perante a “opinião pública” sua incapacidade de gerir atividades que antes se consideravam indelegáveis a terceiros. À medida que cedeu terreno, isto é, delegou atividades, logo delegou poder, se enfraqueceu, de modo que agora delega aspectos institucionais primários, como, por exemplo, o uso público da palavra. A precarização da máquina estatal traz em seu bojo a precarização do político em seu sentido mais amplo: o encolhimento da esfera pública também em seus aspectos simbólicos e afetivos. Por isso, em meados dos anos 90, quando o privatismo mostrou sem pudores seu cinismo, não víamos movimentos ou organizações análogos ao MBL, pois apenas o aparelho midiático era suficiente para garantir o avanço do consentimento público da lógica neoliberal. Mas, como é da natureza do neoliberalismo fazer de tudo, da religião aos medos coletivos, um negócio lucrativo, agora o discurso que quer o encolhimento máximo do Estado está acrescido da transformação da manifestação política em negócio. Justamente pela perda das características eminentemente políticas da manifestação pública, a precarização não é apenas material, do aparelho estatal, mas se trata da precarização do próprio sentido do político.
Dessa maneira, se estamos no âmbito da precarização do político, no qual os posicionamentos e as manifestações públicas tornam-se negócios, não resta senão indagar: O que vende o MBL? Quem quer que entre no site desta “organização política” terá a sensação de estar entrando em uma loja de variedades: ao lado de links que dão acesso a textos, sempre com manchetes que exploram algum tema “da vez”, é possível comprar de tudo: de blusas a canecas. Tudo anunciado com uma apelação emocional e direta: “Não deixe o MBL acabar!! Compre nossos produtos!!”. Esta apelação direta e emotiva que segue as peças publicitárias ao quais somos expostos todos os dias, cuja lógica é dizer tudo diretamente, porém não falar tudo, supõe a “necessidade” do movimento, que não “pode acabar”. Mas, isto não é dito diretamente ao “consumidor”. Ser direto, segundo querem nos fazer crer as estratégias publicitárias, é o mesmo que dizer tudo. Os produtos, ressalte-se que de gosto duvidoso a qualquer um que já tenha tido um contato mínimo com os textos clássicos de estética filosófica, estão na seção denominada: “Loja MBL”. Ao entrar nesta seção, a sensação de estar em uma loja de variedades é substituída pela certeza de se adentrar em uma galeria do kitsch político. Todavia, essa divisão entre a “loja virtual” e o restante do site, que por sua vez não teria conteúdo mercadológico, mas político, é apenas aparente. O produto de ponta oferecido não são as “bugigangas” que levam o nome do grupo. O MBL vende algo mais valioso. Esta mercadoria mais valiosa é a própria política. A precarização da política a torna mercadoria manuseável como qualquer produto destinado ao consumo.
Desse modo, enquanto o simulacro público do grupo se pauta na imagem de organização política, seu modus operandi é essencialmente econômico. Seguindo a via iniciada pelo privatismo, trata-se de vender aquilo que antes não se vendia. A transformação da saúde e da educação em serviço, deixando, pois, de ser direito, tem seu par equivalente de semelhança na venda do imaginário, da participação política, da sensação de pertencimento, em suma, na venda dos afetos e desejos políticos, de modo que o site do grupo nada mais é que uma vitrine.
Na seção do site denominada “Participe”, são vendidos “Planos” para aqueles que desejam associar-se ao movimento. Tais planos, obedecendo a uma estratégia criativa, embora pobre, possuem os, no mínimo risíveis, nomes de: “Agente da CIA” (o mais barato), “Irmãos Koch” e, coincidência ou não, o mais caro chama-se “Mão Invisível” (pobre Adam Smith, vítima do business predatório de seus seguidores). Ativismo político ao seu alcance, basta pagar! Só em tempos de precarização dos sentidos políticos, grupos que se definem como “organização de ativismo político” vendem participações efetivas em seus próprios quadros. Também é oferecida consultoria, para que se possa abrir “franquias” do movimento, de tal modo que não fica claro o que é político e o que é negócio. Alguma contradição, para um grupo que se evidenciou no bojo dos discursos anticorrupção? Ali tudo se passa na mimetização da oportunidade única dos feirões Black Friday, que são os momentos em que os picos de excitação do consumo atingem seus níveis mais elevados, quem não comprar os planos ficará de fora, segundo a expressão de um dos textos do site, desse “momento excitante do país”.
Caso típico neoliberal: a redução do político ao econômico. Novo nicho de mercado, no qual a mercadoria é a participação política; a clientela: os segmentos mais reacionários, que são também os mais consumistas. E, por fim, não poderia faltar, um garoto propaganda: jovem (pois a estratégia atual difusa pelo mundo do consumo alia consumismo e juventude), “aguerrido”, de fala fácil, visual descolado e gestual que mimetiza a inexpressividade das linguagens comerciais. Tal como no âmbito do consumismo predatório, não se vendem produtos, mas sonhos e satisfações. Em outras palavras, compra-se status e visibilidade. Vendem o desejo da participação política e transformam em negócio a condição humana primaz de fazer parte de uma coletividade engajada. Ora, o consumismo enquanto realidade não apenas material, mas também simbólica, agora, passa a operar mais ainda com a gestão lucrativa do campo afetivo-passional, neste caso, em seu aspecto mais eminentemente político.
O MBL é o exemplo expressivo de como se pode obter um regime lucrativo de compra e venda de aspirações e desejos políticos. Por isso, os “meninos” do MBL são os filhos diletos da precarização, porque conseguem fazer dela um negócio. Bons alunos da cartilha neoliberal que enxergaram aquilo que o momento propiciava. Filhos da precarização do político fazem disso o seu negócio, travestindo-se de puro ativismo político. E quanto maior a precarização, maiores as oportunidades de negócios. Isto lhes propicia o atual governo dos ilegítimos, logo passam a prestar “serviços terceirizados” a tal governo: terceirização da palavra e terceirização da força.
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O que vende o MBL? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU