15 Agosto 2016
Depois que o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), marca para uma segunda-feira, 12 de setembro, a votação em plenário da cassação de Eduardo Cunha (PMDB-RJ), em ato flagrante para beneficiar o aliado, vozes de protesto surgem para denunciar o golpe e o retrocesso no país. Uma delas, a socióloga com especialização no campo da Ciência Política e do Direito e professora da Universidade de São Paulo (USP) Maria Victoria Benevides, considera a proteção dispensada a Cunha como "um escárnio em relação à ideia da política como busca do bem comum".
Em um contexto em que o impeachment de Dilma Rousseff é dado como favas contadas no Senado, a condescendência com Cunha causa ainda mais revolta, como se o país fosse de fato uma plêiade de zombaria. "Esse caso é um exemplo trágico de a que ponto chegou a política brasileira, no que ela tem de mais arraigado, de compadrio, de fisiologismo, de falsidade em todos os sentidos de não representação democrática do interesse da maioria do povo", afirma a professora.
Maria Victoria Benevides é uma das referências do pensamento progressista no país. Fundadora do PT e conselheira do Instituto Lula, ela tem se manifestado contra o projeto Escola sem Partido, que em sua visão exclui o pensamento crítico e o pluralismo de ideias e modos de ser. A professora defende que a abordagem dos direitos humanos seja uma prática transversal nas escolas, presentes não apenas em todas as disciplinas, mas em todos relacionamentos, com base nos valores da liberdade, igualdade, tolerância, diversidade e democracia.
Ela se posiciona contrariamente aos setores conservadores que apoiam o governo interino de Michel Temer e imaginam que o Senado porá fim à crise política. Ela diz que o impeachment está longe de resolver a questão. "O impeachment não vai solucionar a crise política, e esse governo não terá realmente condições de enfrentar de maneira positiva os problemas econômicos", disse em entrevista à HelderLima, publicada por Rede Brasil Atual, 12-08-2016.
Eis a entrevista.
Eu acho um quadro irreversível e com o agravante de que há pouca gente organizada que realmente estivesse empenhada em outra solução, algo mais democrático no campo progressista, que seria não apenas insistir no 'Fora, Temer!', mas também no 'Fica, Dilma!' – isso no sentido de inocentá-la das acusações que pesam contra ela e seu governo, mostrando que realmente toda essa movimentação pelo impeachment decorreu de uma conspiração política. É um golpe e não se apoia em quaisquer provas de peso constitucional, jurídico etc.
Aliás, é sintomático que alguns políticos desse atual governo mais do que interino, porque é usurpador, estão falando claramente que o impeachment é político. Não vem ao caso, para usar uma expressão do juiz Sérgio Moro, se há questões técnico-jurídicas que não estão conforme os trâmites legais para um impeachment. Eu sinto que nem mesmo a própria presidenta Dilma gostaria na verdade de reassumir o poder. É claro que ela quer, e é um desejo legítimo, ser inocentada. Ela tem uma perspectiva de sua biografia histórica, que é o que nós todos queremos também, mas ela tem perfeita noção de que não teria a menor condição de retomar o poder com as forças políticas majoritárias, haja vista o que tem ocorrido nas votações no Congresso, tanto na Câmara quanto no Senado.
Ela sabe que não conta com apoio majoritário do partido e não conta com apoio de outros partidos da esquerda, como Psol, Rede e o PCdoB, por mais que eles façam parte da bancada aliada, e que tenham votado contra o impeachment, as críticas que eles fazem ao governo e principalmente à sua reeleição, são muito duras. Se ela voltasse, ela teria uma oposição majoritária da direita e uma oposição crítica, muito dura dos setores mais à esquerda. E tenho dificuldade de ver que com setores do próprio PT ela contaria. Hoje, são grupos isolados que estão realmente insistindo no 'Fora ,Temer!' e 'Volta, Dilma!'.
Esse caso é um exemplo trágico de a que ponto chegou a política brasileira, no que ela tem de mais arraigado de compadrio, de fisiologismo, de falsidade em todos os sentidos, de não representação democrática do interesse da maioria do povo, e de um escárnio em relação à ideia de política como a busca do bem comum. Ele está sendo protegido, inclusive, por quem participava do governo Lula. Já houve quem dissesse que ele tem mais poder do que o próprio presidente usurpador. Ministros que foram do governo Lula, como Romero Jucá, Renan Calheiros, Eliseu Padilha e não sei mais quem, Moreira Franco, são a corja de conspiradores. É uma posição política no sentido de dizer que é a oligarquia defendendo seus privilégios contra os interesses do povo. Não são democratas, são golpistas conspiradores.
Está uma geleia a discussão sobre novas eleições, chamar plebiscito etc. A própria presidenta Dilma é favorável a convocar plebiscito, segundo suas palavras oficiais, mas a cúpula do PT é contra, o próprio Lula não endossa a tese, a CUT pelo que eu sei não endossa a tese, então, a gente não sabe nem o que realmente os grupos mais importantes da política estão propondo. O que a gente sabe, porque os bastidores para nós, pobres mortais, são insondáveis, mas pelo que podemos saber, a ala toda da atual situação quer a manutenção do governo Temer, ainda mais depois que ele confirmou que não será candidato em 2018. É claro que sobre isso nós não podemos botar uma cruz, mas politicamente é um compromisso e ficaria muito mal para ele não cumprir. Ele perderia muitos apoios e a luta seria de foice no escuro.
Essa aparente melhora da economia, com os números que têm sido divulgados, inclusive da Petrobras, por exemplo, deram de certa maneira um relaxamento no ódio, no mau humor geral do país. É claro que esse desvio de atenção e energia para as Olimpíadas contribuiu, mas me parece que não há entusiasmo nem do lado pró-Dilma, nem do contra-Dilma para grandes manifestações, para voltar à rua, para campanhas estridentes.
Eu vejo com muita tristeza o que está acontecendo com o PT. Eu vi recentemente uma carta aberta, um desabafo de uma militante antiga, que exerceu cargos nos governos municipais do PT e no governo federal com Lula, justamente reclamando da falta de empenho, não apenas dos dirigentes do partido de nível nacional e municipal, da militância, para continuar a luta contra o impeachment.
A crise política de hoje e sua inserção na História
É um período tristíssimo, e do ponto de vista histórico, é um período que dá para comparar em termos de um pêndulo com o que veio em consequência da ascensão de uma política mais democrática, mais justa em relação ao trabalhador, que foi o governo João Goulart, por quem eu tenho um grande respeito, pêndulo no sentido de que houve um crescimento – eu estava lá no Rio, na época, no movimento estudantil e aquela efervescência popular, aquela crença de que enfim nós daríamos um arranque importante pela justiça social, e muitos até achando que seria um caminho para o socialismo, e depois aquela queda vertiginosa e a ditadura civil-militar iniciada com o golpe de 1964.
Se pensássemos nesse viés do pêndulo, nós tivemos mais do que com o governo João Goulart um avanço considerável com os dois governos Lula em relação às políticas sociais, voltadas para os mais vulneráveis. E, junto com isso, algo que nem teria condição de existir no governo Jango, na proporção que tivemos com os governos Lula, até pelo tempo, um crescimento bastante significativo em termos de política externa. É um dos lados inegáveis do avanço político do governo Lula. Dificilmente, em um país como o nosso, essa força política direcionada para os de baixo, e com essa repercussão positiva no exterior, poderia durar tanto tempo em um país absurdamente desigual como o nosso, com uma dominação oligárquica ainda indestrutível como a do Brasil.
Chegou em um ponto insuportável e esse ponto foi a reeleição de Dilma, quando tudo parecia indicar que ela iria retomar o poder, do qual a oligarquia nunca saiu. Isso é o que a gente tem de ver com mais clareza. A prova é o que o próprio Lula dizia “os ricos nunca ganharam tanto dinheiro”. O poder do grande capital, os bancos, o capitalismo financeiro, exportador etc.
Hoje nós estamos vendo a Lava Jato pegar grandes empreiteiros, mas isso vai esmorecendo, esmorecendo, alguns daqueles que cumpriram, que foram pegos em grandes crimes contra os recursos públicos, contra o povo, sabe-se lá se estão mesmo com a tal tornozeleira, mas em um exílio dourado nas suas mansões, nas montanhas ou diante das praias da Cidade Maravilhosa. A oligarquia não perdeu poder. Não parece interessante que a maior amiga da presidenta Dilma seja uma pessoa do agronegócio, a ex-ministra da Agricultura Kátia Abreu?
Eu acho interessante, até do ponto de vista afetivo que a Dilma tenha uma grande amiga como ela que está enfrentando tudo para ficar perto dela. Mas o que foi que o agronegócio perdeu? Nada. Não apenas perdeu nada, como está até ganhando uma briga importantíssima frente aos defensores do meio ambiente, ou os defensores das terras indígenas e quilombolas. O grande poder oligárquico no Brasil continua. O Congresso não mudou drasticamente. Muita gente que foi até ministro da Dilma continua no poder e do outro lado, em oposição à presidenta.
É preciso ter clareza com isso e entender que aquele presidencialismo de coalizão, que parecia dar tão certo nos dois governos Lula, esgotou sua capacidade. E no Brasil o maior problema continua sendo a brutal desigualdade, o que inclusive espanta muito os estrangeiros que vêm aqui e não são os interessados em que essa desigualdade continue. É bom observar como a naturalidade, a facilidade como um político, que nunca deixou de ser político depois da queda do regime militar, como JoséSerra, trafega no setor internacional, e para isso foi muito importante colocá-lo como chanceler, em relação às propostas de privatização das riquezas nacionais. Ele que começou a vida política na ultraesquerda e hoje é um confidente, aliado da grande potência do capitalismo mais selvagem, que são os Estados Unidos, com tráfego privilegiado e traidor em relação ao país. Eu considero as políticas de José Serra como sendo de traição ao país, aos interesses principais do país e de suas riquezas, de seus recursos.
Eu estou absolutamente convencida de que o objetivo da dureza dessa operação Lava Jato foi atingir Lula e o PT. E esses objetivos estão sendo cumpridos. Eu digo isso porque nunca a corrupção, por mais escancarada que fosse, abalou a classe média ao ponto de chegar a ter ódio, e manifestações públicas no nível a que se chegou. Nunca juiz nenhum, nem Polícia Federal, nem Ministério Público se uniram para uma caçada geral e duríssima, nunca. E nós sabemos que corrupção sempre existiu. E os interesses por detrás têm relação mesmo a coisas sem muita importância. Quando a gente compara os bilhões e bilhões da conta Cunha por mais que ele esteja indiciado e denunciado, não sabemos como vai terminar, mas quando a gente vê alta proporção de indiciados em processos de corrupção e assemelhados, eles estão lá, na presidência do Senado, ex-presidente da República, ministros – uma parte ampla de deputados e senadores acha tudo muito natural.
Depois daquela conversa que pegou Renan Calheiros e Romero Jucá com o tal do Machado (Sérgio Machado, ex-presidente da Transpetro) e o ex-presidente Sarney... Como que o Sarney continua imbatível, com mais de 50 anos de domínio em um estado pobre e profundamente marcado pela desigualdade, como o Maranhão? Ninguém pediu o impeachment do Sarney. Aqui em São Paulo, o Paulo Maluf nunca levou uma cusparada ou um insulto na rua. Nem Maluf, nem Alckmin, os reis da corrupção aqui em São Paulo. Agora, o Alckmin, com denúncias de algumas dezenas de milhões de propina e ele nem se digna a responder. Tudo do Lula foi revirado ao avesso e nunca realmente se perguntou como que Fernando Henrique comprou aquela fazenda junto com Sérgio Motta, ele que era um professor e que não vinha de família rica. Não é verdade que o motivo que está por trás da Lava Jato seja realmente passar o Brasil a limpo. Então, o objetivo é pegar Lula e destruir o PT. E à medida que esse objetivo for crescendo em efeitos desejados mais e mais, a Lava Jato vai diminuindo, diminuindo até virar um rodinho de cozinha.
Eu defendo uma frente de esquerda, de atores progressistas, e que queiram enfrentar realmente o problema da retomada do desenvolvimento econômico no país, o que não é crescimento econômico. É um desenvolvimento econômico com as políticas públicas que não podem ser mexidas, algo que apareceu um ataque de morte à democracia é a redução orçamentária em áreas como educação e saúde, pesquisa científica. Essa frente, que é muito difícil de se conseguir, por conta até de dificuldades históricas que a esquerda tem de se unir em torno de um projeto, mas é a única saída. O impeachment não vai solucionar a crise política, e esse governo não terá realmente condições de enfrentar de maneira positiva os problemas econômicos.
O governo Temer, por menos que concorde publicamente, tem uma grande admiração por algo que o ex-presidente Fernando Henrique dizia ao assumir, que queria destruir a era Vargas. Ele não apenas não conseguiu, como foi substituído por um governo que pode ser comparado na sua abrangência de políticas públicas, ao que foi iniciado no segundo governo de Getúlio Vargas, de maior atendimento às classes proletárias, trabalhadores e principalmente trabalhadores urbanos. No caso do governo Lula, isso foi ampliado para o meio rural, com atendimento àquela área sempre mais esquecida, o Nordeste, área esquecida em desenvolvimento econômico, mas muito querida em termos de curral eleitoral.
Eu vejo que o neoliberalismo fará a sua festa com o governo Temer. Mas haverá uma reação, até porque não será possível continuar assim. Eu imagino alguma coisa no estilo do que aconteceu na Espanha com o Podemos, ou na Grécia, porque sem isso não vai dar. Paulatinamente estão atacando tudo o que poderia ser olhado com boa vontade, considerado avanço no sentido do bem-estar social, mas o Estado do bem-estar social está sofrendo ataques até onde ele nasceu, na Europa, nos Estados Unidos. A esquerda latino-americana está sob ataque, o próprio chanceler (José Serra) diz que não vê nenhuma necessidade do Mercosul.
Foto: Reprodução YouTube.
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"O neoliberalismo fará a sua festa com o governo Temer". Entrevista com Maria Victoria Benevides - Instituto Humanitas Unisinos - IHU